Atos mobilizam centenas pela memória, verdade e justiça no RS
Nos últimos dias, mobilizações reuniram centenas de pessoas em Porto Alegre, Três Passos e Caxias do Sul em defesa do resgate da memória do período da ditadura e da punição dos agentes do Estado que cometeram crimes contra os opositores. Em Porto Alegre, foi feita a identificação do local do antigo Quartel da 6ª Companhia da Polícia do Exército, utilizado como centro de prisão e tortura durante a ditadura no Brasil. Com cartazes, músicas e fortes discursos os participantes homenagearam o Capitão Carlos Lamarca – que na época cumpria serviço no quartel.
Vânia Barbosa (*)
Porto Alegre - Com forte mobilização o Comitê Popular Memória, Verdade e Justiça do RS levou centenas de pessoas a participar, na última terça-feira (28), do ato político na Praça Raul Pilla, no centro da Capital, para identificar o local do antigo Quartel da 6ª Companhia da Polícia do Exército, utilizado como centro de prisão e tortura durante a ditadura no Brasil.
O ato foi conduzido pelo Secretário de Políticas Sindicais da CUT-RS, Henrique Pereira, e Antonio Lima, liderança do Levante Popular da Juventude. Na abertura foi lido um manifesto destacando figuras ilustres detidas no quartel e denunciando os responsáveis pela prisão e tortura do Sargento Manoel Raimundo Soares. O documento pede, ainda, a reinterpretação da Lei da Anistia, sancionada, há 33 anos, no dia 28 de agosto, pelo General João Batista Figueiredo. A Lei 6683/1979 foi revalidada pelo Supremo Tribunal Federal, em abril de 2010, e na sua avaliação iguala torturadores e torturados, o que em tese impede a punição dos agentes do Estado que cometeram crimes contra os opositores ao regime.
Com cartazes, músicas e fortes discursos os participantes homenagearam o Capitão Carlos Lamarca – que na época cumpria serviço no quartel, o sargento Manoel Raimundo Soares, conhecido como o “Caso das Mãos Amarradas” e o Coronel da Força Aérea Brasileira, Alfredo Ribeiro Daudt, que teve a fuga do quartel facilitada por Lamarca e após viveu um longo exílio no Uruguai.
Outros detidos na 6ª PE participaram do ato e destacaram em suas falas companheiros, muitos deles com os quais dividiram o tempo de prisão. Amadeu Felipe e Jacques Dornellas, combatentes da Guerrilha de Caparaó, formada por um grupo de sargentos que se rebelou contra o golpe de 64 comandados por Felipe, no final do ano de 1966 e início de 1967, na divisa dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Também o civil Lairton Ripoll, cujo depoimento comprova que no quartel não estiveram detidos apenas militares. Os ex-presos também identificaram onde ficavam as celas e o local das torturas.
Tanto Amadeu Felipe quanto lideranças do Comitê revelaram os nomes dos militares que em 1966 serviam na 6ª Companhia da PE e estavam envolvidos no sequestro e tortura de Raimundo Soares. São eles: o Capitão do Exército, Comandante da 6ª Cia da PE-RS, Darci Gomes Prange, que deu a ordem de sequestro; os sargentos do exército Carlos Otto Bock e Nilton Aguinadas, sequestradores e “Nunes”, 1º Tenente do Exército e “Pedroso”, 2º Sargento do Exército, torturadores.
Manifestaram-se, ainda, autoridades como o Procurador-Geral do Estado, Carlos Henrique Kaipper, representando o Governador Tarso Genro, o ex-governador gaúcho Olívio Dutra (PT), o presidente estadual do PC do B, deputado Raul Carrion e o deputado Nelsinho Metalúrgico (PT). Também o Capitão José Wilson, o Tenente vermelho, bem como Alfredo Daudt que veio de Santa Catarina especialmente para o ato.
Sob forte emoção foram lidas cartas enviadas por Raimundo Soares a sua esposa Betinha, escritas enquanto esteve preso na Ilha do Presídio e no DOPS. O Levante Popular da Juventude fez um escracho para denunciar os atos da ditadura e leu a “Poesia que alimenta a nossa luta”, de autoria de Erick Feitosa, documento referencial do Levante pela memória, verdade e justiça.
No encerramento militantes do Movimento dos Trabalhadores Desempregados – MTD denunciaram que a impunidade dos crimes da ditadura ainda hoje se reflete nas ações dos agentes do Estado que atuam com poder de prisão e execução, principalmente contra as populações menos favorecidas. Pediram aos presentes que dessem as mãos e juntos prestassem o juramento em defesa da democracia, contra a violência e a impunidade e pela justiça social no Brasil.
