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pergunta:

"Até quando vamos ter que aguentar a apropriação da ideia de 'liberdade de imprensa', de 'liberdade de expressão', pelos proprietários da grande mídia mercantil – os Frias, os Marinhos, os Mesquitas, os Civitas -, que as definem como sua liberdade de dizer o que acham e de designar quem ocupa os espaços escritos, falados e vistos, para reproduzir o mesmo discurso, o pensamento único dos monopólios privados?"

Emir Sader

26.12.15

Natal: suas muitas versões e corruptelas mercantis

 26/dez/2015, 7h10min

Natal: suas muitas versões e corruptelas mercantis (por Jacques Távora Alfonsin)

Ele tem sido interpretado completamente fora do seu contexto histórico, cercado de afetação sentimental, fazendo passar o presépio –  para não dizer cocheira ou estrebaria –  como um lugar confortável e não um  refúgio precário de acampamento, onde o burro, o boi e as ovelhas parecem estar fornecendo ar condicionado para o recém nascido. Maria e José colocados como atores de uma peça previamente manipulada para esconder o medíocre disfarce da extrema pobreza do lugar. Até o cocho onde a criança foi deitada após o parto, por ausência de berço (!), mudou de nome para não escandalizar. Passou a se chamar manjedoura.

Se a bíblia for lida com um mínimo de senso crítico, a história do acontecido é bem diferente, fazendo prova disso o que aconteceu na vizinhança. Alguns pastores, tão pobres quanto José e Maria, vigiando ovelhas nas proximidades, foram chamados por uma espécie de mídia também muito diferente da de hoje, representada por alguém proclamando a seguinte mensagem: "Estou aqui para trazer uma boa notícia para vocês, e ela será também motivo de muita alegria para todo o povo! Hoje mesmo, na cidade de Davi, nasceu o Salvador de vocês –  Messias, o Senhor! Esta será a prova: vocês encontrarão uma criancinha enroladas em panos deitada numa manjedoura {…} Glória a Deus nas maiores alturas do céu e paz na terra às pessoas a quem Ele quer bem."

Aqui não cabe serem lembradas as muitas e divergentes interpretações que até hoje procuram extrair sentido e referência desta notícia, desde a atribuição de uma pura invencionice criada por um pensamento mágico, crente em anjos e deuses, até a da fé numa intervenção divina bastante para confirmar tudo quanto tinha sido previsto pelos profetas séculos antes. Mesmo adotado um raciocínio descomprometido com qualquer desses modos de ver –  coisa difícil, dada a forte influência ideológica inerente a toda interpretação histórica –  a fonte da notícia, o seu conteúdo e as/os suas/seus primeiras/os destinatárias/os, se forem comparadas com os seus efeitos futuros, dão muito o que pensar, seja para quem crê, seja para quem não crê.

Se a origem for reconhecida como divina, a lógica determina existirem verdades não científicas, de pura fé e essas com uma força de potência inigualável, provada na história, entre outros sinais, pelos milhares de mártires que preferiram sacrificar a própria vida para não trair a fidelidade do seu pensar, sentir e agir de acordo com o seguimento de Jesus.  Se o conteúdo da "boa nova" for reconhecido como modelo de vida, a prevalente nas festas natalinas de agora está muito distante daquele "programa", a começar pelo sentido e a referência da "salvação". Como a alegria e a paz foram indicadas como duas de suas características, a salvação não pode ser um estado etéreo, abstrato, reservado somente para santas/os após a morte. Alegria e paz são efeitos inseparáveis de justiça e essa é incapaz de "salvar" qualquer convivência humana que descarte uma relação interpessoal de respeito e amor à/ao outra/o, como um ser digno do bem viver em comunhão fraterna, valendo isso para todo o grupo humano, até para as relações internacionais entre países ricos e pobres.

Se a alegria natalina de hoje é imposta mais pelo costume e a moda do que pelo autêntico entusiasmo de lembrança do aniversariante, a paz está quase sem vez e sem voz. No lugar de ambas se implantou um sistema que só atribui salvação ao dinheiro, um deus também muito diferente do Filho de Maria. Para esse outro deus toda a boa nova fica dependente da sôfrega conferência, feita diariamente no computador, sobre o movimento financeiro da bolsa de valores, tão surdo à notícia ouvida pelos pastores e tão distante do estábulo, onde chora mal acomodado o Recém Nascido, quanto a terra fica da última galáxia.

