Policial que matou sem terra com um tiro nas costas é condenado a 12 anos de prisão
Fernanda Canofre
No mesmo dia em que a morte do agricultor sem-terra Elton Brum completou oito anos e um mês, o policial militar Alexandre Curto dos Santos, apontado como autor do disparo que tirou sua vida, sentou-se para depor diante de um juiz. Por cerca de uma hora, o réu respondeu perguntas do juiz, da acusação e da defesa, repetindo várias vezes, que sua arma tinha apenas munição não-letal, mas foi trocada com a de um colega que havia carregado uma bala de munição letal na sua. As armas seriam idênticas e ele nunca soube explicar em que momento se deu a troca. A tese da defesa era de que não houve intenção de matar.
Para o júri, no entanto, ao disparar contra Brum, a uma curta distância, com a vítima de costas e com dificuldade para se defender, o policial assumiu o risco e a intenção. O juiz e o júri – composto por três homens e quatro mulheres – acataram a sugestão de pena da acusação. Ainda na quinta-feira (21), depois de 15 horas de julgamento, o brigadiano foi condenado por homicídio qualificado a pena de 12 anos de prisão, em regime fechado, perda do cargo na Brigada Militar e prisão imediata.
Na plateia, pouco antes da sentença, a viúva de Elton, Maria Odete, que acompanhou todo o julgamento, sem falar com a imprensa, declarou apenas: "Espero que seja feito justiça, porque o resto eu já entreguei nas mãos de Deus".
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O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) divulgou uma nota em que afirma que a morte de Brum, aos 44 anos, é apenas um capítulo dos inúmeros conflitos no campo, consequência do Brasil "nunca ter tirado a reforma agrária do papel". "Basta de impunidade nos conflitos no campo e violência policial. Repudiamos qualquer tipo de violência, contra qualquer trabalhador e trabalhadora. Queremos que o ocorrido com Elton Brum não se repita. Queremos que o Estado repense sua postura em ações de reintegração de posse ou despejos, que não use de sua força para matar, nem reprimir lutas legítimas", ressalta o texto.
Curto foi encaminhado a prisão militar, enquanto aguarda os próximos passos do processo. Ainda cabe recurso à decisão. O caso foi trazido ao Foro de Porto Alegre a pedido da acusação, alegando questões de segurança e garantia de imparcialidade.
Pouco antes do anúncio da sentença, a advogada de defesa, Andréia Tavares, disse que nunca tinha presenciado "um réu com tanta verdade", trazendo para o depoimento "a culpa, o sentimento". A tática da defesa seria provar que o réu não tinha intenção de matar e foi vítima de uma fatalidade, na troca acidental de armas com o colega que havia carregado munição letal.
"Os vídeos mostram como foi a violência empregado no dia. [O movimento] estava com sangue nos olhos. O próprio promotor disse que eles não invadem pela propriedade, mas para causar comoção do Estado. E aí, casa com uma situação de um policial militar há 4 dias trabalhando", disse a advogada.
Réu afirmou que comando sabia de uso de munição letal
O depoimento de Alexandre Curto dos Santos durou cerca de uma hora. A primeira pergunta veio do juiz Orlando Faccini Neto, que queria saber o que o policial pensava sobre o MST. "No fundo, eles têm causas para reivindicar certas coisas, mas hoje estão sendo utilizados como massa de manobra. Mandaram gente para ser treinada na Colômbia, com a guerrilha. Isso eu sei, por fontes militares (…) A pessoa pode reivindicar, mas chega um momento que termina o direito dela e começa o do outro. Existem formas de reivindicar", respondeu o réu.
Com mais de 20 anos de Brigada Militar, Alexandre estava há 12 no Batalhão de Operações Especiais quando seguiu para a operação de reintegração de posse da fazenda Southall, em São Gabriel. O policial estava lotado em Bagé e tinha experiência em operação envolvendo o movimento. Em depoimento, disse que era "inevitável" que as operações tivessem feridos dos dois lados e que ele mesmo havia levado "várias pedradas".
Na madrugada em que seguiu para a fazenda ocupada pelo MST, segundo ele, estava trabalhando há quatro dias seguidos sem dormir. Quatro horas antes de ir para a estrada, ele havia participado de uma operação contra grevistas, em Candiota. Sua advogada disse que ele seguiu para São Gabriel por causa dos R$ 60 de adicional.
Na versão contada pelo réu, ele seguiu em uma viatura com outros quatro policiais tomando chimarrão e parando no caminho, que levou seis horas, três vezes. Alexandre sustenta que foi em um desses momentos que houve a troca de armas entre ele e o colega, soldado Cortez. Apesar das instruções do comando da BM, do planejamento da operação de reintegração, Cortez decidiu inserir uma munição letal em meio às demais.
