O NOSSO SISTEMA PROCESSUAL PENAL CAMINHA EM DIREÇÃO AO CAOS. O MINISTÉRIO PÚBLICO JÁ ESTÁ PERDENDO PRESTÍGIO JUNTO À POPULAÇÃO.
Afrânio Silva Jardim, 24/09/2017, no facebook
Muito tenho escrito sobre a importação acrítica de institutos e princípios processuais dos países que adotam o chamado "sistema adversarial".
Vários destes breves e singelos estudos estão registrados no site do Empório do Direito. Alguns antecedem mesmo à criação da nossa coluna.
Sempre invocando o magistério do grande e saudoso mestre José Carlos Barbosa Moreira, consubstanciado em inúmeros de seus trabalhos publicados em sua vasta obra "Temas de Direito Processual", tenho criticado a amplitude dos trazidos ao processo penal desde a lei n.9.099/95 e, principalmente, pela lei n.12.850/13, que disciplinou – muito mal – os acordos de cooperação premiada (delações premiadas).
O novo Código de Processo Civil também outorgou às partes processuais amplos poderes dispositivos, inclusive em relação ao próprio procedimento em juízo.
Saliento que a minha crítica, vinculada ao processo penal, tem sido mais contundente em relação às interpretações ampliativas das regras jurídicas que disciplinam estes acordos e em relação à sua aplicação nos casos concretos.
Tenho dito que tudo isto retrata o neoliberalismo econômico, trazido para o nosso sistema jurídico. Caminhávamos para uma salutar publicização do Direito em geral. Agora, com o novo e perverso modelo econômico, retrocedemos na direção de uma perspectiva privatista do nosso Direito. Privilegia-se a vontade das partes privadas – nem sempre livre e consciente – em detrimento de normas jurídicas, algumas até públicas, por isso de eficácia cogente ...
Este fenômeno corrobora a assertiva de Karl Marx de que a estrutura econômica de uma determinada sociedade acaba condicionando a sua cultura, onde está inserido o próprio Direito.
Ouso dizer que a grande maioria dos nossos juristas hoje está vinculada ao pensamento liberal. Seu textos acríticos refletem esta falta de conexão com a realidade social.
Aliás, peço licença para deixar consignado que, já nos idos de 1982, publiquei a minha dissertação de mestrado com o sugestivo título "Da Publicização do Processo Civil", pela antiga editora Liber Iuris.
Atualmente, são poucos os processualista que se opõem a esta perspectiva privatista do nosso processo civil. Abaixo, mencionamos uma honrosa exceção:
"Essa privatização do processo civil desconsidera todos os outros compromissos da jurisdição com seus mais elevados fins. Ao eleger a tutela do interesse das partes como primordial, o Código menospreza todos os outros valores que conformam o Estado e a atividade jurisdicional. Recorde-se que o processo civil brasileiro tem premissas muito diferentes, por exemplo, do processo civil estadunidense (pautado em grande parte pelo 'adversary system'), em que se valorizam extraordinariamente a iniciativa e a condução da parte em favor da autonomia da vontade". (Novo Curso de Processo Civil, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 2015, vol.1, p.533).
Ora, se esta crítica vale para o novo Código de Processo Civil, o que dizer de determinadas práticas privatistas utilizadas no processo penal em nosso país, ainda que com bons propósitos?
Importante notar que aqui, no processo penal, estão privilegiando "o negociado em detrimento do legislado", como se costuma falar em face da nefasta reforma trabalhista que se pretende implantar no país.
Notem que aqui estamos tratando de regras de processo penal e de Direito Penal, vale dizer, estamos cuidando de Direito Público. Como aceitar que seja ele negociado por um membro do Ministério Público e por um réu, que confessa crimes graves, inclusive no seio de organizações criminosas? Como aceitar que um criminoso – posso assim falar, em razão da sua confissão – tenha poderes para negociar sua pena e criar regimes de cumprimento de pena de prisão não previstos na legislação e também em circunstâncias que violam o que está disposto nela?
Desta forma, o máximo que se pode admitir é que o "prêmio" do delator seja restrito apenas aos benefícios expressamente previstos no art.4º da lei n.12.850/13. Impõe-se alterar este diploma legal.