Estiveram presentes ex-presos políticos como Indio Vargas, Jaime Rodrigues, Paulo Flores e Claudio Nascimento, e o jornalista Lino Brum Filho, irmão do militante da Guerrilha do Araguaia, Cilon Cunha Brum, assassinado e desaparecido na ditadura.
Também, entre outros, representantes do Comitê Paulista Memória Verdade e Justiça e dos seguintes partidos políticos, movimentos sociais e centrais sindicais: JSPDT; UJR; PCR; PT; PDT; FENET; FEAB/RS; Associação dos Sociólogos do RS; Fundação Maurício Grabois, Sindicato dos Advogados do RS; MJDHRS, MPA/Via Campesina; Instituto Olga Benário; CUT/RS; MST; CTB; CPT/RS; Levante Popular da Juventude; MTD; ACJM/RS; Federação dos Metalúrgicos/RS e Sindicato dos Metalúrgicos de Canoas, além de estudantes, historiadores, professores universitários e demais militantes sociais.
Posteriormente os vídeos dos atos serão amplamente divulgados e os depoimentos e contatos dos ex-presos políticos encaminhados aos membros da Comissão Estadual da Verdade.
Três Passos
Simultaneamente ao ato em Porto Alegre o Comitê Popular Memória, Verdade, e Justiça, representado por Calino Pacheco, Romario Rosseto e Anderson Barreto, realizou duas manifestações em Três Passos, com a participação de ex-presos políticos e familiares, moradores da região e dezenas de militantes do Levante Popular da Juventude, MPA/Via Campesina, MST, Sindicato dos Metalúrgicos de Horizontina e Sindicato dos Comerciários.
Liderados por Anderson Barreto, também do Levante Popular da Juventude, militantes do movimento realizaram um escracho silencioso em frente ao Hospital de Caridade para denunciar que em maio de 1970 centenas de pessoas foram presas e torturadas no local. Anderson ressaltou que a manifestação pacifica que estava ocorrendo tinha o objetivo de inserir na história da ditadura do Brasil os tristes acontecimentos que ocorreram na cidade, e que envolveram, ainda, moradores de outros municípios.
A manifestação foi seguida de uma passeata até a Praça Reneu Geraldino Mertz, vereador da oposição e preso político e posteriormente prefeito da Cidade. Na abertura foi lido o Manifesto de Três Passos que propõe, entre outros compromissos, o empenho pela reinterpretação da Lei da Anistia e a punição dos torturadores que cometerem crimes de lesa-humanidade, como o tenente –coronel Paulo Malhães, do DOI – CODI, do Rio de Janeiro, que junto com o DOPS gaúcho comandou as perseguições, prisões e torturas de moradores da região.
O italiano Roberto de Fortini, comandante local do Var – Palmares, veio da Argentina especialmente para o ato, e destacou que Três Passos é uma terra de progresso, uma terra de sangue revolucionário, lembrando que perto dali também passou a Coluna Prestes, “a coluna que mais caminhou e marchou na história da humanidade”. Fortini emigrou da Itália aos 14 anos quando terminou a Segunda Guerra Mundial e contou que conheceu bem o que é o fascismo e o nazismo, pois aos 9 anos viu pessoas sendo fuziladas e famílias destruídas, e isso não saiu da sua memória.
Após o golpe de 64 entendeu que era preciso reagir, pois o Brasil estava ameaçado de um novo nazismo, um novo fascismo. Tinha uma obrigação de origem, porque o pai foi guerrilheiro, lutou contra o fascismo. E junto com outros companheiros assumiu o comando da VPR para resistir e com a responsabilidade de criar uma linha de infraestrutura – não só militar mas também de civis - e logística na região da fronteira, considerada estratégica e onde muitas pessoas já compartilhavam as ideias revolucionárias.
Com a descoberta do grupo, moradores não só de Três Passos, mas de toda a Região, foram presos e torturados selvagemente. Muitos apenas por serem amigos ou por cumprimentarem os revolucionários. Roberto de Fortini lamentou que ao contrário de outros países como Argentina e Uruguai, no Brasil os torturadores ainda estão soltos e impunes.
