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"Até quando vamos ter que aguentar a apropriação da ideia de 'liberdade de imprensa', de 'liberdade de expressão', pelos proprietários da grande mídia mercantil – os Frias, os Marinhos, os Mesquitas, os Civitas -, que as definem como sua liberdade de dizer o que acham e de designar quem ocupa os espaços escritos, falados e vistos, para reproduzir o mesmo discurso, o pensamento único dos monopólios privados?"

Emir Sader

8.4.14

Flávio Koutzii: "O que a nossa geração produziu, a repressão não tinha como destruir" « Sul 21 Sul 21

Data:7/abr/2014, 7h52min

Flávio Koutzii: “O que a nossa geração produziu, a repressão não tinha como destruir”

Flávio Koutzii: lutou contra a ditadura brasileira e a argentina l Foto: Bruno Alencastro/Sul21

Nubia Silveira

Gaúcho de Porto Alegre, descendente de imigrantes russos, Flávio Koutzii foi um resistente e é um sobrevivente das ditaduras brasileira e argentina. Militou em Porto Alegre e São Paulo, no Partido Comunista do Brasil (PCB), na Dissidência Leninista do Rio Grande do Sul e no Partido Operário Comunista (POC). Na Argentina, esteve ligado, inicialmente, ao Exército Revolucionário do Povo (ERP). Quando foi preso em Buenos Aires, em 1975, fazia parte do Fracción Roja. Ficou quatro anos preso, tendo sofrido torturas físicas e psicológicas.

Os brasileiros realizaram uma campanha pela sua libertação. Livre, seguiu para Paris, onde cursou a École des Hautes Études en Sciences Sociales, da Universidade Sorbonne. O horror sofrido nas prisões argentinas transformou-se em tese defendida na universidade francesa e, depois, no livro Pedaços de Morte no Coração, lançado pela L&PM, em 1984, ano em que retornou ao Brasil.

Flávio ajudou a criar o PT, foi secretário de Estado, vereador e deputado estadual. Nesta entrevista ao Sul21, ele afirma que, apesar do sofrimento, a luta valeu a pena. Sua geração plantou na sociedade valores que permanecerão para sempre. “Fomos dizimados militarmente, mas o que tínhamos feito, já produzira certo acúmulo e esse acúmulo era bem a parte que eles (a repressão) não tinham como destruir”, afirma.

“A partir do golpe de 1964, todos os jovens se perguntavam: ‘por que fomos varridos tão rapidamente do mapa?’” | Foto: Bruno Alencastro/Sul21

Sul21 – O que diferencia cada uma das organizações em que militaste – Partido Comunista Brasileiro (PCB), Dissidência Leninista do Rio Grande do Sul e Partido Operário Comunista (POC)?/
Flávio Koutzii –
É preciso antes, falar sobre o que vivemos nos anos 60. A partir do golpe de 1964, todos os jovens com sensibilidade de esquerda se colocavam uma interrogação, uma necessidade de reflexão: por que nós fomos varridos tão rapidamente do mapa? Nós, no sentido do governo nacional, do projeto do Jango das reformas de base, que eram o tema central daquele período e, obviamente, uma das principais razões, senão a central, para que a direita se organizasse, em todos os níveis nacionais e internacionais para produzir o golpe.

“Os comunistas tinham grandes expectativas em relação ao governo João Goulart e às políticas de reformas que se desenhavam”

Sul21 – Você quer dizer que é importante, antes de mais nada, falar sobre o contexto da época?
Koutzii –
Sim.  Lembrar o contexto em que vivíamos ajuda a caracterizar um pouco as diferenças ou coincidências dessas três organizações,. O PCB, chamado na época de Partidão, era uma das forças importantes da história da esquerda brasileira. Ele vinha desde os anos 20 e havia tido uma participação significativa na política brasileira. Os comunistas tinham grandes expectativas em relação ao governo João Goulart e às políticas de reformas que se desenhavam.

Sul21 – Expectativas frustradas.
Koutzii –
Queríamos entender por que tudo aconteceu daquela forma. Nesse caso, não havia diferenças entre ninguém: o que houve foi uma derrota. A derrota – digamos assim – desintegrou um pouco as organizações existentes. Desintegrou até as organizações sindicais. No Brasil se desenhava a consolidação de uma Central Geral dos Trabalhadores (CGT), o que não havia no país até então.  Éramos o único país na América Latina que não tínha uma grande central de trabalhadores, com fôlego e importância. E essa central estava se consolidando nos anos de 1963 para 1964. E ela desapareceu, porque foi bloqueada pela ditadura.

