"Se você não está em dúvida é porque foi mal informado"
Cineasta gaúcho Jorge Furtado debate a mídia no filme O Mercado de Notícias
06/06/2013
Maria do Rosário Caetano,
de São Paulo (SP)
"Se você não está em dúvida é porque foi mal informado". Esta frase, concebida para o cartaz do novo filme de Jorge Furtado – O Mercado de Notícias – define bem o estado de espírito do roteirista e diretor gaúcho, desde que, sete anos atrás, decidiu realizar documentário que refletisse sobre o jornalismo político brasileiro.
Para transformar as ideias que fertilizaram O Mercado de Notícias em longa-metragem, Jorge Furtado buscou no teatro elisabetano, uma de suas maiores paixões, parte de sua matéria-prima. Leitor atento de Willian Shakespeare, ele pouco sabia de Ben Jonson (1572-1637). Descobriu que o dramaturgo britânico escrevera, em 1625, a peça The Staple of News, na qual refletia, com humor e inteligência, sobre a atividade então nascente: o jornalismo impresso.
Jorge leu a peça em inglês. Ficou tão entusiasmado, que resolveu traduzi-la para o português. O fez em parceria com Liziane Kugland, com quem trabalhara na tradução dos livros Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho e o que Alice encontrou Lá, ambos de Lewis Carroll. O cineasta acredita que, agora, O Mercado de Notícias, título que ele e Liziane deram à peça inglesa, será finalmente publicado no Brasil. E torce, também, para que a peça ganhe de novo os palcos (inclusive ingleses). E, quem sabe, faça sua estreia em um teatro brasileiro.
"Ao que me consta" – diz o cineasta – The Staple of News não é montada na Inglaterra desde o século 17. Se alguém souber da existência de alguma montagem, em qualquer época ou lugar, por favor, me avise".
O filme O Mercado de Notícias se compõe com 13 depoimentos de grandes nomes do jornalismo brasileiro, material de arquivo (sobre a imprensa) e trechos da peça de Ben Jonson. "Filmei, com atores gaúchos (entre eles, Janaína Kremer, Nelson Diniz, Sérgio Lulkin e Zé Adão Barbosa), todo o processo de ensaio, desde a primeira leitura. Esta é a primeira montagem da peça no Brasil e foi feita especialmente para o filme".
Nesta entrevista ao Brasil de Fato, Jorge Furtado, 53 anos, autor do seminal Ilha das Flores, fala de jornalismo e dos dois filmes que o ocupam neste momento, pois, além de O Mercado de Notícias, ele está pré-produzindo Beleza, sua volta à ficção.
Brasil de Fato – O longa-metragem O Mercado de Notícias, que você está filmando, é uma ideia nova ou a matriz dele vem de "O Povo e Em Nome do Povo", projeto que desenvolveu (e acalentou) por muitos anos?
Jorge Furtado – O projeto é relativamente novo (tem sete anos), embora alguns temas já estivessem presentes no projeto O Povo e o em Nome do Povo (este bem mais antigo). Jornalismo é um assunto que me interessa, escrevo às vezes sobre o tema em meu blog, cursei a faculdade de jornalismo. Lendo A História Social da Mídia (de Peter Burke e Asa Briggs), fiquei sabendo da existência desta peça de Ben Jonson (The Staple of News), escrita em 1625, apenas quatro anos depois do surgimento do primeiro jornal em língua inglesa (O Coranto Britânico, de 1621). Jonson faz uma crítica certeira, precisa, sobre as mazelas de uma atividade recém-criada. O texto é assustadoramente atual.
Eric Hobsbawn constata, no livro Tempos Fraturados, o "declínio dos grandes intelectuais protestativos". Ao realizar um filme que discute "o mercado de notícias", ou seja, a mídia, você tenta de alguma forma resgatar este papel de intelectual que interfere em questões candentes de seu tempo? Digo isto, porque na internet, você vem enfrentando questões polêmicas com muita coragem.
Não sou um intelectual (conheço alguns intelectuais de verdade), mas isso não me impede de pensar. (Como ensinou o Millôr, "livre pensar é só pensar".) A defesa da verdade factual, princípio básico do jornalismo, é vital para a sobrevivência humana. Sem jornalistas, pessoas que se dedicam a buscar e compartilhar a verdade, não há democracia. Espero que o filme possa ser usado nas escolas, universidades, pois trata-se de uma defesa do bom jornalismo.
Neste novo filme, você soma documentário (reflexões de treze jornalistas sobre seu ofício) e trechos de filmes (material de arquivo) a inserções ficcionais (atores interpretando trechos da peça O Mercado de Notícias), de Jonson, contemporâneo de Shakespeare. Foi a paixão por Shakespeare que o levou ao colega inglês?
