Judiciário & Política
O Judiciário é um poder reconhecidamente conservador, característica que decorre da própria natureza de suas funções: interpretar, aplicar e fazer cumprir a lei; decidir sobre questões relativas ao direito de propriedade, de família; julgar e punir atos de desvios, ilicitudes, disputas comerciais e crimes contra a pessoa, dentre muitas outras. Dos três poderes é o mais estável. Executivo e Legislativo são essencialmente políticos, de governo: sofrem periódica renovação. Já o Judiciário é um poder de Estado, permanente, responsável pela justiça, que, deve decidir de "olhos vendados", doa a quem doer. Um poder frio, neutro.
Tudo o que foi dito poderia ser verdade, mas não é. Especialmente neste Brasil que tem cinco séculos de história e que até poucas décadas atrás foi governado por uma atrasada oligarquia rural.
A mudança tem como marco a Revolução de 30, início da modernização do país. O fim da República Velha e do ciclo do café deu lugar a uma industrialização que se consolidou e acelerou numa "arrancada" que marca os anos quarenta e cinquenta, especialmente. Um novo cenário urbano e industrial foi paulatinamente ganhando espaço e poder, transformando e ocupando o lugar do país rural do passado.
Um país com absurda concentração da propriedade e da renda, governado por uma elite atrasada, resultou na existência de poderes distantes e alheios aos interesses populares. E dos três, o mais fechado e menos arejado é, certamente, o Judiciário.
Há três gerações atrás o acesso à educação superior no país, especialmente aos três cursos tradicionais, de maior prestígio – engenharia, medicina e direito -, era prerrogativa quase que exclusiva dos filhos das famílias de renda mais alta. Assim, os cargos da magistratura eram majoritariamente ocupados por membros dessas classes, que para ela traziam sua visão de mundo e ideologia.
A partir dos anos quarenta do século passado este quadro começou a se alterar e certamente daqui algumas décadas será outro, num processo lento, que avança com vagar. Há alguns anos atrás uma pesquisa sobre o perfil do magistrado brasileiro revelou que dois terços são homens. Nos tribunais superiores as mulheres totalizam apenas 17%, menos de um quinto. A quase totalidade – mais de 85% – dos juízes são brancos. Mulheres, negros e pobres são minoria. Um poder burocratizado ao extremo, lento, carente de eficientes controles internos e externos, protegido por prerrogativas especiais das carreiras de estado, fechado não poderia ter a simpatia e ser bem avaliado pela população em geral. Lacunas e mazelas constituem sua rotina. Para piorar, há, ainda, dispositivos que preservam interesses e privilégios e que devem ser extintos: o instituto da fiança e o foro privilegiado. Além disso, sob a alegação de garantir o amplo direito de defesa, os advogados recorrem a um sem número de expedientes protelatórios, permitidos pela lei, que adiam a sentença final que, não raro, demora cinco, dez, quinze ou até mais anos. Contribui também para isso o excesso de instâncias passíveis de serem percorridas até que o processo chegue a uma decisão final.
Para concluir, ilustrando o que foi dito, vou resumir dois episódios que integram a biografia recente de duas figuras políticas dessa província do remoto extremo meridional do país. Onde pulsam, ainda, tênues, é verdade, ânsias e pruridos separatistas.
O primeiro é o conhecido episódio da operação Rodin. A figura central é filho de uma família oligárquica tradicional de grande prestígio na época da ditadura militar. Filho de um ex-vice-governador nomeado. Membro de um partido conservador (PP) e da segunda geração de uma importante família da velha política do Estado.
Entre 2003 e 2006 foram desviados dos cofres públicos estaduais mais de 90 milhões de reais. A terceirização de atribuições do DETRAN possibilitou que a empresa PENSANT e duas fundações – a FATEC e a FUNDAE – vinculadas à Universidade Federal de Santa Maria, montassem juntamente com a direção do DETRAN em esquema de desvio de recursos públicos. A Polícia Federal investigou e constatou as irregularidades encaminhadas pelo Ministério Público à Justiça Federal. O processo foi aberto em 2007 e só no final de maio passado a sentença em primeira instância foi tornada pública, sete anos depois. Foram condenados 29 réus, dentre eles o ex-presidente do DETRAN, Flávio Vaz Neto, os diretores da PENSANT, da FATEC e da FUNDAE. É verdade, porém, que os réus condenados poderão recorrer. Significa que, se vierem a sofrer sanções, ocorrerão num futuro distante. O detalhe surrealista é que Otávio Germano Filho, à época deputado Federal e secretário estadual da Segurança Pública/RS foi flagrado nas gravações realizadas de telefonemas de outros suspeitos fazendo declarações comprometedoras que comprovavam seu envolvimento nos delitos. O Supremo as desconsiderou alegando que feriam o famigerado foro privilegiado. Numa operação fraudulenta que envolveu mais de três dezenas de pessoas o principal responsável, a autoridade máxima, "escapou" graças a uma interpretação "generosa" de um dispositivo legal. A formalidade confrontou e desmereceu os fatos. Neste episódio – infelizmente -, o Supremo não aplicou a "teoria do domínio do fato", consagrada por Joaquim Barbosa no episódio da ação penal 470. Depois de tudo isso, Otávio Germanos se apresenta ao eleitorado gaúcho como candidato a deputado federal. Pode?
O segundo episódio ocorreu nas eleições 2012. O personagem é um jovem, que precocemente incorporou todos os vícios e manhas da velha política. Cássio Trojildo, ex-secretário da SMOV se elegeu vereador de Porto Alegre. Houve reiteradas acusações de uso da secretaria para fins eleitoreiros. A mídia registrou e o Ministério Público acolheu, julgou-as procedentes encaminhando-as à Justiça. Em agosto de 2013 Trojildo teve seu mandato cassado pelo Tribunal Regional Eleitoral, por decisão unânime de seus membros. Quatro semanas depois uma surpreendente liminar do Supremo suspendeu a cassação e ele retornou à Câmara. Neste início de setembro completa um ano de um mandato muito provavelmente obtido de forma irregular, graças a uma liminar do Supremo. A pergunta é: quando será julgado o mérito? Temos esperança que antes do final do mandato de Trojildo, que expira em 2016. Justamente o ano em que ele – segundo se comenta na Câmara de Porto Alegre – deverá ocupar a presidência.
Paulo Muzell é economista.
http://www.sul21.com.br/jornal/judiciario-politica/
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