Sul21 – Como se dá essa reflexão?
Koutzii –
Esse debate está registrado, até com certa riqueza, na literatura política e histórica do nosso país. Ele começa a se articular em torno de alguns elementos-chaves, próprios de uma reflexão política minimamente ambiciosa: como caracterizávamos  o país? Debatia-se naquela época sobre a existência de remanescentes feudais na estrutura do campo brasileiro, sobre a indústria que já havia no país e que avançara de forma expressiva e sobre o nível em que se encontravam no Brasil, as organizações políticas ou sindicais. Hoje, sabe-se, pelo que contam os livros, que o golpe foi acelerado porque, do ponto de vista da direita, a situação se agudizara a partir do comício de 13 de março, em frente à Central do Brasil, da sublevação dos fuzileiros navais e das marchas da família com Deus pela liberdade. Esses foram elementos de combustão cada vez mais presentes na vida nacional, que tornaram urgente, na visão do bloco civil-militar, a realização do golpe. Então, a reflexão sobre a derrota se dá no chão da sociedade e do Brasil real.

“Éramos o único país na América Latina que não tínha uma grande central de trabalhadores, com fôlego e importância” | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Que Brasil real é esse?
Koutzii –
Esse Brasil real está inserido num momento histórico, em que havia variáveis relativamente uniformes. De um lado, por exemplo, vai influenciar o fato de que, sistematicamente, ocorriam golpes de estado e, pouco a pouco, vários países da América Latina passaram a viver sob ditaduras de direita. Mundialmente, se estava no auge mais agudo da chamada Guerra Fria. Portanto, a leitura de um fato local, a ditadura brasileira, nunca poderia ser feita como se esse fosse um fato isolado e não relacionado com tudo que acontecia no continente e no mundo.

“As revoluções da Rússia, da China e de Cuba inspiraram diferentes gêneros, métodos e estratégias de vários núcleos de esquerda”

Sul21 – Neste debate entram também as grandes revoluções do século XX?
Koutzii –
As revoluções da Rússia, da China e de Cuba inspiraram diferentes gêneros, métodos e estratégias de vários núcleos de esquerda. Havia uma inter-relação entre tudo o que ocorria no mundo e chegamos à situação em que toda a área de influência da União Soviética (geralmente os Partidos Comunistas) defendia, em cada país, uma estratégia mais ou menos semelhante. Era o modelo soviético. Por outro lado, outros partidos se inspiravam na China. No Brasil, uma dissidência do Partidão, o PCdoB, tinha uma certa influência do modelo chinês. Ao se falar em modelo, refere-se a que a Revolução Russa se consolidou no meio de uma guerra civil e culminou com um processo insurrecional; a chinesa, por um processo muito mais longo. A China era um gigante continental, muito dominado, em diferentes setores, pelos senhores da guerra e por frações de poder. Ela teve outra dinâmica, a que se caracterizou como estratégia de guerra prolongada. Mao Tsé-Tung conduziu as forças comunistas de forma a irem se organizando num grande exército, principalmente camponês, para a longa marcha, que consolida o controle sobre o território e, finalmente, toma o poder. Por isso se pode dizer – sendo esquemático – que tínhamos um modelo insurrecional, a Revolução Russa, e um modelo de Guerra Prolongada, a China.

“Mao Tsé-Tung conduziu as forças comunistas de forma a irem se organizando num grande exército, principalmente camponês, para a longa marcha, que consolida o controle sobre o território e, finalmente, toma o poder” | Foto: historianet

