No Minha Casa Minha Vida – Entidades, trabalhadores e militantes de movimentos sociais constroem o sonho da moradia com as próprias mãos
Por Ivan Longo
"A vida toda foi assim. Construiu, fechou, já era. Agora é para mim, não para os outros". As palavras são do pedreiro conhecido como Formiga que, aos 44 anos, finalmente vai realizar o sonho de morar em um apartamento seu. Ele está trabalhando na obra do condomínio João Cândido, em Taboão da Serra (SP), às margens da BR-116. Trata-se de um empreendimento de 16 torres gestionado pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e destinado a seus próprios militantes, incluindo Formiga.
O projeto, que teve início em fevereiro de 2013, é financiado por recursos do Minha Casa Minha Vida – Entidades, modalidade do programa federal voltada para famílias organizadas em cooperativas, movimentos sociais e entidades sem fins lucrativos. Coordenado pelo Ministério das Cidades, atende famílias com renda mensal bruta de até R$ 1,6 mil.
Diferentemente do que acontece na modalidade principal do programa, no Entidades são as próprias famílias, apoiadas pelo movimento social, que elaboram o projeto, escolhem o terreno, contratam as empresas especializadas ou fornecem trabalhadores, acompanham todas as etapas e gestionam a obra como um todo, além de escolher quem serão os moradores. "Isso se expressa em uma qualidade maior de acabamento, no tamanho e em um projeto mais adequado para as famílias. O ponto essencial é a gestão direta", afirma Guilherme Boulos, coordenador nacional do MTST.
No condomínio João Cândido já é possível constatar algumas das constatações de Boulos. Em menos de dois anos desde o início das obras, três torres com 64 unidades cada estão quase prontas – a previsão é de que sejam entregues em novembro. Já pintados, com o pisos e acabamento, faltando apenas o elevador e as instalações elétricas, os prédios possuem, além de tudo, uma dimensão maior do que a adotada pelas construtoras na modalidade principal do programa, em que a metragem mínima é de 39 m². Este tamanho, entretanto, é seguido praticamente como padrão pelas empreiteiras.
No condomínio do MTST, os apartamentos medem 49 m² e 58 m². "Houve, na verdade, um deslocamento de recursos. Recursos que viram lucro das empreiteiras. Lucro excessivo, inclusive, porque a empreiteira que está lá [no João Cândido] construindo, está lucrando, mesmo com 58 m². Imagina quanto ganha a empreiteira que está fazendo com 39 m². O que o movimento fez foi transformar o sobrelucro de uma empreiteira e mudar a qualidade do apartamento", destaca Boulos.
"As famílias de classe baixa são mais numerosas, é quase impossível morar numa metragem dessas [39 m²]. Então o MCMV – Entidades deu uma nova possibilidade, que seria que o movimento atuasse diretamente no projeto estabelecido. Foi uma grande conquista, sem dúvidas", diz Jussara Basso, coordenadora estadual do MTST. No projeto do movimento, metade da mão de obra é dos próprios militantes, que foram contratados pela construtora selecionada como uma das condições para a escolha.
Três torres já estão praticamente prontas, com previsão de entrega para novembro. (Foto: Ivan Longo)
Pressão popular: interesse do povo, não das empreiteiras
A conquista do Minha Casa Minha Vida – Entidades apontada por Jussara como resultado direto das lutas dos movimentos de moradia que, pressionando o governo federal, conseguiram, em 2009, a inclusão no programa de uma modalidade que melhor atendesse às demandas das famílias organizadas de baixa renda.
"Nós trabalhamos com obras de autogestão desde 1989, durante o governo da Erundina, e levamos essa proposta adiante. A primeira obra que fizemos com o governo federal foi com o programa Crédito Solidário, em 2004 – foi a primeira vez que teve um programa em parceria com os movimentos", lembra Evaniza Rodrigues, coordenadora da União Nacional por Moradia Popular (UNMP), entidade que reúne movimentos de habitação por diversos estados do Brasil e que gestiona dezenas de empreendimentos através do programa. "Com a experiência que adquirimos até 2008, quando o governo estava discutindo a criação do MCMV, nós nos mobilizamos e pressionamos para a criação também de um programa semelhante ao Crédito Solidário dentro do MCMV, que resultou no Entidades. Essa proposta, na verdade, já havia entre os movimentos antes de o programa existir."
Formiga, que trabalha na obra de Taboão, sabe bem o que é essa pressão. Natural de Pernambuco, há nove anos no MTST, sempre participou das ocupações e atos do movimento, e enxerga agora, com o MCMV – Entidades, uma batalha vencida. "Nunca desistimos. É uma guerra que estamos ganhando. Pra mim é uma grande conquista", conta.
