O outro, no Rio de Janeiro, reuniu militares da reserva, saudosos de uma "imprensa sem censura" sob o regime militar, e jornalistas e personalidades oriundas do conservadorismo anticomunista, também autodenominados "democratas convictos", com o objetivo de "brecar a marcha contra o autoritarismo".
Nesses atos, o presidente Lula foi acusado de investir "contra a liberdade de informação", "criticar a imprensa por divulgar irregularidades na Casa Civil" e incentivar "os inconformados com a democracia representativa" a se organizarem "para solapar o regime democrático". Em ambos, foi tido como "inaceitável que a militância partidária tenha convertido os órgãos da administração direta, empresas estatais e fundos de pensão em centros de produção de dossiês contra adversários políticos".
Lula foi acusado de não entender que seu cargo não permite que, "depois do expediente", possa "aviltar seus adversários políticos", abusar do poder político em "favor de uma candidatura", nem reescrever a História, desmerecendo o trabalho dos que "construíram as bases da estabilidade econômica e política, com o fim da inflação, a democratização do crédito, a expansão da telefonia e outras transformações que tantos benefícios trouxeram ao nosso povo".
Portanto, em São Paulo e no Rio, ouviu-se o mesmo refrão - "brecar a marcha para o autoritarismo", "defender a Constituição, as instituições e a legalidade". Nada muito diferente dos dias que antecederem ao golpe militar de 1964. De qualquer modo, vamos por partes, para não parecer que "desmerecemos" os argumentos apresentados e estamos trazendo à tona fantasmas do passado.
Que medidas concretas o governo, ou a presidência, adotou para investir contra a liberdade de informação e, portanto, contra a Constituição? Que se saiba, nenhuma, nem os reclamantes as apresentaram. Supõe-se, então, que eles consideram as críticas do presidente e de organizações sociais a alguns órgãos de imprensa como "atentados" à liberdade e à Constituição.
No entanto, a Constituição não proíbe críticas. Não proíbe, inclusive, que o cidadão que ocupa a presidência da República as faça. Nem considera que a imprensa, como um todo ou em particular, seja imune a críticas. Portanto, bem vistas as coisas, temos alguns órgãos de imprensa que se acham acima das leis e dos direitos dos outros.
Além disso, a Constituição é explícita ao considerar o direito de defesa como essencial à democracia. Portanto, por que alguns órgãos midiáticos têm o direito de divulgar supostas irregularidades na Casa Civil e o presidente não tem o direito de responder no mesmo tom? Por que algumas pessoas podem dizer que estão sendo produzidos "dossiês contra adversários políticos" e o presidente não pode dizer que tais dossiês são fantasmas, já que ninguém os viu nem foram apresentados?
Tomemos agora a acusação de que Lula e o PT estão "inconformados com a democracia representativa" e se organizam para "solapar o regime democrático". Como um presidente e um partido que podem vencer no primeiro turno da eleição presidencial podem estar "inconformados"? Como a mentira tem perna curta, a razão da acusação ficou evidente quando alguns daqueles "democratas convictos" expressaram seu inconformismo com a possibilidade de o PT e seus aliados elegerem três quintos do Congresso. Para eles, isto será o mesmo que formar uma legislatura de "Tiriricas", onde "conseguirão fazer mudanças constitucionais a seu bel-prazer".
Essa frase condensa todo o inconformismo com a "democracia representativa", que possibilita a vitória eleitoral da situação. Ela exprime a incontida vontade de criar uma situação extra-legal que impeça tal vitória. Quem, então, procura solapar o regime democrático? Foi com esse mesmo tipo de argumento que a UDN e "democratas convictos" arregimentaram os quartéis para implantarem a ditadura.
Do ponto de vista constitucional e eleitoral, não há qualquer dispositivo que proíba um presidente de trabalhar a favor de uma candidatura e de dizer o que pensa sobre a história de governos passados. Aliás, se há alguma crítica a ser feita ao presidente quanto à história do Brasil, ela diz respeito justamente ao fato de que sua tendência à conciliação o impediu de colocar em pratos limpos, desde seu primeiro mandato, a "herança maldita" deixada pelos governos Collor e FHC.
Seu desejo de superar aquela "herança" sem traumas agora o está obrigando a trazer à luz o verdadeiro significado da estabilidade econômica e política da era FHC: estabilidade com subordinação do país ao FMI; fim da inflação com compressão do crescimento, alastramento do desemprego e da miséria; democratização do crédito apenas entre as empresas monopolistas; expansão da telefonia através de uma privatização perniciosa; e outras transformações que, ao invés de trazerem benefícios ao povo, só trouxeram malefícios.
Na verdade, como muito bem reconhece Leonardo Boff, o que está ocorrendo não é "um enfrentamento de idéias" e o "uso legítimo da liberdade da imprensa". O que está havendo é um "abuso" de uma certa imprensa, diante da "previsão de uma derrota eleitoral". O que há é "uma guerra acirrada", dos donos do Estadão, Folha, O Globo e Veja, assim como dos saudosistas do regime militar e de alguns "democratas desavisados", contra Lula e Dilma, na qual "vale tudo: o factóide, a ocultação de fatos, a distorção e a mentira direta".
Essa guerra é, acima de tudo, "uma guerra contra os pobres". Seus promotores não admitem que os pobres pensem, falem e deixem de acreditar nos supostos donos da opinião pública. Boff tem razão em acentuar que estamos diante de "uma questão de classe".
Queriam que o governo Lula se fizesse inimigo do povo, não um indutor de mudanças que beneficiaram milhões. Até aceitariam o desenvolvimento, mas não com inclusão social e distribuição de renda, e menos ainda com canais de participação das classes populares nos assuntos do governo e da sociedade. Isto se tornou intolerável para uma parte considerável da burguesia e seu setor midiático. Por isso, querem a liberdade autoritária de não serem contraditados, nem criticados.
Assim, o que está em jogo vai muito além do que os supostos "democratas convictos" colocam. É pena que eles sequer enxerguem com quem estão andando.
Wladimir Pomar é escritor e analista político.
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