Sul21 – E o modelo cubano?
Koutzii –
O modelo cubano é, marcadamente, o de guerrilhas. Acaba sendo um processo de rápida definição. Esses cenários lançam uma luz sobre o que havia de diferença entre as organizações em que militei. Lembremos que os partidos comunistas reivindicavam a influência da União Soviética. As que iam aparecendo em outros lugares, principalmente no lado da Ásia, onde havia situações mais análogas à chinesa, eram pró-China. O que entra no meio desses grandes gigantes – China e União Soviética juntas representavam mais da metade do mundo e viviam sob sistemas socialistas – é a Revolução Cubana, que assume um papel de maior importância no Brasil, fragilizando o Partido Comunista. Nós estamos falando do fim dos anos 1950 para 1960, da existência da Guerra Fria, e do clássico debate sobre a coexistência pacífica. Havia o terror nuclear, o medo de que, se o mundo fosse para uma guerra, não sobraria nada. Havia um certo empate nuclear e militar entre União Soviética e Estados Unidos. E os chineses, rapidamente, adquiriram importância. Os protagonistas da Guerra Fria eram proprietários da tecnologia da morte. Portanto, o tema da coexistência pacífica se materializa completamente nos países que tinham o Partido Comunista.

Sul21 – O tema da coexistência pacífica paralisou o Partidão?
Koutzii –
Ele estava despreparado para uma situação como essa do golpe. O que aconteceu, então, de forma generalizada é que, um ano e meio depois do golpe, já em 1966, todo mundo começa a debater sobre o tema do enfrentamento, inclusive sobre o uso da estratégia armada. Esse debate, historicamente, fratura em muitos grupos o sistema de partidos influenciados pela União Soviética, com orientação de coexistência pacífica. No ápice do debate, é lançado um livro, que ficou famoso, de Caio Prado Júnior, A Revolução Brasileira, que ajuda a entender a realidade, ajuda o debate. Ele explica que o campo no Brasil já tinha características capitalistas, para dar um exemplo de debate que tinha fôlego teórico e importância na prática política.

“O golpe foi em 1964, a Revolução Cubana, em 1959. Aquilo vai produzir um efeito, uma influência, um elemento extremamente sedutor” | Foto: estudopratico.com.br

Sul21 – A partir daí, qual o panorama?
Koutzii –
Alguns poucos consolidam sua orientação pró-chinesa. Mas, a grande novidade, que vem como um imenso mar, é a inspiração cubana, que tinha muitos elementos próximos ao Brasil. O  golpe foi em 1964, a Revolução Cubana, em 1959. Aquilo vai produzir um efeito, uma influência, um elemento extremamente sedutor. Teríamos melhores condições de enfrentar o golpe se ele tivesse acontecido cinco anos antes e se tivéssemos organizações mais capazes de defender a sua maneira de fazer política, seja no trabalho operário, seja nas associações e sindicatos, organizações que pudessem proteger-se da força convencional da direita, dos exércitos e da polícia. A influência da Revolução Cubana foi grande no Brasil e na América Latina.

“O modelo cubano era uma coisa perturbadoramente fascinante e encurtadora de prazos”

Sul21 – Como tu mesmo já disseste, ela foi muito mais rápida do que as outras.
Koutzii –
De fato, a Revolução Cubana passou por uma acumulação curta. Isso é importante entender. Se eu quisesse repetir o modelo da China, a primeira coisa que precisaria seria construir um exército que iria cercar as cidades, o que, provavelmente, levaria uns 30 a 40 anos para se consolidar, se sobrevivesse às batalhas, para depois tomar o poder. O modelo soviético tinha mostrado também que precisava de tempo. E aqui, se olhava para um lado e se tinha o Che (Guevara), para o outro, o Fidel (Castro). O modelo cubano era uma coisa perturbadoramente fascinante e encurtadora de prazos. É sob esse cenário mais amplo que começa a aflorar, em todos os setores mais jovens do Partidão e na juventude de esquerda católica, o que conformaram as dissidências.

Sul21 – E tu foste um dos dissidentes.
Koutzii -
No caso da que participei e ajudei a construir, na busca de novas orientações, foi chamada de Dissidência Leninista do Rio Grande do Sul. Todas eram dissidências do Partidão, lideradas pelos então líderes universitários ou secundaristas. Essa geração não sai das portas das fábricas, mas de uma classe média radicalizada e, geralmente, com formação intelectual, que tentava compreender essas questões. Usávamos muito as palavras “gradualismo” e “etapismo”, que significava ir ganhando consensos gradualmente. O que isso significava na vida real das sociedades da época? Significava que nós todos achávamos que não tinha mais como permitir que acontecesse o que acontecera em 1964: um presidente nacionalista, com um mínimo de coragem e convicção de que o seu país precisava de reformas importantes, fora derrubado. Ficou bem claro que não adiantava nós fazermos um pouquinho, apenas pelo caminho eleitoral. Naquela época de Guerra Fria, com aquele nível de radicalismo e com a forma dos norte-americanos tratarem a América do Sul como seu quintal, os setores jovens disseram: “não dá para ser mais como a gente fazia, vamos ter que nos organizar como fizeram os cubanos, pouco a pouco”. Isso resumia a ideia de que poderíamos ter outros caminhos. E isso é o que produz a diferença entre o Partidão e a dissidência.

