Eleições no RS: uma derrota para o retorno da 'austeridade'
No Rio Grande do Sul, mais do que qualquer outra região do país, a forte presença da classe média nos grandes centros urbanos parece ter sido decisiva.
Tarso Genro, Vinicius Wu e Marcelo Danéris (*)
A derrota do PT nas eleições   ao governo do Rio Grande do Sul pode ser lida de diferentes formas. É   preciso elencar um conjunto de fatores para a compreensão dos motivos   que levaram o eleitor gaúcho a rejeitar um projeto que – segundo as   pesquisas de opinião – possuía um índice de aprovação (mesmo durante o   período eleitoral) bem superior a todos os governos precedentes, desde   que começou esta mensuração. 
A aprovação do Governo da Unidade   Popular nunca baixou de 50%, entre aqueles que declaravam sua opinião,   nas pesquisas feitas tanto pelos institutos da imprensa tradicional,   como naquelas encomendadas pelo Governo. E a soma dos juízos "bom",   "ótimo" e "regular", medidas pelos mesmos institutos de opinião, sempre   foi superior a 70%.  
            
Registre-se três   especificidades gaúchas no cenário nacional, tanto em termos políticos   como sociais, para situar de maneira mais transparente estes resultados   eleitorais:
 
1.   O eleitorado gaúcho é tradicionalmente dividido em três terços" de   preferência política: um terço,  votando "pela esquerda", um terço   votando sempre mais "à direita", formando um polo conservador    tradicional,  e um terço "flutuante" – composto  pelos setores   intermediários da estrutura de classes do Estado-,  que se divide (ou se   agrupa) em torno de alguma candidatura que consiga responder de forma   mais convincente ao seu imaginário imediato; 
2.    No RS dois fortes partidos que apoiam, no cenário nacional, a   Presidenta Dilma, aqui estavam agrupados em torno da candidatura   vencedora -o Partido Progressista, de direita, e o PMDB, este tido   nacionalmente como "centrista, mas que, em nosso Estado, sempre foi uma   força política vigorosamente contra o PT-  e que, sempre, se opôs aos   governos Lula e Dilma;
3. O RS é o   Estado mais endividado da União, e o nosso Governo não só não adotou uma   política de arrocho salarial contra os servidores públicos, mas   concedeu fortes aumentos reais ao funcionalismo, desenvolveu ousadas   políticas sociais protetivas e distributivas e aumentou os   financiamentos para infraestrutura, através de agências nacionais e   internacionais, sempre obedecendo os limites da Lei de Responsabilidade   Fiscal, mas  aumentando a dívida pública e opondo-se, portanto, ao senso   comum,  local e nacional, contracionista e recessivo, para "enfrentar" a   crise. 
Nas próximas linhas são apresentadas algumas pistas à   compreensão de um fenômeno que teve forte impacto sobre o resultado das   urnas, não apenas no estado, mas em todo o país: a reação das camadas   médias e superiores da população às políticas distributivistas e de   redução das desigualdades, levadas a termo pelos governos liderados pela   esquerda no Brasil, através de alianças com formações políticas de   centro ou simplesmente com frações de partidos com implantação regional,   marcados por interesses políticos imediatos. Longe de visar o   esgotamento de uma discussão desta magnitude, nesse breve artigo,   pretende-se explorar um aspecto específico, que teve um peso importante   na conformação do resultado eleitoral, num dos Estados tidos como "mais   politizados" do país.
As eleições de 2014 ficarão marcadas na   história da democracia brasileira como uma das mais acirradas e   surpreendentes disputas que se tem registro no país. O embate eleitoral   evidenciou uma cisão, que opôs os setores populares aos extratos   superiores da sociedade de forma aberta, com reflexo em todas as   regiões. Ocorreu uma clara divisão no eleitorado nacional, que tem   origem na reação das elites neoliberais e da classe média tradicional e   rica, para os padrões nacionais, às políticas sociais desenvolvidas   desde o primeiro governo do Presidente Lula.
Esta cisão está   relacionada à percepção destes segmentos da sociedade, de que as   políticas sociais, de alguma forma, acabam drenando recursos que seriam   necessários à melhoria dos serviços públicos, como transporte, educação,   saúde etc., que realmente deixam muito a desejar. Além disso, a classe   média tradicional sente o peso do aumento do "custo dos serviços", face a   ampliação de direitos e benefícios dos trabalhadores e assalariados em   geral, durante os governos Lula e Dilma (variação de 104% entre 2004 e   2014) impulsionadas, principalmente, pelos aumentos reais, nacionais e   regionais, do Salário Mínimo. 
O peso maior dos serviços, no   orçamento das famílias da classe média tradicional vem, realmente,   reduzindo sua capacidade de consumo, distanciando-as das camadas médias   mais elevadas e aproximando-as das "novas classes médias", em termos de   acesso a bens de consumos duráveis e não-duráveis, serviços de lazer e   turismo, acesso a bens culturais, etc. 
Ao mesmo tempo que as   classes médias tradicionais gastam mais, portanto, para manter o seu   padrão de vida, as classes médias superiores e mais ricas também mudam   seu padrão e entram no circuito financeiro para valorizar as suas   poupanças, aproximando-se, em consequência, do modo de vida especulativo   do rentismo tradicional.
É preciso destacar que aquilo que se   convencionou chamar, no Brasil, de "novas classes médias", são grupos,   tanto emergentes das camadas assalariadas tradicionais que melhoraram   sua capacidade de consumo pelas políticas sociais, educacionais, de   emprego e formação profissional dos governos petistas, bem como foram   impulsionadas por programas novos de inclusão social e produtiva.
 
