Ford é assunto na campanha eleitoral, apesar de a Justiça reconhecer que a empresa abandonou o RS por vontade própria
Ford: Justiça gaúcha deve julgar ainda os recursos da empresa e do governo do Estado
Foto: Mauro Schaeffer/ Correio do Povo
Adélia Porto Silva
Está pronto para julgamento pelo Tribunal de Justiça o recurso na ação movida pelo Rio Grande do Sul contra a Ford. Nessa instância, tanto o Estado quanto a empresa recorrem da decisão da juíza Lilian Cristiane Siman, da 5ª Vara da Fazenda Pública, que em maio de 2013 condenou a Ford a ressarcir ao RS valores que, atualizados, podem chegar a R$ 1 bilhão. A Ford apelou para não devolver o dinheiro, e o Estado, porque quer que sejam ressarcidos outros valores não concedidos na primeira decisão, entre os quais, perdas e danos.
O recurso ainda não tem julgamento, mas a sentença de primeira instância, mais do que condenar a Ford ao ressarcimento, reconhece e confirma que a empresa abandonou por vontade própria o projeto de instalação de uma montadora de automóveis no município de Guaíba – o projeto Amazon – rompendo unilateralmente o contrato assinado com o governo.
Quando governador, Olívio Dutra argumentava que o faturamento global da Ford superava várias vezes a arrecadação do RS | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Por muito tempo, a responsabilidade pela rescisão do contrato recaiu sobre o governo estadual, acusado pela opinião pública de ter "mandado a Ford embora". Porém, o detalhado processo judicial concluiu diferentemente. De acordo com o exposto na ação, ao assumir em 1999, o governo Olívio Dutra procurou discutir com a Ford cláusulas do contrato que considerava nulas e prejudiciais ao patrimônio público. Olívio argumentava que o faturamento global da Ford superava várias vezes a arrecadação do RS e que não fazia sentido um estado pobre entregar recursos volumosos a um gigante da indústria automotiva mundial. Os valores a serem repassados à Ford eram calculados em mais de R$ 400 milhões e a renúncia fiscal chegaria a R$ 3 bilhões, recursos que deixariam de ser aplicados em áreas como saúde e educação. Justificava também que, das 30 cláusulas contratuais, 29 eram obrigações do Estado e apenas uma de responsabilidade da empresa. Havia cláusulas ilegais e inconstitucionais.
Além disso, surgiu outra discordância. Aproximava-se o momento em que o Estado deveria repassar à empresa a segunda parcela de um financiamento de R$ 210 milhões, para instalação da fábrica, concedido via Banrisul, para pagamento em três parcelas. Como previa o contrato, o governo estadual exigiu da empresa a comprovação dos gastos referentes à primeira parcela, de R$ 42 milhões, vinculados ao projeto de Guaíba. A Ford de fato apresentou uma prestação de contas, mas antes que a Contadoria e Auditoria-Geral do Estado (Cage) terminasse o exame da documentação, a empresa notificou o Estado, em abril de 1999, dizendo que, por falta de pagamento da segunda parcela, considerava-se liberada do cumprimento das obrigações assumidas e que em 15 dias desocuparia a área no município de Guaíba.
A Contadoria e Auditoria-Geral do Estado (Cage) avaliou que a prestação de contas da Ford continha dados inaceitáveis
Segundo a avaliação da Cage, a prestação de contas da Ford continha dados inaceitáveis, como despesas sem comprovação e gastos fora do Estado, sem demonstração de vínculo com o projeto Amazon. Principalmente, a Cage questionava o valor de R$ 19 milhões pagos pela Ford à Comau, fábrica italiana de equipamentos de automação, com sede em Minas Gerais, pela compra de uma máquina que a empresa considerava "o coração da fábrica", sem a qual não poderia operar. Porém, a entrega do equipamento, segundo a ação judicial, estava prevista para depois do início do funcionamento da fábrica, o que permitiu suspeitar que sua destinação seria outra unidade da empresa, em qualquer ponto do país, e não Guaíba. Além disso, a aquisição tinha sido feita quando já havia indicação de suspensão, por parte da Ford, de suas atividades no sul. Mais, a compra efetuada referia-se a ferramentas gerais e não a um robô ("coração da fábrica", como alegava a empresa), de acordo com a perícia de engenharia mecânica, realizada durante a instrução do processo.
"Decidimos entrar com uma ação simples, quase uma ação de cobrança", diz Paulo Torelly, na época Procurador-Geral do Estado. O processo tramitou por quase dez anos. Na sentença, a juíza reconhece o direito ao ressarcimento reivindicado pelo Estado e confirma que quem rompeu o contrato foi a Ford. "Sob essa perspectiva fática, vislumbra-se de forma objetiva que quem deu causa à rescisão foi a Ford, e não o Estado", disse ela na sentença, referindo-se à notificação em que a empresa comunica ao Estado seu desligamento. Em outro trecho referindo-se à suspensão dos repasses por falta de comprovação de despesas, diz a sentença: "Todavia, não houve descumprimento algum. Conforme acima referido, estava o Estado legitimado e/ou autorizado a suspender os repasses dos valores enquanto não prestadas as contas dos gastos com o primeiro repasse (primeira parcela do financiamento)".