“Participei e ajudei a construir, na busca de novas orientações, da Dissidência Leninista do Rio Grande do Sul” | Foto: Bruno Alencastro/Sul21

Sul21 – Já estamos falando de 1968?
Koutzii –
Maio de 1968 estaria logo ali. Companheiros que viajaram para a Europa e acompanharam as coisas por lá fizeram emergir a teorização e vivências de temas como o feminismo, a ecologia e toda uma nova perspectiva ética, que revolucionava os valores conservadores da antiga moral sexual e vitoriana. Estamos falando de 1966, mas 1968 está próximo. As coisas começam a acontecer. O ano de 1968 foi o de todas esperanças e todas as possibilidades. Tudo parecia possível.

“No PCB, chegou o momento em que nos autonomizamos, começamos a conversar com as diferentes dissidências”

Sul21 – A tua dissidência passa a trabalhar com que foco?
Koutzii –
Temos que distinguir, porque há a Dissidência Leninista do Rio Grande do Sul e o POC. A dissidência, eu teria que chamar como um período de transição. Ela se estende do período do processo crítico, que durou alguns meses ainda dentro do PCB, à fundação do POC. No PCB, chegou o momento em que nos autonomizamos, começamos a conversar com as diferentes dissidências e por isso, falo em transição. Nós formamos o POC, não entramos nele. Com uma parte importante da Política Operária (POLOP), uma organização que já existia em São Paulo e em outros lugares, à qual se une a Dissidência, formando o POC.

“No PCB, chegou o momento em que nos autonomizamos, começamos a conversar com as diferentes dissidências” | Foto: Bruno Alencastro/Sul21

Sul21 – O POC tinha uma ação foquista? Fazia parte da luta armada?
Koutzii –
Não. Se se trata de ações para proteger a panfletagem, para buscar recursos para o funcionamento das organizações, são ações armadas; não luta armada. Não é um foco guerrilheiro. A maioria das correntes começou a fazer pequenas ações para tentar montar suas futuras construções.

Sul21 – Que tipo de trabalho fez o POC?
Koutzii –
Fundado o POC, já tínhamos feito um percurso de atividades com outros parceiros. Construímos nossas teses políticas para, então, definir quais eram as nossas políticas frente ao clássico trabalho operário e de organização, e também na universidade. Então, tínhamos política para isso. Em segundo lugar, tínhamos opinião sobre a necessidade de um certo nível de ações militares porque a repressão sobre as organizações já era  tal que precisávamos criar estruturas e suportes para seguir lutando sob condições muito mais duras. Frente ao aparelho forte da repressão, cada vez mais azeitado e sistemático, precisávamos garantir nossa capacidade de agir. O POC nunca se propôs a montar um foco guerrilheiro. Não era isso. Era ter em conta que mesmo uma organização não dedicada exclusivamente à luta armada precisava ter base armada para poder sustentar suas próprias ações cotidianas e as consideradas importantes. Tínhamos políticas no movimento estudantil. Achávamos que a luta armada contra a repressão não deveria ser a nossa marca registrada. Primeiro, tínhamos que conseguir organizar setores da sociedade que pudessem resistir. Não era uma orientação sermos foquistas como os cubanos. Era uma orientação mais de tipo chinês, que o PCdoB adotou e que o levou a materializar com grande sacrifício e heroísmo a constituição de uma primeira área (Araguaia), a partir da qual eles queriam se expandir.

Sul21 – O POC nunca entrou na luta armada, nem deu apoio à luta armada?
Koutzii –
Nós atuamos principalmente em São Paulo, onde tínhamos uma estrutura mais desenvolvida e onde, eventualmente, atuamos em aliança militar com algumas organizações.