"O Cortez disse para o tenente [responsável pelo comando da operação] que iria colocar uma bala letal porque poderia acontecer alguma coisa, de Bagé até São Gabriel. Ele disse que tiraria quando chegasse [à fazenda]. Eles não sabem [quando houve a troca] porque as armas são idênticas", afirma o advogado de defesa, Jabs Paim Bandeira.
Alexandre reiterou em seu depoimento que, apesar das ordens de usar apenas munição não-letal, o que seria a norma em casos de reintegração de posse, o colega havia optado por colocar um cartucho de munição letal, com aval do comandante. Nem Cortez, nem o tenente responsável pela operação foram indiciados ou investigados pelo caso. Por ter ficha limpa na corporação, Alexandre foi inocentado no processo administrativo que avaliou sua conduta no dia.
"Foi uma fatalidade. Eu peguei a minha arma, somente municiei anti-motim, fiquei com ela durante todo o tempo. O meu colega, que foi junto, pegou a mesma arma, da mesma cor. As armas são idênticas em cor, formato, mesma marca. Nós éramos três viaturas para se deslocar para São Gabriel. Cada viatura comporta 5 pessoas. Se ele estivesse em outra viatura, não teria feito a troca com ele", afirmou ele durante o julgamento.
A versão sobre a morte
A acusação, no entanto, insistiu em outros furos da história do policial. Por exemplo, no fato de que Alexandre não prestou socorro a Elton Brum, no momento em que se deu conta que a munição disparada era letal. Ou ao fato de que a distância que ele alegava estar da vítima – entre 8 e 10 metros – não condizia com o que foi constatado por peritos, que examinaram o ferimento no corpo – compatível com distância curta, entre 3 e 5 metros. Ou ainda, o porquê do policial ter levado seis dias para se apresentar com a sua versão dos fatos.
Na versão de Alexandre, ele entrou na fazenda Southall por um portão lateral, em uma linha com outros 15 soldados. Com escudos de madeira colocados para proteger a entrada, ele efetuou três disparos para abrir caminho. Todos com balas não-letais, condizente com o que ele havia carregado na própria arma.
"Tinha muito barulho de foguete, muita fumaça, muito lixo queimado na volta, estava tudo muito conturbado. Eu me virei para a direita, vi um colega a cavalo, ao fundo, e vi um vulto de uma pessoa indo em direção às rédeas do cavalo. Eu pensei que, se ele pegasse as rédeas ele ia derrubar meu colega, podia causar uma fratura nele. Como eu sabia que estava com a minha arma, que eu sabia que só tinha colocado nela munição não-letal, os tiros que disparei antes eram assim, eu disparei mais uma vez", relatou ele.
No momento em que atirou, ele conta que a arma recuou mais forte e soube que a munição era letal. "Em seguida, eu abri a arma pra ver que munição estava sendo usada e vi que era letal. Naquele instante, foi como se eu tivesse desligado. Eu não escutei mais nada, eu não vi mais nada. Eu virei as costas e saí, todo aquele cenário, eu não tinha mais condições de estar ali", respondeu sobre o porquê de não prestar socorro a Brum ou pedir que outros assumissem o caso. "Eu fiquei imóvel, porque estava estarrecido com a situação. Eu não tinha noção do que tinha acontecido. Não tinha condições".
A acusação questionou Alexandre se a vítima estava de costas no momento do disparo. O brigadiano, que reafirmou que só disparou porque viu o agricultor "com o braço levantado, em direção ao cavalo", respondeu que não conseguiu ver porque havia muita fumaça no local. "Não sei se ele estava de frente ou de costas. Eu não fiz pontaria, só coloquei a arma na linha cintura e acionei o disparo".
Para a promotoria e os advogados assistentes, a afirmação não condiz com um soldado com mais de 20 anos de corporação, com notas máximas em vários cursos de tiro. Ao júri foi apresentado ainda um vídeo, gravado pela BM durante a operação, que contradizia o brigadiano. Brum aparecia cercado por cavalos da polícia e com as mãos no bolso, no momento em que o tiro é disparado.
O soldado, que foi promovido a sargento há dois anos, disse ainda que "pensa no que aconteceu todos os dias". "É um fato que até hoje me atormenta. Não queria que tivesse acontecido aquilo. Eu carrego até hoje esse peso, da morte de uma pessoa".
Ordem foi cumprida antes do prazo final determinado pela justiça
Antes do depoimento do réu, o júri ouviu a então promotora da Infância e da Juventude de São Gabriel, que acompanhou o cumprimento da reintegração de posse. Em seu depoimento, ela afirmou que a oficial de justiça teria tentando ler a determinação judicial três vezes antes da entrada no acampamento. A promotora não soube responder ao questionamento do advogado do MST, Emiliano Maldonado, sobre o porquê da reintegração ter sido realizada no dia 21 de agosto se a decisão do juiz dava aos sem-terra o dia 22 como prazo final para a saída pacífica.