Para o pedreiro, nada mais recompensador que poder construir sua própria moradia, sem ter que se submeter aos interesses empreiteiras. Acostumado a trabalhar para construtoras, fiscaliza tudo o que pode na construção e chama a atenção dos colegas. "Eu, que sou pedreiro, prefiro morar na [residência] que eu estou fazendo. Porque aqui eu vejo. Já briguei com todo mundo aqui: com engenheiro, com dono, com ajudante… Mas aqui é todo mundo uma família e todo mundo se entende", afirma.
Segundo Rodrigues, além de acompanhar de perto todo o processo e influir diretamente na qualidade do empreendimento, os movimentos têm ainda outras maneiras de participar do projeto. Assim como Boulos, ela pensa que o MCMV – Entidades tem funcionado como uma política pública de moradia pautada única e exclusivamente pelo interesse de quem dela precisa. "O Entidades é a demonstração de que é possível fazer moradia sem ter lucro. Nossas organizações não visam lucro. É a pura luta por moradia. E isso trás um componente importante de política pública", destaca.
A coordenadora do UNMP reforça ainda que o programa possibilita a inversão da lógica comumente adotada em políticas habitacionais. "É como a gente fala: quem nasceu primeiro? O ovo ou a galinha? O poder público primeiro faz a casa, depois vai na fila e vê quem vai morar na casa. O nosso é o contrário, a gente inverte o processo. Primeiro você tem as famílias; as famílias discutem e elaboram o projeto e aí você produz a casa. A casa é o resultado do processo daquelas famílias", explica.
Bom, mas insuficiente
Desde 2009, ao todo, de acordo com o Ministério das Cidades, foram entregues, por meio do Minha Casa Minha Vida, 1.769.730 unidades. Desse total, apenas 3.077 foram construídas dentro da modalidade Entidades. Isso porque as entidades tinham, até então, um limite de mil unidades cada para construírem simultaneamente. Em junho, o governo federal anunciou a ampliação da cota para 4 mil, o que ainda é considerado insuficiente pelos movimentos.
"No último período a gente tem lutado muito para aumentar a cota para entidades, para poder ter mais apartamentos, mais moradias nesse formato. O movimento já se posicionou em não aceitar as moradias destinadas a essas demandas já existentes que tenham menos de 50 m² . Hoje, no entanto, graças a diálogos construídos a gente já consegue vislumbrar que o Entidades seja atendido em uma cota um pouco maior para cada movimento", declara Jussara Basso.
Já Boulos é mais radical: "Olha, esse número [4 mil por entidade] eu diria que ainda é insuficiente, já que para as construtoras não há esse tipo de limitação. Mas certamente é melhor, mais abrangente, do que os mil que estavam em vigor. O ideal mesmo é que não tivesse cotas, que as entidades tivessem liberdade para construir de acordo com a apresentação de projetos e que tivessem dentro dos parâmetros", defende.
O Ministério das Cidades, por sua vez, justifica o número inferior de unidades destinadas à modalidade de entidades por uma questão de capacitação de construção dos empreendimentos. De acordo com Inês Magalhães, secretária de habitação do Ministério, o processo é muito diferente e, por isso, o ritmo é outro. Ela destaca, no entanto, que à medida que as entidades forem ampliando sua capacidade de construção, o programa será reforçado.
"Tem duas questões: uma é a documental, pois nem todas as entidades conseguem reunir a documentação necessária para a apresentação de um projeto, e a questão da capacidade, o limite que a entidade tem. Ela terá mais limite conforme a experiência. Nossa ideia não é transformar as entidades em construtoras. Queremos que elas trabalhem na questão da educação, da autogestão e do desenvolvimento. O processo é muito diferente. A gente analisa as entidades de acordo com essa capacidade de investir. Não dá para um grupo que nunca gestionou um empreendimento fazer um projeto de R$2 milhões", esclarece.
O urbanista João Sette Whitaker, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), no entanto, lembra que, ainda que se amplie a dimensão do MCMV – Entidades, a modalidade não deve ser entendida como a solução para o problema do déficit habitacional, já que a própria lógica de autogestão por parte dos movimentos é, em essência, limitada. "O Entidades é a sequência das experiências de mutirões. Tem uma reclamação correta que é a de que foi feito muito pouco. Mas isso é normal, porque a produção via mutirão é limitada desde sempre em relação a sua quantidade", pontua. "O mutirão não é uma solução para a problemática habitacional. O ideal seria que tivesse mais, mas há o limite. A solução está, portanto, na resolução dos problemas que envolvem a modalidade principal do MCMV."