A sentença condena a Ford a ressarcir o Estado dos seguintes valores: R$ 42 milhões referentes à primeira parcela do financiamento de R$ 210 milhões, subvenções no valor de R$ 92 milhões, e R$ 32 milhões relativos à execução, pelo Estado, de obras de infraestrutura. O total, em torno de R$ 160 milhões em valores da época, poderá, com correções, chegar a R$ 1 bilhão.
ACM Neto revela pressões do avô, Antônio Carlos Magalhães, para que a Ford se estabelecesse na Bahia | Foto: José Cruz/ABr
De muda para a Bahia
A ida da Ford para a Bahia, uma decisão que causou grande rebuliço no Rio Grande do Sul, foi cercada de lances obscuros que aos poucos se esclareceram. "Quem não se lembra que ACM ameaçou romper com o então presidente Fernando Henrique Cardoso, caso o governo federal não ajudasse que a Ford fosse instalada na Bahia, como de fato aconteceu", escreveu ACM Neto em artigo publicado na página do DEM, em 2009. Ele confirmava assim a pressão exercida pelo cacique baiano para que a empresa mudasse o rumo e a destinação geográfica. ACM conseguiu, pela atuação do deputado federal José Carlos Aleluia (PFL-BA), a prorrogação do Regime Automotivo Especial para o Nordeste, encerrado dois anos antes por força de acordos comerciais internacionais. "O Executivo curvou-se à MP do novo regime automotivo porque precisava dos votos da bancada nordestina do PFL para a aprovação da Emenda Constitucional que autorizava a reeleição do Presidente da República", escreveu à época o cientista político João Paulo Cândia Veiga, da Universidade de São Paulo (USP).
A modificação significou um grande volume de benefícios para que a Ford se instalasse. Por parte da União houve redução de impostos de até 100% para importação de bens de capital, 90% para insumos e de 50% para importação de veículos, e ainda isenção de IPI, mais renúncia de 45% na compra de matérias-primas. O estado da Bahia, além dos incentivos fiscais, ofereceu outras vantagens à Ford em termos de infraestrutura física, tais como terreno, sistema viário, porto especial etc. A renúncia fiscal e financiamentos eram tão altos que, segundo alguns cálculos feitos à época, cada emprego gerado pela fábrica na Bahia teria um custo de mais de R$ 1 milhão para os cofres públicos. O empresário Antônio Ermírio de Moraes, do grupo Votorantim, recentemente falecido, disse que "a Ford é uma empresa suficientemente rica e não precisa do dinheiro do contribuinte brasileiro para montar fábricas" e que ele mesmo, como empresário, não teria coragem de pedir tantos incentivos ao governo.
Tema da Ford ressurge nestas eleições
Embora a Justiça tenha confirmado que a Ford saiu do Rio Grande do Sul por decisão própria e não foi "mandada embora", o assunto de 15 anos atrás reaparece nestas eleições de 2014, acompanhado da queixa contra a perda do investimento. Contudo, o setor automotivo se movimenta no RS. Em abril deste ano, começaram as obras de instalação da Foton Aumark do Brasil, fábrica chinesa de caminhões, com capacidade de produzir 21 mil unidades/ano de veículos entre 3,5 e 24 toneladas, com início da produção previsto para 2016. Está sendo erguida na área de 932 hectares antes destinada à Ford, convertida em Distrito Industrial e, mais recentemente, em Zona Mista para indústrias, centros de distribuição e serviços. A Foton passa a integrar o setor automotivo do Rio Grande do Sul, considerado prioritário na política industrial do governo do Estado, responsável por 63% da produção nacional de encarroçadoras de ônibus e 13% da produção nacional de chassis pra ônibus.
No terreno destinado à Ford, em Guaíba, a chinesa Foton Aumark vai produzir caminhões | Foto: Camila Domingues / Palácio Piratini
Entre o episódio de 15 anos atrás e a situação atual, as normas que balizam o relacionamento entre o governo e os novos investimentos mudaram fundamentalmente. "Agora, a política industrial do governo federal e do governo gaúcho estabelecem condicionantes que antes não havia", diz Jorge Ussan, diretor de Planejamento, Programas e Captação de Recursos da Agência Gaúcha de Desenvolvimento e Promoção de Investimento (AGDI), da SDPI. "Um dos condicionantes é a geração e manutenção de emprego. Outro é o desenvolvimento de cadeias produtivas". O principal instrumento da política industrial para atração de investimentos é o novo Fundo Operação Empresa (Fundopem), lançado há dois anos. O Fundo atribui pontuação diferenciada a empresas que fazem parte dos setores estratégicos dos Programas Setoriais da Política Industrial (são 23, entre os quais o setor automotivo e de implementos rodoviários). Valoriza também a massa salarial, a compra de insumos dentro do Estado, a intensidade tecnológica do projeto e o impacto ambiental. O mecanismo favorece a formação de cadeias produtivas locais, a agregação de inovações tecnológicas, a geração e manutenção de empregos e aumento da massa salarial.
Entre 2011 e 2014, o setor recebeu no Rio Grande do Sul investimentos de R$ 4,9 bilhões, por empresas como GM e sistemistas, Randon, Marcopolo, Magna, Keko, Guerra, International, Foton entre outros. "O segmento tem alto índice de integração com importantes cadeias de produção do Estado", diz Maria Paula Merlotti, coordenadora do Programa Setorial Automotivo da Secretaria de Desenvolvimento e Promoção de Investimento (SDPI). "A atividade gera demandas para a indústria de metalurgia, borracha e plásticos, automação e controle, eletroeletrônica, semicondutores, etc."
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