Assim, a boa nova só pode mesmo ser considerada boa se forem consideradas/os as/os suas/seus destinatárias/os. Aí ela ganha, talvez, a sua maior significação. Gente muito pobre –  como era e ainda hoje é a das/os sem-terra e sem-teto, quilombolas, índias/os e catadoras/es de material –  foi a primeira a saber do fato, tudo indicando ter havido uma preferência clara sobre a quem, de fato, ela era endereçada.  Se a "salvação" fosse só imaterial, exclusivamente espiritual, reservada apenas para as almas na eternidade, a justiça como condição de alegria e paz, refletida em convivência de bem viver, não teria sido boa notícia para quem justamente sofria, e até hoje sofre dos seus contrários, no seu próprio corpo. Injustiça, opressão, desprezo, discriminação, despiste, engano e indiferença, por exemplo, são tratamentos comuns, considerados preconceituosamente normais, dados a pobres e miseráveis, mas inaceitáveis e intoleráveis para a Criança, posteriormente assassinada na cruz, por força, inclusive, do cumprimento fiel da salvação prometida às/aos pastoras/es. Excluído esse povo do convívio justo, a aplicação da lei, com força bem inferior a das imposições do nosso sistema socioeconômico, ontem como hoje, se encarregam de fornecer legitimidade para a sua segregação.

Bernard Haring mencionando Deus, mas em linguagem capaz, talvez, de ser aceita até por ateus, ensina sobre a lei e o acúmulo de dinheiro: "Um dos pontos fulcrais da teologia cristã é o de que não podemos tornar-nos justos aos olhos de Deus através das obras da lei. {…} O ricaço que não se preocupa com o pobre Lazaro, que não se digna a olhar para ele nem lhe dar uma migalha de pão, exclui-se automaticamente a si mesmo do reino da solidariedade salvífica da justiça permanente." (Em "Vida em Cristo plenificada", Aparecida: Editora Santuário, 1998, p. 37).

Quem pensa em atitude solidária e fraterna com as/os pobres, portanto, como esmola ou favor, assistencialismo barato e compensatório, está muitíssimo enganado. A justiça permanente é própria da necessária solidariedade salvífica. Ela não decorre de uma simples prova de gentileza, a ser praticada exclusivamente no natal, para amortecer pruridos de consciência. Reduzida a tanto, até contraria a Vontade e o Desejo da Criança aniversariante. Daí a exigência de partilha do pão aparecer no modelo de oração transmitido por Jesus Cristo às/aos suas/seus seguidoras/es. O "Pai nosso" somente pode nos ouvir se fizermos todo o pão também nosso, comum, e a fome saciada da/o nossa/o próxima/o constituir responsabilidade de todas/os, condição de justiça permanente, assim caracterizada por Ele em mais de uma oportunidade. A primeira, reconhecendo como iguais a fome de pão e a fome de justiça; a segunda, como verdadeiro pressuposto de salvação: "Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados" (Evangelho de São Mateus, capítulo 5, versículo 6); "Eu estava com fome e vocês me deram comida; estava com sede e me deram água." (Idem, capítulo 25, versículo 35).

Entre o consumismo rasteiro e insaciável do nosso sistema socioeconômico capitalista, aguçado no natal, e a Boa Nova trazida pelo Menino Jesus, a diferença maior parece estar nos seus efeitos: o sistema fundamental do primeiro está baseado na liberdade para as mercadorias, a segunda na libertação das pessoas pobres. Se a preocupação do primeiro é produzir e lucrar sempre mais, a da segunda quer produzir o necessário e o suficiente para garantir dignidade pessoal e cidadania, sem discriminação em desfavor de ninguém. Se a concentração do dinheiro e da riqueza impulsiona toda a ação do primeiro, a partilha equitativa e justa de ambos, como forma de satisfazer as necessidades vitais de todas/os, estimula e modela a segunda.  Sobre a profunda e injusta desigualdade social gerada pelo primeiro, Ladislau Dowbor disse-o bem: "Quando uma centena de pessoas são donas de mais riqueza do que a metade da população mundial, enquanto um bilhão de pessoas passa fome, francamente, achar que o sistema está dando certo é prova de cegueira mental avançada.Um sistema que sabe produzir, mas não sabe distribuir, é tão funcional quanto a metade de uma roda."(disponível no site Café Brasil).

O natal é bem mais do que troca de presentes, como se vê. Que a alegria e a paz partilhadas nesta feliz recordação sejam revividas, por  todas/os as/os nossas/os leitoras/es,  durante todo o ano de 2016!

.oOo.

Jacques Távora Alfonsin é Procurador do Estado aposentado, Mestre em Direito pela Unisinos, advogado e assessor jurídico de movimentos populares.


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Cancion con todos

Salgo a caminar
Por la cintura cosmica del sur
Piso en la region
Mas vegetal del viento y de la luz
Siento al caminar
Toda la piel de america en mi piel
Y anda en mi sangre un rio
Que libera en mi voz su caudal.

Sol de alto peru
Rostro bolivia estaño y soledad
Un verde brasil
Besa mi chile cobre y mineral
Subo desde el sur
Hacia la entraña america y total
Pura raiz de un grito
Destinado a crecer y a estallar.

Todas las voces todas
Todas las manos todas
Toda la sangre puede
Ser cancion en el viento
Canta conmigo canta
Hermano americano
Libera tu esperanza
Con un grito en la voz