Romário Rosseto, liderança do MPA/Via Campesina, destacou que o ato na Praça Reneu Mertz ocorria para homenagear um grande homem que se colocou contra a ditadura e que por isso foi torturado. “A mesma ditadura que os militares tentaram convencer a sociedade brasileira de que se tratava de uma revolução”. Segundo Rosseto, infelizmente no Brasil camponeses ainda são assassinados, a exemplo do que ocorria na ditadura. As mortes não constam não constam nos dados oficias e os assassinos permanecem impunes, afirmou. E para que não aconteça mais este tipo de tortura, defendeu a necessidade de discutir os atos de repressão no âmbito dos sindicatos, dos movimentos, universidades e escolas, entre outros. Romário afirmou que “é inconcebível que mesmo morando a 100 km de Três Passos e estudando a história do RS e do Brasil desconhecesse as prisões e torturas que ocorreram no município”.
José Trindade, advogado e ex-preso político e também ex – vereador de oposição na época denunciou a noite terrível em que foi protagonista e assistiu a longa e coletiva sessão de torturas contra militantes, incluindo, ainda, pessoas que desconheciam o que estava ocorrendo na região. Trindade afirmou que a população de Três Passos até hoje não esquece as perseguições e violências que aterrorizaram os moradores e não vai admitir que ocorram outros atos semelhantes.
O jovem “Xiru”, militante do MST, ressaltou que ali ocorria um encontro de guerreiros que lutavam por democracia e justiça social. Para ele a ditadura no Brasil escancarou os interesses daqueles que defendiam um sistema capitalista, e ao longo do tempo os golpistas foram soterrando a história da classe trabalhadora e escrevendo a história da burguesia. Então precisamos reescrever a história e revelar quem realmente merece justiça e reconhecimento neste país, concluiu.
Bastante emocionada, Clarissa, a filha de Reneu Geraldino Mertz, destacou que os acontecimentos que ocorreram em Três Passos não foram apenas pela questão geográfica de fronteiras entre países e estados, mas porque alia existiam e resistiam lideranças democráticas. Lembrou que seu pai antes de ser uma liderança política se tornara uma liderança familiar, e que as torturas não aconteceram apenas na prisão, pois os familiares foram moralmente torturados.
Clarissa explicou que a prisão de Reneu retirou do lar a força de trabalho, e isso causou muita dor, mas que, sobretudo, a sua luta honrou a família. Lembrou que dezenas de pessoas sofreram revistas e tiveram as casas invadidas e depredadas. Por vezes levavam um familiar preso e algemado, sem maiores explicações. “Portanto a nossa história é a história da maioria das pessoas, e a voz que foi tirada dessas pessoas permaneceu em silêncio por muito tempo, assim como as feridas deixadas são muito dolorosas”, concluiu. Acompanhada de familiares Clarissa também representou o ex-preso político Antonio Alberti Maffi, que enviou uma poesia onde relata a luta e o sofrimento dos que resistiram.
Ao encerrar as atividades Anderson Barreto enfatizou que o pedido de punição aos agentes da ditadura não visa o revanche, pois não há intenção de matar, torturar e retirar os direitos civis, a exemplo do que fizeram. ”O que queremos é a justiça para que os crimes de lesa-humanidade não fiquem impunes e para que os brasileiros reconheçam os seus heróis”.
Levante pela Verdade: Caxias do Sul
Outra ação/escracho ocorreu em Caxias do Sul e foi organizado pelo Levante Popular da Juventude do município, em parceria com a entidade ManifestaSol. As atividades lembraram o dia 28 de agosto de 1979, data em que o General João Batista Figueiredo sancionou a Lei nº 6.683, que anistiou parte dos torturados e perseguidos políticos, bem como garantiu impunidade aos militares responsáveis pelos atos de repressão.
Um grupo de jovens caracterizados com peças de um fardamento militar e com máscaras circulou entre as pessoas em frente a Praça da Bandeira, representando a ausência de identidade e o silêncio que paira sobre a Anistia Política do Brasil.Na percepção dos movimentos a maioria das pessoas, quando questionadas sobre o tema, desconhecem o que foi a Anistia Política e o próprio Golpe de 64. Lideranças do Levante avaliam que a “anistia lenta, gradual e segura”, desejada pelos militares, acabou por cumprir o seu objetivo, já que a palavra do grego “amnestía” significa “esquecimento”. Dessa forma esquecemos também quem foram os responsáveis pelas mortes e desaparecimento dos opositores da ditadura.
O Levante Popular da Juventude de Caxias do sul apoia as Comissões Nacional e Estadual da verdade e o Comitê Popular Memória, Verdade e Justiça do RS. Assista ao vídeo da intervenção no link http://youtu.be /lKQIXSHdic4
(*) Jornalista, integrante do Comitê Popular Memória, Verdade e Justiça.
Fotos: Rejane Berghahn
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20813
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