A raiz do problema
Para Whitaker, assim como para os movimentos de moradia, o principal problema do programa como um todo está no fato de que a escolha dos terrenos – exceto na modalidade Entidades – é feita pelas empreiteiras, que visam ao lucro e tocarão o empreendimento de acordo com seus interesses como organização, passando por cima das demandas das famílias que precisam de moradia.
Essa é, inclusive, a principal crítica feita por especialistas ao programa, acusado de estimular a especulação imobiliária na medida em que dá às construtoras o poder de escolher a localização dos terrenos e, assim, procurar sempre por áreas mais baratas, o que resulta, por sua vez, na precarização do serviço.
O urbanista, no entanto, acredita que essa não seja uma falha do programa em si mas, sim, dos municípios, que têm a responsabilidade sob o uso do solo e o dever de regular a ocupação urbana e os espaços destinados à moradia. "No Brasil, desde 88, a prerrogativa da gestão fundiária é do município. Estamos em 2014 e nenhum município praticamente implantou o Estatuto das Cidades. Trata-se de um problema que vem da relação que os municípios têm com as grandes construtoras e também parte de uma questão política", analisa.
O mesmo diz Inês Magalhães. "A gente tratar o tema da especulação a partir do programa acho que é uma visão simplificadora do problema, que é mais complexo que isso. É um tema que faz cada vez mais parte das nossas discussões no sentido de aumentar a regulação do estado. No caso da gestão da terra, os mais importantes instrumentos estão nas ações de ocupação do solo. Nisso, os municípios têm suma importância", avalia, lembrando o exemplo de São Paulo, que está perto de aprovar o Plano Diretor, identificando e determinando dezenas de áreas de interesse social destinadas à moradia popular.
Evaniza Rodrigues concorda: "Não é só ampliar. Tem que ampliar e melhorar as condições. Se não tiver política pública para gestão da terra, as entidades vão ser obrigadas a comprar terreno ruim. Então tem que ter política fundiária dos municípios em apoio aos projetos do MCMV."
A coordenadora da UNMP contou, inclusive, que a organização, juntamente com dezenas de outras entidades de moradia, elaborou recentemente um documento com mais de cem sugestões ao governo para melhorar o Minha Casa Minha Vida. A principal proposta, de acordo com Evaniza, é a mudança na lógica do programa, segundo a qual as construtoras podem escolher a área onde a obra será realizada. "Nós achamos que a questão do terreno deveria estar desvinculada da produção. A decisão sobre o terreno fica, portanto, com os movimentos e com o poder público local. Porque quando as construtoras escolhem os terrenos, as famílias recebem a casa, mas depois, todos os ônus urbanos e sociais que certamente vão enfrentar, terão que ser arcados pelo município. Temos que ir na origem do programa pois a decisão mais importante está sendo colocada nas mãos de quem tem um objetivo claro de lucro", pondera.
Empreendimento da União Nacional de Moradia Popular, pelo MCMV – Entidades, em Paulista (PE). (Foto: Reprodução/Facebook)
A militante não deixa de reconhecer, contudo, o avanço que o programa trouxe às demandas de moradia da população e ressalta, acima de tudo, o maior ganho até o momento: o diálogo aberto com o governo federal. "Antes do governo Lula [2002-2006 / 2006-2010] nós não tínhamos nem interlocução. Hoje é possível fazer a crítica tanto institucionalmente como também nos espaços de negociação dos movimentos", narra. "Não que eles concordem em tudo com a gente e nós com eles. Cada um tem uma agenda política. Mas a gente não deixa de entender que sim, houve um reconhecimento dos movimentos sociais como interlocutores da população."
Ainda que o problema habitacional esteja longe se ser resolvido no Brasil, os trabalhadores do condomínio João Cândido não veem a hora de pegar as chaves dos apartamentos que construíram. A emoção de ver um sonho prestes a ser realizado fica difícil de esconder. "Você subiu lá no apartamento? Viu que coisa linda? É maravilhoso, é esplêndido! Poucas palavras. É um sonho realizado, mas a luta continua, entendeu? A luta continua", diz, misturando orgulho e felicidade, Adilson Ferreira, militante do MTST que há nove anos vive em ocupações do movimento e que, agora, trabalhando na obra de seu futuro apartamento, terá mais que um barraco para dividir com sua família.
(Crédito da foto capa: Flickr/Catalytic Communities)
http://revistaforum.com.br/digital/164/minha-obra-minha-casa-minha-vida/
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