PAULO MOREIRA LEITE
O jornalista e escritor Paulo Moreira Leite é diretor do 247 em Brasília
Luta de classes dentro de casa
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Num país onde as trabalhadoras domésticas têm uma importância essencial na vida das famílias que jamais foi reconhecida pelo cinema, o filme "Que Horas Ela Volta?" é uma obra bem vinda e bem feita.
Num enredo que lembra Teorema, de Pier Paolo Pasolini, o filme narra mudanças e questionamentos que ocorrem numa família da elite paulistana, quando aparece uma personagem, Jéssica (Camila Márdila), capaz de questionar os papéis sociais herdados do mundo de Casa Grande & Senzala.
Obra de referência do cinema de 1968, no filme de Pasolini a liberdade sexual do personagem principal, encarnado por Terence Stamp, servia como elemento de crítica à sociedade burguesa, sua hipocrisia e futilidade. Sua presença modificava os horizontes de cada membro da família que o recebia como visitante.
Em A Que horas ela volta, essa função transformadora, própria de épocas que apontam para mudanças na vida social, é vivenciada pela personagem Jessica (Camilla Márdilla), filha de uma empregada doméstica que não consegue conviver com a tradição de servidão que chegou ao século XXI brasileiro.
Com várias referências que situam a história nos dias atuais, a obra de Ana Muylaert fala de luta de classes dentro de casa, em toda sua crueldade, esquemas de poder e mesquinharias. Não busca fazer graça nem embelezar a realidade. Seu assunto não é salário nem benefícios mas cidadania, liberdade, dignidade.
Corajoso "Que horas ela volta?" mostra a dificuldade de uma família bem estabelecida -- típica representante dos 0,05% do topo da pirâmide social brasileira -- em assegurar um espaço decente a uma personagem que, filha da empregada (Regina Casé), não aceita viver nem comportar-se como pessoa subalterna. Em nenhum momento o filme se torna escandaloso, embora seja capaz de mostrar até detalhes sórdidos -- como a marca de sorvete destinada a cada classe social -- no interior de uma mesma casa. Os donos da casa sobrevivem com as delícias do rentismo, onde ninguém tem responsabilidade reais. O pai não precisa trabalhar porque vive de herança. O filho é um pós-adolescente crescido, que procura a antiga babá para dormir -- literalmente -- nas noites em que o sono faz falta. Sua mãe faz o papel de guardiã da tradição, família e propriedade.
O filme fala de sentimentos desenvolvidos entre patrões e empregados. Há situações de afeto mas também desprezo, insegurança -- sempre num horizonte onde a dominação bruta é corretamente descrita como parte inevitável do convívio entre seres humanos hierarquizados. Ana Muylaert mostra relações que parecem relações afetivas mas são relações de trabalho, ainda que mascaradas por sentimentos e emoções. Num sinal de que algo mudou na vida de quem está embaixo, Jéssica fez cursinho para o vestibular, onde teve aulas com um professor "crítico". Formou uma consciência que lhe permite enxergar aquilo que ninguém quer ou não consegue ver.
O final é relativamente otimista mas sem perder o senso de realidade. Mostra personagens capazes de reconhecer o que é mais importante em suas vidas e a partir daí modificar seu destino.
(Modificado em 7/9/2015)
https://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/195809/Luta-de-classes-dentro-de-casa.htm
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