"A desocupação em si foi muito rápida, levou uns 5 minutos. Depois, [os policiais] ficaram identificando as pessoas. Só tomei conhecimento da morte à tarde, quando cheguei à cidade. [Ainda no local], eu lembro de ter visto um homem, saindo em uma maca, logo no início da operação", afirmou ela.
A promotora comentou ainda sobre ter dado declarações à imprensa, na época, defendendo que não houve excesso por parte da BM. "Eu não vi o que aconteceu dentro desse acampamento, porque era vigiado, com segurança. Me refiro à atuação como um todo. A preparação da operação me pareceu muito profissional", disse. A promotora, porém, também afirmou que não seria capaz de avaliar a conduta individual dos policiais envolvidos na operação.
O MST teve 31 integrantes feridos. Relatos de abusos – incluindo casos de pessoas que teriam sido colocadas em cima de formigueiros – foram anexados a um relatório do Comitê Estadual Contra a Tortura e referenciados no depoimento de Carlos D'Elia, na manhã de quinta.
A acusação de que o MST teria recebido treinamento das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e estaria preparando uma guerrilha no Rio Grande do Sul chegou a ser apresentada como denúncia no Ministério Público Federal (MPF), a pedido de um coronel da Brigada Militar, como lembrou o advogado assistente da acusação, Leandro Scalabrin. A Justiça, no entanto, confirmou que a tese não tinha fundamento.
O promotor, Eugenio Amorim, afirmou diante do júri ser uma pessoa de direita e que sempre tendia a ficar ao lado do policiais militares. "Sou opositor da esquerda, desde muito novo. Vou acusar o réu porque a vida de alguém que pensa diferente politicamente não vale menos que a minha". Amorim encerrou sua argumentação lendo o poema "A morte de Pedro Ninguém", de Luiz Menezes: "Oigatê, como é brabo esse mês de agosto! (…) O homem que nasce pobre / é como um cavalo xucro / É peleado pela vida / sofre a doma das tristezas".
Confira a nota do MST na íntegra:
Nota do MST sobre resultado do julgamento do caso Elton Brum da Silva
Mais de oito anos depois, justiça foi feita. O policial militar que matou com um tiro nas costas o Sem Terra Elton Brum da Silva foi condenado. Alexandre Curto dos Santos, à época soldado e até então 3º sargento da Brigada Militar, foi condenado pelo júri popular a 12 anos de prisão, que serão cumpridos em regime fechado. A sentença também constou perda de cargo e prisão imediata do réu. O julgamento ocorreu nesta quinta-feira (21) no Foro Central I da Comarca de Porto Alegre, e durou cerca de 12 horas.
O policial foi condenado por homicídio qualificado, ou seja, por impossibilitar a defesa da vítima. Elton Brum foi covardemente executado com um tiro a queima roupa nas costas durante uma violenta e arbitrária reintegração de posse da Fazenda Southall, no município de São Gabriel, na Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, em 21 de agosto de 2009.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em décadas de sua existência, tem na luta pela Reforma Agrária a saída para uma vida mais justa e igualitária no campo. Mas, infelizmente, esta política pública é vista com descaso pelos nossos governantes. Os inúmeros conflitos no campo, que hoje são registrados anualmente pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), são consequências de uma grande dívida social que o Brasil tem por nunca ter tirado a Reforma Agrária do papel. Muitas vezes, isto resulta no fim da vida de trabalhadores e trabalhadoras inocentes, que sofrem criminalização por unicamente serem Sem Terra.
Esta realidade também foi a de Elton Brum da Silva, que aos 44 anos de idade entrou nas estatísticas das mortes ocorridas em conflitos agrários. Mais um trabalhador foi morto covardemente pela força excessiva do Estado, que deveria ajudar a construir alternativas para que todos e todas tenham direito à terra, e não matar.
Basta de impunidade nos conflitos no campo e violência policial. Repudiamos qualquer tipo de violência, contra qualquer trabalhador e trabalhadora. Queremos que o ocorrido com Elton Brum não se repita. Queremos que o Estado repense sua postura em ações de reintegração de posse ou despejos, que não use de sua força para matar, nem reprimir lutas legítimas.
O MST seguirá lutando por uma Reforma Agrária Popular, que fixe os trabalhadores no campo e que garanta melhores condições de vida para o povo brasileiro.
Por nossos mortos nem um minuto de silêncio, mas uma vida inteira de luta!
Elton Brum da Silva, presente! Elton Brum vive!
Direção Estadual do MST/RS
22 de setembro de 2017
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