Ademais, como já me opus em alguns dos trabalhos referidos no início deste texto, alguns juristas e profissionais do Direito buscam mitigar drasticamente o princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal pública, porta aberta para o deletério instituto da "play barganing". Há propostas legislativas admitindo que, em futura legislação, possa o Ministério Público escolher, discricionariamente, que acusações fará ou não.
A ousadia é tanta que se pretende derrogar o princípio da legalidade da ação penal pública, através da inconstitucional Resolução 181 do Conselho Nacional do Ministério Público. Caos em nosso processo penal!!! Uma resolução alterando o sistema previsto no Código de Processo Penal é uma ruptura do Estado de Direito.
Aliás, tal danosa seletividade já se manifesta na escolha dos casos em que o Ministério Público faz o "papel de polícia", através da chamada "investigação direta" ... A polícia tem de investigar todos os delitos, mas o Ministério Público escolhe os que ele quer investigar, quase sempre aqueles que dão publicidade ...
Enfim, entendo que o Estado Democrático de Direito exige que tenhamos um Direito Penal e um Direito Processual Penal com o mínimo de discricionalidade, onde os direitos das pessoas não fiquem ao sabor de "negócios processuais" ou de vontades discricionárias de agentes públicos ou políticos.
Notem que estou apenas pugnando pelo primado da legalidade, colocado em risco pelo voluntarismo de alguns protagonistas do nosso processo penal.
Repito, mais uma vez: o excesso de poder discricionário, no chamado "sistema de justiça criminal", não é compatível com o Estado Democrático de Direito.
Afranio Silva Jardim, professor associado de Direito Processual Penal da Uerj. Mestre e Livre-Docente em Direito Processual (Uerj). Procurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público do E.R.J.
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Afrânio Silva Jardim
O Conselho Nacional do Ministério Público está legislando sobre o Direito Processual Penal!!! A que ponto chegamos!!! – Por Afrânio Silva Jardim
Por Afrânio Silva Jardim – 19/09/2017
Em termos constitucionais e processuais, a Resolução n.181, de 07 de agosto de 2017, do Conselho Nacional do Ministério Público, somente publicada no dia 06 de setembro deste mesmo ano, é uma verdadeira ruptura do Estado de Direito e dá ao Ministério Público um poder incompatível com uma sociedade que se deseja democrática.
Através deste nefasto ato normativo, o referido Conselho pretende substituir a atividade legislativa do Congresso Nacional e acaba por criar um "mini código de processo penal", derrogando vários dispositivos da legislação em vigor, chegando ao ponto de romper com o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública e da legalidade no processo penal em geral.
Por mais absurdo que possa parecer, através do artigo 18 da supra citada Resolução, o Conselho Nacional do Ministério Público cria um novo negócio jurídico processual, distinto do que prevê a conhecida lei n.12.850/13. Através dele, o Ministério Público afasta o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública e cria uma verdadeira execução penal por título extrajudicial (sic). Verdadeira violação do princípio "nulla poena sine judicio".
Na verdade, sem lei formal, o Conselho Nacional do Ministério Público, indireta e disfarçadamente, deseja introduzir, em nosso sistema de justiça criminal, uma "plea bargain tupiniquim", instituto jurídico próprio do sistema da "common law" (sic).
Tudo isso, é um desrespeito ao Estado de Direito. É um desrespeito ao Congresso Nacional. É um desrespeito à Constituição Federal !!!
Vejam o que dispõe esta inconstitucional regra jurídica:
"DO ACORDO DE NÃO-PERSECUÇÃO PENAL
Art. 18. Nos delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao investigado acordo de não-persecução penal, desde que este confesse formal e detalhadamente a prática do delito e indique eventuais provas de seu cometimento, além de cumprir os seguintes requisitos, de forma cumulativa ou não:
I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima;
II – renunciar voluntariamente a bens e direitos, de modo a gerar resultados práticos equivalentes aos efeitos genéricos da condenação, nos termos e condições estabelecidos pelos artigos 91 e 92 do Código Penal;
III – comunicar ao Ministério Público eventual mudança de endereço, número de telefone ou e-mail;
IV – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo Ministério Público.
V – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo Ministério Público, devendo a prestação ser destinada preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito.
VI – cumprir outra condição estipulada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal aparentemente praticada.