Devo a descoberta da peça ao livro do Peter Burke e Asa Briggs. Meu enorme interesse por ela se deve ao fato de juntar duas áreas pelas quais tenho interesse, o jornalismo político e o teatro elisabetano. Shakespeare é uma espécie de sol que ofusca todas as outras estrelas, mas o gênio de Ben Jonson – talvez seu maior amigo entre os dramaturgos e o primeiro a reconhecer a grandeza de sua obra – também é espantoso. Jonson era um cronista de sua época, ao contrário de Shakespeare que, mesmo nas suas muitas comédias, se dedicava aos temas clássicos. O teatro, especialmente a comédia, cumpria a função de criticar os costumes políticos e sociais, tarefa que o jornalismo veio, parcialmente, a exercer (embora as telenovelas, ainda hoje, tenham mais audiência que os telejornais). Jonson, em O Mercado de Notícias, retrata momento de profunda transformação social, de mudança de paradigmas na circulação de informações, com o surgimento da imprensa. Até ali, somente os nobres e muito ricos tinham acesso aos relatos manuscritos dos viajantes, ou aos caríssimos livros feitos à mão. Os responsáveis pela propagação das más e boas novas entre os plebeus eram os barbeiros. Um barbeiro querendo virar jornalista é um dos personagens principais da trama de Jonson. A imprensa mudou tudo. Vivemos hoje uma ruptura semelhante, com a internet e as mídias sociais transformando cada consumidor também num produtor de informações, o que impede (ou, ao menos, dificulta muito) a formação artificial de consensos. Os diários de papel estão com os dias contados, mas a profissão de jornalista seguirá sendo vital para a civilização.
Como se deu a seleção dos treze jornalistas que dão depoimento ao filme (Bob Fernandes, Cristiana Lobo, Fernando Rodrigues, Geneton Moraes Neto, Janio de Freitas, José Roberto de Toledo, Leandro Fortes, Luis Nassif, Mauricio Dias, Mino Carta, Paulo Moreira Leite, Raimundo Pereira, Renata Lo Prete)?
Acredito que existem bons profissionais em quase todos os veículos. Convidei jornalistas que admiro, respeito, leio, embora nem sempre concorde com tudo o que eles dizem ou escrevem, é claro, eles mesmos discordam entre si sobre várias coisas. A democracia pressupõe conflitos e nenhum debate deve ser interditado. Evidentemente, há muitos outros bons jornalistas no país, mas havia um limite de tempo do filme. Tentei, mas não consegui, por problemas de agenda, entrevistar o Caco Barcelos, e o Marcelo Tas, não foi possível. Convidei o Elio Gaspari, ele não aceitou, não dá entrevistas.
O humor é uma marca de seu trabalho. Como ele entra em O Mercado de Notícias? Jonson, autor de Volpone, dedicou-se à comédia. Mas um texto escrito em 1625 (século 17), fará rir – e refletir – espectadores do século 21?
Eu espero que sim. A peça de Jonson é uma comédia, tem ótimas piadas, e o filme terá momentos de humor. O texto de Jonson é brilhante, muito crítico e extremamente atual. Veja, por exemplo, a definição que ele faz de alguns jornais, recém-criados: "são notícias criadas à moda de hoje (vigarices semanais feitas para ganhar dinheiro), e não haveria melhor forma para criticá-las do que construir esta ridícula agência, este Mercado, onde cada época pode ver sua própria insensatez, sua fome e sede de panfletos de notícias, que saem às ruas todos os sábados, mas são escritos por quem não sai de casa, sem uma sílaba de verdade. Não pode haver doença pior na natureza, nem piada mais sórdida sobre nossa época". Isto é Ben Jonson, texto de 1625!
Como você, um cineasta, roteirista e cidadão se relaciona com os jornais, revistas e telejornais brasileiros? Você os acompanha ou está tão insatisfeito que os evita?
O tag line (aquela frase depois do título, no cartaz) do meu filme é "Se você não está em dúvida é porque foi mal informado". Acredito que a única maneira de se manter bem informado é ter mais de uma fonte. Leio diariamente um jornal local (Zero Hora) e pelo menos um jornal de circulação nacional (geralmente a Folha ou o Estado) , além de alguns blogs (Nassif, Leandro Fortes, Paulo Moreira Leite...) através de agregadores de notícias (por exemplo o Poliarquia: http://poliarquia.com.br/). Assino a Carta Capital. Eventualmente, assisto a alguns telejornais da Globonews.
O polêmico ministro Joaquim Barbosa, presidente de STF, disse,- em palestra na Costa Rica, que a imprensa brasileira é branca (são raros os negros em postos-chave), conservadora e nada pluralista. Você concorda com ele?
Ele disse mais: que a grande imprensa brasileira é de direita, o que é a pura verdade. Pena que o ministro Joaquim Barbosa, com sua metralhadora giratória (não esqueçam que ele acusou seu colega de corte Gilmar Mendes de ter capangas e de estar destruindo a credibilidade da justiça brasileira), frequentemente provoque estragos nas instituições democráticas, que deveria defender, incluindo a Constituição e o Congresso. Sua atuação no julgamento do mensalão teve momentos constrangedores e suas críticas ao Congresso Nacional são por vezes grosseiras. Por exemplo, Joaquim Barbosa disse, está gravado, que ninguém sabe em quem votou nas últimas eleições. Não é verdade. Eu sei em quem votei, há três representantes meus no Congresso Nacional e eles não me decepcionaram, são bons políticos fazendo um trabalho sério, em diferentes partidos. Que eu saiba, o Ministro Joaquim Barbosa não tem procuração para falar em nome do povo brasileiro, seu dever é defender a Constituição. Se ele quer fazer política deveria se candidatar.
