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pergunta:

"Até quando vamos ter que aguentar a apropriação da ideia de 'liberdade de imprensa', de 'liberdade de expressão', pelos proprietários da grande mídia mercantil – os Frias, os Marinhos, os Mesquitas, os Civitas -, que as definem como sua liberdade de dizer o que acham e de designar quem ocupa os espaços escritos, falados e vistos, para reproduzir o mesmo discurso, o pensamento único dos monopólios privados?"

Emir Sader

29.1.13

A emoção útil e a charge infeliz - | Observatório da Imprensa | Observatório da Imprensa - Você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito

Terça-feira, 29 de Janeiro de 2013   |   ISSN 1519-7670 - Ano 17 - nº 731


TRAGÉDIA EM SANTA MARIA

A emoção útil e a charge infeliz

Por Sylvia Debossan Moretzsohn em 29/01/2013 na edição 731

“A vida muda rápido. A vida muda num instante. Você senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente.”

É assim que a escritora americana Joan Didion abre O ano do pensamento mágico, livro no qual relata e reflete sobre suas emoções diante da morte súbita do marido, numa véspera de Ano Novo, logo depois de chegarem em casa, de volta de uma visita à filha única, recém-internada, e que morreria também algum tempo depois. Quando o livro foi lançado no Brasil, em 2006, a escritora deu entrevista ao Globo em que reiterava o seu aprendizado com aquela dupla perda: “Eu perdi a ideia de que é possível controlar as coisas”.

Nas horas imediatamente seguintes ao incêndio que vitimou centenas de jovens numa boate em Santa Maria (RS), choveram explicações para o que poderia ter evitado a tragédia: se a banda não tivesse utilizado efeitos pirotécnicos, se a casa tivesse revestimento acústico não inflamável, se os extintores funcionassem, se houvesse saídas de emergência, se os seguranças tivessem liberado logo a porta, se houvesse ali um bombeiro civil, se houvesse fiscalização adequada... sem contar outros conselhos tolos supostamente resultantes da lição daquela madrugada: os clientes devem verificar as condições de segurança dos locais que frequentam, como se isto fosse possível, e como se esta não fosse uma óbvia responsabilidade do Estado.

Do lado dos sobreviventes, a culpa típica de quem não entende como nem por que escapou: como conseguiram sair e tantos outros ficaram?, como não voltaram para salvar amigos, parentes, namorados?, o que poderiam – deveriam? – ter feito para livrá-los da morte? Do lado dos pais, a culpa de sempre: pois os filhos sempre estariam vivos, felizes e saudáveis caso ouvissem seus conselhos.

Se a lista de fatores que concorreram para a tragédia é correta e contribui para a apuração das responsabilidades – embora, a rigor, não haja fiscalização que impeça um comportamento inconsequente capaz de detonar uma catástrofe num ambiente fechado e lotado –, se evidentemente o que ocorreu não foi uma fatalidade – como pretendem os advogados dos donos da boate –, ainda assim a conclusão de Joan Didion poderia servir ao mesmo tempo de consolo e esclarecimento a quem viu a vida mudar num instante, assim de repente, imprevisivelmente: não é possível controlar as coisas.

A emoção mobilizadora

Mas para pensar assim é preciso já ter sofrido o desespero e a dor lancinante da perda, e ter sobrevivido a ela. Não só por isso, mas também por isso, a cobertura jornalística – especialmente a televisiva – de tragédias como essa não pode abrir mão de expor o sofrimento, e a questão sempre estará na definição do limite tênue entre o que é lícito ou não exibir: entre o que a dor pode informar e revelar e a sua exploração sensacionalista e desvirtuadora da capacidade de reflexão e mobilização. Entre o que nos comove e convoca a agir e o que simplesmente nos leva a chorar e a manifestar condolências.

Recorro aqui às indagações do repórter português Carlos Fino, que se tornou conhecido dos brasileiros quando trabalhava na RTP – Rádio e Televisão de Portugal – e cobriu a invasão americana ao Iraque, em 2003:

“Como é que se transmite o horror da guerra? Esta é uma de nossas contradições, não é? Brecht dizia:‘homem, olha bem nos olhos do outro homem e verás nele um irmão. As contradições que te consomem não são boas nem más, são a tua própria condição’. E assim vivemos, quer dizer, como é que damos o horror da guerra sem imediatamente sermos acusados de estarmos a comungar da sociedade do espetáculo e a explorar o sentimento alheio? Eu vou pôr a mão que eu vi decepada no mercado de Bagdá quando os americanos provocaram mais uma vítima colateral? Ponho a mão pra provocar desgosto e repulsa ou escondo essa imagem, não a edito, para não ferir os sentimentos das pessoas? Como é que se transmite isso? Eu não sei dar uma resposta precisa.”

Do mesmo jeito que não se pode cobrir uma guerra de maneira estritamente racional, apresentando-a na lógica do jogo de poder – “a continuação da política por outros meios”, na famosa definição de Clausewitz –, excluindo o sofrimento humano que esse jogo provoca, não é possível pensar na cobertura de uma tragédia como a de Santa Maria sem a exposição do drama vivido pelas pessoas.