“O tema da luta armada passa a ser claramente esse divisor. Algumas organizações põem toda alma nisso, como VPR, ALN, VAR, MR-8, VAR-Palmares e PCBR”

Sul21 – Então vocês realizaram algumas ações militares, atuando junto com outras organizações.
Koutzii –
Sim. Em São Paulo, principalmente, realizamos algumas ações. Mas foram poucas. Elas eram para garantir outras ações mais de infraestrutura, para garantir nosso funcionamento.

Sul21 – Foram expropriações?
Koutzii –
Sim, em alguns casos.

“Nos dois anos em que a guerrilha materializou suas ações, o nível de estrago produzido pela repressão foi impressionante” |Foto: Bruno Alencastro/Sul21

Sul21 – Vocês não participaram de justiçamentos como o do Boilesen, da Ultragaz? Ou o de Chandler, da CIA? Vocês eram contra isso?
Koutzi - 
Não, não. Esse tema não é um tema que eu me recorde ter sido discutido por nós naquela época. Até porque era um quadro muito complexo, na minha opinião, de fragilização.  Mesmo que aqui e ali houvesse alguma colaboração, com troca de informações, nos dois anos em que a guerrilha materializou suas ações, o nível de estrago produzido pela repressão foi impressionante.  A repressão levou os diferentes grupos a ir cada vez mais para uma certa defensiva e, ao fazê-lo, tudo ficava mais difícil. Já não tínhamos como discutir as escolhas particulares de cada grupo. Isso é a coisa dura e trágica. Depois há um divisor de águas. O tema da luta armada passa a ser claramente esse divisor. Algumas organizações põem toda alma nisso, como VPR, ALN, VAR, MR-8, VAR-Palmares e PCBR. São organizações que ganharam consistência, ganharam massa crítica e aprofundaram essa opção central.  Havia uma espécie de círculo vicioso.

Sul21 – De que forma?
Koutzii –
Tu fazias uma expropriação para garantir uma estrutura e depois precisava de mais estrutura porque a tua própria ação criava mais demandas de clandestinidade. Então, nesse sentindo, gerava um círculo vicioso. Quanto mais gente ficava clandestina, mais se precisava de lugares para colocar os companheiros. E essa foi uma dinâmica bastante dura, vivida diretamente por toda essa geração. E, geralmente, parte desses processos foi fatal, seja pela prisão e pela tortura, mas também pelo assassinato dos militantes e talvez um pouco mais benignamente pelo exílio. Quem pode,  pelas circunstâncias, sair a tempo –  foram muitos, ainda bem –  conseguiram sobreviver.

Sul21 – Quando se formam, as organizações se dão conta do inimigo que estão enfrentando?  Era um poder muito maior, não é verdade?
Koutzii –
Não posso falar ou opinar por todas as organizações. Acho que é um fenômeno fácil de entender e respondo afirmativamente. Nós não compreendemos a correlação de forças extremamente antagônicas que íamos enfrentar, em primeiro lugar, do ponto de vista militar, o exército tinha 600 mil homens. Isso, evidentemente, é uma constatação que se pode fazer. Numa análise fria, se vê que essa geração que resistiu aqui, como na Argentina, no Uruguai e no Chile, subestimou o inimigo. Em todos os casos enfrentaram os exércitos nacionais, inimigos que não tinham nenhum princípio no que concerne aos direitos humanos elementares. A todos dessa geração estava reservada a tortura.

“No caso da Argentina, eu já tinha compreendido que estávamos indo para o sacrifício, pois a batalha estava perdida”

“A única forma de mostrar que uma geração inteira da América Latina não ficou louca ao mesmo tempo é dar a dimensão histórica” |Foto: Bruno Alencastro/Sul21

Sul21 – Num texto teu que li, entendi que havia um maior isolamento nas prisões argentinas.
Koutzii –
Na Argentina, havia campos de concentração. Esses temas são difíceis de se tratar brevemente. Tem um artigo de que gosto muito até hoje, A história do contexto e o contexto da história, que fiz para um livro que organizei sobre Che (Che 20 Anos Depois – ensaios e testemunhos, editora Busca Vida), motivado por uma linha de interpretação que, na verdade, não é mais do que contextualizar o que acontecia no mundo nos anos 1960. Nós, daquela geração, não éramos um bando de louquinhos e nem tínhamos alguma doença que alterou a nossa cabeça. A única forma de mostrar que uma geração inteira da América Latina não ficou louca ao mesmo tempo é dar a dimensão histórica. Uma geração é composta por jovens de um mesmo tempo que se associam em torno de um ideário. Há características comuns que mobilizam essas pessoas na mesma hora, no mesmo lugar e por uma mesma razão. Nesse artigo tento fazer entender melhor como as coisas aconteceram.