São   os programas de microcrédito, de absorção de mão de obra qualificada   por grandes obras públicas, as novas políticas de estímulo às   agroindústrias familiares, as novas formas de trabalho autônomo e   empregabilidade, originários tanto das novas tecnologias informacionais   como dos novos processos de organização do trabalho e dos novos tipos de   prestação de serviços e produção de lazer e cultura, nos centros e nas   periferias das grandes regiões metropolitanas.  
O receio de ver   seu "status" social reduzido e a percepção, cada vez maior, de que sua   condição econômica se aproxima daquela obtida pelos setores que   emergiram nos últimos anos (classes "C" e "D") conduz significativos   setores intermediários da sociedade a alimentarem, com mais força,   nestas eleições, um sentimento contrário a políticas de cunho "social" e   uma reação quase orgânica, destes setores, às forças e partidos de   esquerda e progressistas, especialmente contra o Partido dos   Trabalhadores, fenômeno conhecido como "antipetismo". 
Há, em   andamento, ainda que de forma germinal, um "fascismo societal",   reproduzindo-se nestes meios, ainda não conformado como ideologia   plenamente configurada, mas já espontaneamente acionado por atos   violentos contra quem identificam como "petista" ou "esquerdista", nos   movimentos de rua. Pela primeira vez depois do regime militar, setores   intermediários da sociedade, principalmente os mais elevados, passam a   reproduzir o que já era bastante comum em São Paulo: um incontido ódio   de classe aos militantes dos movimentos sociais e às lideranças   populares de esquerda.    
Este sentimento atinge,   principalmente, a classe média tradicional, fortemente nas camadas   médias superiores e nas camadas mais ricas, mas, que em virtude da força   dos meios de comunicação que martelam contra a "política", contra os   partidos, contra as instituições democráticas do Estado como o   Parlamento, diariamente, alastrar-se, parcialmente, entre os setores de   renda inferiores e também, ainda que em menor proporção, os que compõem   as "novas classes médias", emergentes nos governos Lula e Dilma.
Evidentemente   que o tema da corrupção, metodicamente retomado como elemento inerente   aos partidos de esquerda, e a criminalização da política em um sentido   mais geral, através de um trabalho sistemático e meticuloso da grande   mídia (para a consolidação de uma imagem negativa, em especial, a   respeito do papel do PT na cena política nacional), também contribuíram   para a disseminação de uma crítica negativa aos governos do campo   popular, nestes setores da sociedade. Isso teve forte impacto na   sociedade gaúcha.
O Rio Grande do Sul, por sua conformação   econômica e social, nos últimos pleitos tem sido um terreno fértil para a   expansão desse tipo de reação ao petismo, em especial nos centros mais   dinâmicos economicamente, como a região da Serra e, em parte, na   metropolitana de Porto Alegre. Nestas regiões, aquelas classes médias   tradicionais e seus porta-vozes nos grandes veículos de mídia, exercem   uma influência expressiva sobre a formação da opinião pública, mesmo   entre os setores populares. Desnecessário dizer que a esquerda em geral e   os seus governos, não só não tem nenhum apoio desta mídia, mas sofrem   uma discriminação crescente para informar das suas mais elementares   realizações
O governo da Unidade Popular pelo Rio Grande   (coalizão formada pelo PT, pelo PCdoB e outros partidos de centro e   centro-esquerda), optou por aplicar no estado um programa marcado pela   promoção da redução das desigualdades sociais e regionais. Para isso,   promoveu uma profunda inversão em relação ao governo anterior, liderado   pelo PSDB, ancorado sob a perspectiva do "déficit zero" (nome local da   "austeridade", não livre dos seus tradicionais mecanismo de corrupção) e   do "enxugamento" do setor público, com o correspondente arrocho   salarial contra os servidores públicos, que não foi desaprovado pela   maioria do eleitorado.
Oferecemos aqui alguns dados sumários, que   resultaram do nosso Programa de Governo: a região metropolitana tem,   atualmente, o menor índice de desemprego dos últimos 24 anos (3,7%); no   ano de 2013, auge do nosso governo -período no qual nossas políticas   sociais e de desenvolvimento mostravam seus resultados no território- a   renda das famílias gaúchas cresceu em dobro do que cresceu a renda média   das famílias brasileiras; o Governo do Estado financiou 7,3 bilhões de   reais, para o setor agrícola do RS, principalmente para as Cooperativas,   para a agricultura familiar e para os assentados da reforma agrária,   com créditos subsidiados e subsídios diretos, em quatro Planos Safras   estaduais, que nenhum Estado do país dispõe; os professores do Estado,   para exemplificar as políticas anti-arrocho salarial no serviço público,   tiveram um aumento salarial real, de 50% em quatro anos, o maior   aumento real da história do Magistério público.
O governo gaúcho   também investiu, com recursos próprios e oriundos da União, em torno de   R$ 1,5 bilhão em políticas sociais e de transferência de renda entre   2011 e 2014. Além disso, deu início a uma política estadual de   recuperação do salário-mínimo regional, que elevou o piso regional a um   valor 20% superior ao praticado no restante do país (o aumento real do   salário-mínimo regional, também causou uma reação negativa, em cadeia,   naqueles setores médios, pois o aumento deste piso regional "encareceu" o   custo dos serviços domésticos, que constituem uma histórica comodidade   das famílias gaúchas, há séculos). 
Da mesma forma, setores do   grande empresariado apesar de estimulados pela democratização dos novos   incentivos fiscais para atrair, com sucesso, novos investimentos no   Estado e não confrontados com qualquer aumento de impostos (e   participantes ativos dos diálogos de gestão através do CDES, da Sala do   Investidor e da Sala de Gestão) não toleraram as políticas de   distribuição de renda e ampliação de benefícios sociais, especialmente a   valorização real do Salário Mínimo Regional.
 