Não se trata, é claro, da exibição da desgraça e da formulação de perguntas que provocam a voz embargada e o choro para o previsível close, ou do recurso de supressão do som ao fim dos telejornais que, de tão utilizado, já se tornou clichê – ainda mais se acompanhado da sucessão das fotos daqueles jovens sorridentes que já não existem mais. Trata-se de coisas como o depoimento da mãe de dois rapazes – um morto, outro em estado gravíssimo no hospital – ao programa Mais Você, de Ana Maria Braga,especialmenterevelador por pelo menos dois motivos: porque fala de uma mulher simples que gostava da apresentadora, colecionava suas receitas e pensava em um dia estar mesmo a conversar com ela, mas para falar de suas habilidades culinárias, e nunca naquela situação tão triste; e porque essa mulher simples usa esse espaço para esse grito de dor e revolta contra o absurdo que se abateu sobre ela e tantos outros, apresentando-se como uma porta-voz do sofrimento e do protesto coletivo.

Talvez esta seja uma forma de se explorar a única emoção útil, a da revolta, de acordo com o comentário de Luis Fernando Verissimo que encabeçava a página 3 do caderno “Metrópole” do Estado de S.Paulo de segunda-feira (28/1):

“Depois do choque, da incredulidade, da empatia emocionada com os que foram diretamente tocados pelas mais de 200 mortes da tragédia de Santa Maria, vem a revolta. Que no fim é a única emoção útil, a que tem – ou deveria ter – consequência. As outras são manifestações humanas de solidariedade. A revolta é dirigida a todas as causas evitáveis do horror. À imprudência, às falhas na fiscalização, à ganância. A revolta pede providências para que tragédias assim não se repitam. E pede responsabilização clara e exemplar dos culpados. Infelizmente, uma coisa que pouco se vê no Brasil.”

A charge fora de hora

Enquanto isso, no Globo o cartunista Chico Caruso publicava a sua charge de capa: a boate reduzida ao seu sentido etimológico original de “caixa”, uma arapuca gradeada como uma prisão lotada de pessoas desesperadas tentando inutilmente fugir dali, enquanto o fogo se alastra e a fumaça negra atravessa o teto. E a presidente Dilma, de blazer vermelho, levando as mãos à cabeça e gritando: “Santa Maria!”

Como de costume, o jornalista Ricardo Noblat reproduziu a charge no mesmo dia (28/1), em seu blog. No início da noite já colecionava mais de 200 comentários, quase todos furiosos, classificando-a de “lamentável”, “inoportuna”, “nojenta”, “lixo”, “imbecil”, “insensata”, “infeliz”, “aberração”, “oportunista”, “ridícula”, “desarrazoada”, “desproporcional”, obra de um “perfeito idiota”, e condenando o cartunista – e por extensão o colunista-blogueiro, pela divulgação – de fazer pouco da desgraça que comovia o país e de utilizar um momento de consternação para, mais uma vez, bater em Dilma e no PT.

Em resposta, Noblat repetiu algumas vezes este comentário:

“Os que criticam a charge do Chico Caruso perderam o bom senso, a se levar em conta a violência com que escrevem. O que a charge tem de chocante, de desrespeitosa com quem quer que seja? Dilma pôr as mãos na cabeça e dizer ‘Santa Maria’? Isso é um absurdo? Só enxerga nisso uma crítica à presidenta os fanáticos políticos de plantão. Aqueles que politizam tudo. Os que alugaram sua pena e sua mente a interesses partidários. Dilma não faz política quando grita ‘Virgem Maria’. Nem a charge sugere isso. Dilma revela seu desespero. Sua inconformidade. Que é nossa também. Ela não tem culpa alguma pelo que aconteceu. Foi solidária com todos os que sofrem. Esteve em Santa Maria. Sinceramente se comoveu com o que viu. O que tem mais na charge? A boate transformada numa prisão? As janelas gradeadas? As mãos crispadas dos que ali ficaram retidos clamando por ajuda? Mas não foi mesmo numa prisão em que a boate se transformou? Numa armadilha? Numa ratoeira? Perdão, mas vcs não sacaram nada, nadinha.”

Não há dúvida de que qualquer discurso comporta mais de uma interpretação, mas exatamente por isso o argumento de Noblat não se sustenta: porque a desqualificação de seus interlocutores ao final – “vcs não sacaram nada, nadinha” – supõe um sentido único e, a rigor, muito improvável, dada a sistemática postura do jornal contra o governo petista. E, também, por causa da identificação de toda contestação aos “fanáticos de plantão”, que “politizam tudo”.

Um chargista ocupa um espaço privilegiado para a crítica social e política bem – ou mal – humorada, para uma síntese que em geral nos faz rir de nós mesmos. Os comentadores indignados do blog do Noblat podem estar completamente enganados, mas é impossível desconsiderar os protestos contra a falta de sensibilidade nesse momento particularmente dramático da vida nacional.

***

[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]


http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a_emocao_util_e_a_charge_infeliz


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Cancion con todos

Salgo a caminar
Por la cintura cosmica del sur
Piso en la region
Mas vegetal del viento y de la luz
Siento al caminar
Toda la piel de america en mi piel
Y anda en mi sangre un rio
Que libera en mi voz su caudal.

Sol de alto peru
Rostro bolivia estaño y soledad
Un verde brasil
Besa mi chile cobre y mineral
Subo desde el sur
Hacia la entraña america y total
Pura raiz de un grito
Destinado a crecer y a estallar.

Todas las voces todas
Todas las manos todas
Toda la sangre puede
Ser cancion en el viento
Canta conmigo canta
Hermano americano
Libera tu esperanza
Con un grito en la voz