Por que José Serra ataca a Bolívia?
As declarações do pré-candidato tucano, acusando o governo Evo Morales por suposta conivência com o narcotráfico, provocaram celeuma na última semana de maio. Apesar das reações, o ex-governador paulista reiterou sua opinião em diversas oportunidades. Fez questão, enfim, de desmentir quem havia considerado sua afirmação momento de destempero.
O mais provável é que suas palavras correspondam a um cálculo frio, focado na disputa eleitoral. Diversos estudos indicam que a questão das drogas se apresenta como drama urbano de ampla repercussão. José Serra resolveu abordar o problema através de estímulo ao sentimento xenófobo. O objetivo aparente: associar a política internacional do governo Lula ao aumento da criminalidade.
As dificuldades reveladas por pesquisas recentes, afinal, podem empurrar o PSDB e seus aliados para atitudes belicosas. Estão diante do desafio de dinamitar o governo Lula para evitar que seja ponte desimpedida à transferência de votos entre o presidente e sua candidata. Os principais feitos da administração petista precisariam, nesse caso, ser desconstruídos e embaralhados.
São alvos dessa ofensiva a estratégia de integração latino-americana e o papel mundial que o Brasil passou a jogar. A envergadura das ações diplomáticas, cujo ponto mais alto foi o acordo com o Irã, repercute na auto-estima dos eleitores e reforça a percepção positiva sobre o governo. Serra necessita correr atrás do prejuízo. Os ataques contra a Bolívia são armas que escolheu para essa batalha.
Talvez não tenha sido uma boa tentativa. Não há qualquer fato concreto que dê guarida às acusações. Os relatórios da Polícia Federal sequer confirmam a fronteira boliviana como origem principal do tráfico. Nem mesmo o poderoso DEA, agência norte-americana de combate às drogas, apesar de eventuais escaramuças da Casa Branca com o governo boliviano, corrobora afirmações como as de Serra. Mas o candidato do PSDB não recua.
Sua insistência parece expressar abandono ou abrandamento do chamado discurso pós-lulista. A pasteurização do programa tucano, afinal, não está se demonstrando eficaz como fórmula para diluir o enfrentamento entre projetos e demarcar a sucessão como choque de biografias. O esforço para despolitizar a campanha não tem permitido a Serra conquistar votos indecisos ou de admiradores do governo Lula. Ao contrário: seu próprio campo vai perdendo musculatura.
A inflexão do candidato eventualmente busca resolver esse problema. Aturdido pelo relativo esvaziamento de sua base eleitoral, o tucano trata de radicalizar seus pontos de vista, de sorte a preservar e ampliar o apoio do eleitorado mais conservador. A política internacional foi o terreno escolhido para a nova tática. Serra está sendo levado para um cenário que jamais desejou: o da polarização programática.
Não seria razoável que essa mudança de atitude fosse testada, por exemplo, no debate sobre privatizações ou políticas sociais, no qual o erro poderia se transformar em desastre. O tema definido, além de pautado pela evidência dos fatos internacionais, hipoteticamente é menos sensível à maioria do eleitorado. Por isso Serra se arriscou com a cara e a coragem.
A política internacional do governo Lula possivelmente seja a principal ruptura de fundo com a administração anterior. A geopolítica do período tucano tinha como coluna vertebral o aprofundamento da associação com os países capitalistas centrais. O Brasil deveria buscar seu espaço, nessa doutrina, como sócio menor das potências ocidentais, particularmente dos Estados Unidos.
O norte da política econômica alinhada pelo PSDB era a atração dos fluxos financeiros mundiais, pela qual avidamente trabalharam através de privatizações, desregulamentação do comércio exterior, elevação da taxa de juros e redução da intervenção estatal. A diplomacia tinha função estratégica nessa dinâmica, como vanguarda na aproximação dos círculos decisórios do capital.
Recordemo-nos que o governo Fernando Henrique Cardoso, sob aplausos do então ministro José Serra, foi defensor entusiasta da Alca, a Área de Livre Comércio das Américas. Aceitou participar de negociações secretas, ao redor de um projeto que praticamente eliminaria as salvaguardas das economias nacionais latino-americanas, além de tornar supérfluos blocos regionais como o Mercosul.
A eleição do presidente Lula significou o enterro dessa concepção. A política internacional do novo governo passou a ter como agenda a integração da América Latina, a formação de alianças contrapostas ao unilateralismo e a diversificação dos mercados brasileiros. Passou paulatinamente a deslocar o centro de gravidade das relações diplomáticas e de comércio exterior para fora da órbita de hegemonia dos Estados Unidos.
O núcleo duro dessa política se situa no hemisfério sul do continente. Nessa região concentra-se a estratégia para formar um bloco integrado, com instrumentos independentes de desenvolvimento econômico, soberania política e defesa. Ao menos é essa a aposta do governo brasileiro: um mercado comum com 400 milhões de habitantes, produto interno de USD 4 trilhões, poderosas reservas energéticas e importante nível de industrialização.
Contra essa política se insurge o ex-governador José Serra, ao golpear o Mercosul e, agora, a Bolívia. Parece desejar um retorno à velha doutrina segundo a qual é melhor ser rabo de elefante que cabeça de formiga. Não esconde sua apatia e indisposição contra qualquer projeto nacional que seja concebido como autônomo em relação aos países imperialistas.
Aproveita para flertar com o peculiar nacionalismo das elites, que costuma mesclar o preconceito contra os povos mais pobres e o encantamento pelas nações mais ricas. De alguma maneira vê nesse recurso combustível para inflamar parte do eleitorado contra o governo Lula e sua candidata. Não é propriamente novidade na cultura política de direita.
*Breno Altman é jornalista e diretor editorial do Opera Mundi (www.operamundi.com.br)
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