O combate às   desigualdades regionais também levou o atual governo a investir recursos   oriundos de financiamentos nacionais e internacionais em ações voltadas   à melhoria das condições de infraestrutura e mobilidade em regiões de   baixo dinamismo econômico. Além disso, direcionou-se a ação dos bancos   públicos ao atendimento de necessidades estruturais daquelas regiões,   nas quais, historicamente, tem havido um nível precário de investimentos   para a renovação das estruturas produtivas locais.
A situação   financeira do Estado e o atraso na mudança dos indexadores da dívida   pública, proporcionado pela própria burocracia do Ministério da Fazenda   (preocupada com os efeitos da reestruturação junto às "agências de   risco", ou seja, preocupada com o "comitê central" da especulação   mundial)  – em tramitação no Congresso Nacional – reduziram a capacidade   do governo em projetar credibilidade para manejar no futuro esta   questão da dívida. Tal reestruturação seria importante para programar   investimentos nas grandes aglomerações urbanas, em que pese o incremento   de investimentos nestas regiões terem sido bem superiores ao que vinha   sendo praticado no Estado, nas últimas décadas. 
Na saúde, por   exemplo, o atual governo logrou aplicar, pela primeira vez na história,   12% da sua receita líquida, quase dobrando os recursos para a área,   destinados pelos governos precedentes, mesmo sendo um serviço de   responsabilidade compartilhada entre União, Estados e Municípios .
As   eleições no Rio Grande do Sul, em 2014, reproduziram – de forma intensa   – os principais sintomas da disputa nacional entre o projeto   representado pelo PT e seus aliados históricos ou conjunturais e os   movimentos sociais, de um lado, e, de outro, os partidos e   representações do campo conservador e neoliberal.  Porém, com um   agravante: no Rio Grande, mais do que qualquer outra região, a forte   presença da classe média nos grandes centros urbanos parece ter sido   decisiva para a consolidação de uma opinião negativa a respeito das   estratégias distributivistas e de deslocamento de renda para "os   pobres", que foi a marca do atual governo gaúcho. 
Assim, a   coalizão de centro-direita, vencedora, com apoio militante da extrema   direita e da inteligência acadêmica neoliberal, venceram a disputa pelo   imaginário político dos setores médios e ainda capturaram parte da   Classe "C". E o fizeram promovendo uma mistura de discursos   ético-moralistas, criminalização da política e dos partidos, disputa   ideológica e de classe (contra a esquerda), oposição à ampliação de   políticas sociais, semeando preconceito contra minorias (LGBT, índios,   negros), alarmando a crise financeira histórica do Estado e atribuindo-a   ao atual Governo. Negando-se, também, a oferecer alternativas e   ampliando, através da mídia hegemônica, a insatisfação sobre demandas   historicamente não atendidas, como as questões da mobilidade e da saúde.   Foi um discurso que, aqui, encontrou terreno fértil: numa sociedade   que, desde o fim do regime militar, quando começou a possibilidade de   reeleição, jamais reelegeu seus governadores e que parece considerar a   "mudança" um valor "em si", na maior parte das vezes, independentemente   da qualidade e da direção na qual ela vai se desdobrar.
Também   pesou, sobremaneira, a influência da mídia hegemônica que, no Rio Grande   do Sul, possui um peso desproporcional se comparado a outros estados. O   bloqueio informativo imposto pelo principal grupo de comunicação do   Estado, durante os três primeiros anos do nosso governo e que só cessou   no ano eleitoral (associado à incapacidade do governo em desenvolver uma   estratégia autônoma de comunicação), foi também decisivo para a   conformação da forte resistência ao nosso projeto, nos setores médios   urbanos.
O que se procurou demonstrar neste texto foi a   importância da reação dos setores médios a uma estratégia política   sustentada na redução das desigualdades sociais e regionais, para o   desfecho do processo eleitoral no Estado. É uma abordagem parcial, que   não dá conta de todos os aspectos que devem compor uma análise mais   abrangente das eleições no Estado, que deve considerar -por exemplo- o   excesso de confiança, da nossa parte, de que os programas do governo,   desdobrados em todo o território, criariam uma vasta rede de apoio na   estrutura de classes da sociedade gaúcha a nossa reeleição, o que se   demonstrou como um engano fatal. Os "problemas", amplificados pela mídia   oposicionista, mostraram-se mais fortes para promover a neutralização   das conquistas para os "de baixo", do que os nossos programas para   convencer a sociedade dos avanços democráticos e sociais em curso.
 