Sul21 – Como foi se dar conta da derrota, tentar se salvar?
Koutzii –
Saí do Brasil com a perspectiva de refletir e reelaborar o projeto. Eu e mais cinco saímos para a França e, aos poucos, fomos voltando. No caso da Argentina, eu já tinha compreendido que estávamos indo para o sacrifício, pois a batalha estava perdida.

Sul21 – Em que momento a resistência se dá conta de que a repressão é muito maior. Há um momento específico?
Koutzii –
Aqui no Brasil, acho que não há um momento geral. Estamos falando de um universo pequeno, de 10 a 12 grupos. Vários vão sendo dizimados. Quem está na luta, acha que não deve deixar de lutar. Tem o compromisso com tudo o que já foi feito, com os que ficaram, com os que morreram, com os que estão presos, torturados. Isso não é exagero. É substantivo. Muitos memorialistas mostram o dilema clássico: vou ou não vou embora? Afirmo que isso acontecia mais a partir da dinâmica de cada grupo. As pessoas começam a ver os companheiros mortos, desaparecidos. Isso já é um retrato do  enfraquecimento. Se sentir culpado é muito fácil, era inevitável. Chegou o momento em que sair era um gesto mínimo de lucidez e de amor à vida, que é um direito, mas, sobretudo, de cálculo político sóbrio. Não dava aqui. Eram feitos cálculos sobre a vida média, no Brasil, de quem entrava na resistência. Depois do AI-5, era menos que um ano. As pessoas foram compreendendo que algumas foram ficando pelo caminho e não puderam tomar a decisão de sair, porque já tinham morrido.  Nós, da esquerda brasileira, tínhamos sonhos em comum, não éramos kamikazes. Muito foram para o exílio.

Sul21 –Esse sentimento que acabas de descrever se deu depois do AI-5?
Koutzii –
Em dezembro de 1968, ainda não havia essa situação. Isso ocorreu nos dois anos subsequentes.

“Acho que os campos de concentração foram das coisas mais absolutamente terríveis que aconteceram na Argentina”

Sul21 – Quando te pedi a entrevista, reagiste dizendo que tua resistência no Brasil tinha sido por pouco tempo. Senti como um complexo de culpa teu por não ter ficado no país.
Koutzii –
Não tenho complexo de culpa. Não é culpa. É um pouco de pudor, porque acho que há pessoas que pegaram todas por aqui. Por exemplo, não fui preso no Brasil, não fui torturado no Brasil. São situações diferentes. Meu respeito pelos que pegaram as coisas mais brabas aqui. Acho que eles podem falar melhor sobre as coisas brabas daqui, com testemunhos mais densos, mais ricos. No meu íntimo, isso é algo subjetivo, o peso da minha vivência na Argentina é maior do que a daqui. Maior porque morreu metade dos companheiros do grupo que eu ajudei a organizar. Assim como a gente nasce muitas vezes, a gente morre, e na prisão argentina foram quatro anos. Escrevi sobre isso de forma esquemática (Pedaços de Morte no Coração, baseado na tese de Sociologia defendida na École des Hautes Études en Sciences Sociales, da Universidade Sorbonne, em Paris). Não poderia ser de outro jeito, senão não escreveria duas linhas. Não tinha talento para escrever sobre o tamanho da dor. Muitos fizeram isso. Mas ninguém é obrigado a ser escritor de talento.