Na Argentina, país vizinho ao Brasil, há dois grandes jornais diários (El Clarín e La Nación) e um terceiro, de menor circulação, mas presente na maioria das bancas, Pagina 12. Os dois primeiros seriam jornais conservadores (ou liberais) e o terceiro, um jornal de esquerda. Por que, no Brasil, as esquerdas nunca conseguiram editar um jornal diário de alcance nacional? Só conseguiram, por tempo não muito longo, editar publicações alternativas, como Opinião, Movimento, Pasquim.
Não sei, imagino que seja porque a elite brasileira (elite intelectual, letrada, não a elite econômica, esta é praticamente analfabeta) seja muito menor, proporcionalmente, que a argentina. É a elite quem mais lê jornais. A antiga imprensa brasileira é monocórdia, fala a um mesmo público, cada vez menor e cada vez mais conservador.
Haverá espaço, em O Mercado de Notícias, para debater o tratamento que a imprensa dá a personagens como o ex-presidente Lula, ou você trabalhará em plano mais geral, sem se ater a casos específicos?
O filme pretende ser durável, falar do jornalismo em tese, mas sim, haverá espaço para alguns casos exemplares sobre a cobertura da imprensa em diferentes governos, incluindo os governos Lula e Dilma. O projeto inclui, além do filme, um site (www.omercadodenoticias.com.br) que deve entrar no ar junto com o filme. O site vai ter as entrevistas com os treze jornalistas em versão completa, algumas duram quase uma hora. Também faremos uma edição por tema, que pode ser útil nas escolas. O site também trará trechos mais longos da peça e todas as fontes de pesquisa do filme Beleza.
Depois de O Mercado de Notícias, você voltará à ficção com Beleza. O Rio Grande do Sul é a "pátria" de Giselle Bundchen e de outras beldades de padrão internacional. Como você abordará a questão da ditadura da beleza, que privilegia a pele branca, olhos azuis (ou verdes) e corpos esguios e longilíneos?
Um filme não é, não deve ser, uma tese. Os personagens do filme (Beleza) não questionam o padrão estabelecido pelo mercado da moda para as modelos. É uma história de amor, a política (ou sociologia) passa ao fundo, longe.
Embora o Rio Grande do Sul, em especial Porto Alegre, tenha significativa população negra, há quem diga que o estado não valoriza os afro-brasileiros. Na maioria dos seus filmes, os negros ocupam papeis-chave. Vide O Dia Que Dorival Encarou a Guarda (parceria com Zé Pedro Goulart), O Homem Que Copiava e Meu Tio Matou um Cara (nos quais se destaca o ator Lázaro Ramos) e Saneamento Básico (no qual Lázaro faz, digamos, seu alterego: um cineasta). Em Beleza, você abordará o pouco espaço reservado às modelos negras?
Há quem diga de tudo, como diz meu amigo Arthur de Farias, "não há o que não haja". O Rio Grande do Sul já teve um governador negro, tem um senador negro, teve uma miss Brasil negra, é bom lembrar de Lupicínio Rodrigues, Tesourinha, Daiane dos Santos. Há racismo por aqui, é claro, mas ele não é menor em São Paulo, Rio de Janeiro ou Bahia. Os personagens negros dos meus filmes tinham sentido em cada uma das histórias. Neste filme (Beleza), não faz sentido que a personagem, filha de imigrantes europeus, vivendo no interior do Rio Grande do Sul, seja negra.
Filmografia de Jorge Furtado
2012 – Doce de mãe (telefilme)
2012 – A História do amor (série de tv)
2011 – Homens de bem (telefilme)
2011 – Até a vista (curta-metragem)
2010 – Velazquez e a teoria quântica da gravidade (curta-metragem)
2009 – Decamerão – A Comédia do Sexo (série de TV)
2007 – Rummikub (curta-metragem)
2007 – Saneamento básico, o filme
2004 – Meu tio matou um cara
2004 – Oscar Boz (curta-metragem)
2003 – O homem que copiava
2003 – Cena aberta (série de TV)
2002 – Houve uma vez dois verões
2000 – Meia encarnada dura de sangue (especial de TV)
2000 – O sanduíche (curta-metragem)
1999 – Luna Caliente (minissérie de TV)
1997 – Anchietanos (especial de TV)
1997 – Ângelo anda sumido (curta-metragem)
1995 – Estrada (curta-metragem) (episódio do longa "Felicidade é…")
1994 – A matadeira (curta-metragem) (episódio do longa "Os 7 sacramentos de Canudos")
1994 – Veja bem (curta-metragem)
1991 – Esta não é a sua vida (curta-metragem)
1989 – Ilha das Flores (curta-metragem)
1988 – Barbosa (curta-metragem)
1986 – O dia em que Dorival encarou a guarda (curta-metragem)
1984 – Temporal (curta-metragem)
Fotos: Divulgação
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