A   referida reação dos setores médios pôde ser verificada, igualmente, nas   eleições nacionais e explica, em grande medida, o resultado eleitoral   em São Paulo, na disputa presidencial, onde se formou um verdadeiro   bloqueio ao projeto representado pelo PT no plano nacional. A superação   desse bloqueio junto aos setores médios tradicionais da sociedade   brasileira – que demanda respostas consistentes voltadas à qualificação   dos serviços públicos e ao combate à corrupção – é um dos principais   desafios que se apresentam para a esquerda brasileira e o governo Dilma,   no próximo período.
Finalmente, é bom registrar que a   repercussões dos movimentos de junho de 2013 (que, do ponto de vista   popular, expressaram uma grade insatisfação com os serviços de saúde,   transporte e segurança, nas grandes regiões metropolitanas), não só não   fortaleceram a esquerda (ou mesmo o esquerdismo voluntarista e   corporativo nas eleições), como alimentaram votos na direita e na   extrema-direita no pleito nacional e regional. 
         
Aquelas   mobilizações permaneceram fortes enquanto foram apoiadas pela Rede Globo   e jogadas contra o Governo Federal. Decresceram quando os lutadores dos   movimentos sociais e os autonomistas, em geral, apresentaram a sua face   anticapitalista e contra o sistema, quando passaram a ser bombardeados   pela mídia. A grande mídia, que dizia que o Brasil "estava acordando",   passou a propagar que, afinal, não acordassem tanto a ponto de localizar   este capitalismo predatório, protagonizado pelo capital financeiro   especulativo, como seu inimigo principal.
 
(*) Tarso Genro é   Governador do Estado do Rio Grande do Sul. Vinícius Wu é Secretário   Geral de Governo do RS, e Marcelo Danéris é Secretário do Conselho de   Desenvolvimento Econômico e Social do RS (CDES-RS)
                      
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