“Vivi mundos diversos e circunstâncias históricas muito distintas, mas, em minha opinião, fecundas. Todas elas” | Foto: Bruno Alencastro/Sul21

Sul21 – Na Argentina foste preso, torturado.
Koutzii –
Acho que os campos de concentração foram das coisas mais absolutamente terríveis que aconteceram na Argentina. Os campos de concentração argentinos ficavam em áreas determinadas, que podiam ser delegacias ou outros tantos lugares ao longo da Argentina. Só na ESMA – Escola de Mecânica da Remada, em Buenos Aires, mil seqüestrados foram desparecidos.  Em geral, as pessoas eram sequestradas e presas nesses lugares, onde a possibilidade de tortura era infinita, porque não existe Estado de Direito e a ação do Estado Terrorista, que funcionava como um estado paralelo e clandestino.  O cara sabe que não pode haver nada além do que ele sofrer e sofrer mais. É terrível essa noção de que se está desaparecido, de que não há nada no mundo para ajudá-lo. O relatório Sabato (o escritor Ernesto Sabato presidiu a Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas, na Argentina) apontou o número de 30 mil desaparecidos e isso não é um número fictício.

Flavio Koutzii no Aeroporto de Ezeiza, no dia em que foi libertado na Argentina | Foto: Álbum pessoal

Sul21 – Tens dito que te salvaste na Argentina porque foste preso antes do golpe de 1976, que derrubou a presidenta Isabel de Perón, Isabelita.
Koutzii –
Eu tinha uma causa e, portanto, era um preso legal, tinha um juiz responsável por mim.

Sul21 – Uma pergunta que é feita para todos que estiveram na resistência: valeu a pena? O que ficou da luta?
Koutzii -
Absolutamente sim. Uma pergunta que muitas vezes a gente mesmo se faz. Isso, até pela minha maneira de ver, fui aprendendo. E mesmo depois da experiência de deputado, da vida institucional, de ter também a experiência com altos e baixos, mas mesmo assim importante. Participei da construção do PT. Vivi mundos diversos e circunstâncias históricas muito distintas, mas, em minha opinião, fecundas. Todas elas. Estou numa época em que essas coisas estão muito presentes. Esse é um tema que tive que responder muitas vezes, quando fazia palestras, então eu tenho uma convicção profunda de que valeu muito a pena. Tenho uma tremenda identificação com esse pedaço da minha vida, em que pude ser um da minha geração, um aqui e no mundo, porque os fenômenos do final dos anos 1960, embora diferentes, seguiram na  mesma direção. Mesmo tendo espírito reflexivo, analisando com bastante distância no tempo, eu acho que fomos, geracionalmente falando, um elo dentro da história brasileira e talvez o primeiro e mais nítido entre as resistências. Depois, praticamente, fomos dizimados militarmente, mas o que já tínhamos feito, já produzira certo acúmulo e esse acúmulo era bem a parte que eles (a repressão) não tinham como destruir. Graças a um nível duro de sacrifício conseguimos manter alguns preservados, pequenos valores; conseguimos acumular algumas coisas. Mesmo os que foram embora para o exílio conseguiram fazer seus trabalhos fora, divulgar o que estava acontecendo no Brasil. Valeu muito a pena do ponto de vista desse grãozinho que fomos. E se formos olhar com os olhos do presente, a escolha dessa luta não somente tinha valor naquela época, apesar de que muitos fracassamos nos nossos esforços, mas tem, em certa medida, mais valor ainda agora, porque ela, revisitada, dá ideia de valores que estão em debate na sociedade, como saber se a solidariedade vale a pena, se o conjunto da sociedade nos interessa. Acho que o legado e a herança da nossa geração transcendem o fato de termos cometidos erros. É uma geração que está inscrita na história brasileira pelas coisas que talvez tenham sido o melhor que ela tinha para dar.

http://www.sul21.com.br/jornal/flavio-koutzii-o-que-a-nossa-geracao-produziu-a-repressao-nao-tinha-como-destruir/

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Cancion con todos

Salgo a caminar
Por la cintura cosmica del sur
Piso en la region
Mas vegetal del viento y de la luz
Siento al caminar
Toda la piel de america en mi piel
Y anda en mi sangre un rio
Que libera en mi voz su caudal.

Sol de alto peru
Rostro bolivia estaño y soledad
Un verde brasil
Besa mi chile cobre y mineral
Subo desde el sur
Hacia la entraña america y total
Pura raiz de un grito
Destinado a crecer y a estallar.

Todas las voces todas
Todas las manos todas
Toda la sangre puede
Ser cancion en el viento
Canta conmigo canta
Hermano americano
Libera tu esperanza
Con un grito en la voz