§ 1º Não se admitirá a proposta nos casos em que: I – for cabível a transação penal, nos termos da lei; II – o dano causado for superior a vinte salários-mínimos ou a parâmetro diverso definido pelo respectivo órgão de coordenação; III – o investigado incorra em alguma das hipóteses previstas no art. 76, § 2º, da Lei n. 9.099/95; IV – o aguardo para o cumprimento do acordo possa acarretar a prescrição da pretensão punitiva estatal.
§ 2º O acordo será formalizado nos autos, com a qualificação completa do investigado e estipulará de modo claro as suas condições, eventuais valores a serem restituídos e as datas para cumprimento e será firmado pelo Membro do Ministério Público, pelo investigado e seu advogado.
§ 3º A confissão detalhada dos fatos e as tratativas do acordo deverão ser registrados pelos meios ou recursos de gravação audiovisual, destinados a obter maior fidelidade das informações.
§ 4º É dever do investigado comprovar mensalmente o cumprimento das condições, independentemente de notificação ou aviso prévio, devendo ele, quando for o caso, por iniciativa própria, apresentar imediatamente e de forma documentada eventual justificativa para o não cumprimento do acordo.
§ 5º O acordo de não-persecução poderá ser celebrado na mesma oportunidade da audiência de custódia.
§ 6º Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo ou não comprovando o investigado o seu cumprimento, no prazo e condições estabelecidas, o Membro do Ministério Público deverá, se for o caso, imediatamente oferecer denúncia. § 7º O descumprimento do acordo de não-persecução pelo investigado, também, poderá ser utilizado pelo Membro do Ministério Público como justificativa para o eventual não-oferecimento de suspensão condicional do processo. § 8º Cumprido integralmente o acordo, o Ministério Público promoverá o arquivamento da investigação, sendo que esse pronunciamento, desde que esteja em conformidade com as leis e com esta resolução, vinculará toda a Instituição.
§ 7º O descumprimento do acordo de não-persecução pelo investigado, também, poderá ser utilizado pelo Membro do Ministério Público como justificativa para o eventual não-oferecimento de suspensão condicional do processo. § 8º Cumprido integralmente o acordo, o Ministério Público promoverá o arquivamento da investigação, sendo que esse pronunciamento, desde que esteja em conformidade com as leis e com esta resolução, vinculará toda a Instituição."
http://www.cnmp.mp.br/portal/images/ED.169_-6.9.2017.pdf
Pelo dispositivo acima, o Ministério Público pode deixar de exercer a sua denúncia em troca de confissão do suspeito, mesmo presentes todas as chamadas condições para o exercício da ação penal pública. Ademais, esta Resolução trata de arquivamento, desarquivamento das investigações do Ministério Público, prazos, publicidade dos atos investigatórios e diversos outros temas que já estão regulados no Código de Processo Penal em vigor.
O pior de tudo: prevê cumprimento de penas restritivas de direitos e outras mais a serem estipuladas no acordo sem que haja sentença condenatória sem o necessário e regular processo. Tudo isto de forma cinicamente disfarçada.
Desta forma, cabem as seguintes indagações:
Pode o Conselho Nacional do Ministério Público legislar?
Pode o Conselho Nacional do Ministério Público legislar sobre matéria pertinente ao Direito Processual Penal?
Pode o Conselho Nacional do Ministério Público legislar sobre Direito Processual Penal, revogando o sistema processual já constituído?
Pode o Conselho Nacional do Ministério Público legislar sobre Direito Processual Penal, revogando o sistema processual já constituído, abolindo o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública?
Pode o Conselho Nacional do Ministério Público legislar sobre Direito Processual Penal, revogando o sistema processual já constituído, abolindo o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, bem como introduzir, em nosso processo penal, a chamada "plea bargain", própria do sistema da "common law"?
Pode o Conselho Nacional do Ministério Público transformar esta relevante Instituição em um "Quarto Poder da República"?
Pode o Conselho Nacional do Ministério Público "jogar por terra" o nosso já combalido Estado Democrático de Direito?
Pode o Conselho Nacional do Ministério Público violar o princípio da proibição de proteção deficiente, deixando de tutelar bens e valores protegidos constitucionalmente?
Tendo em vista esta criticada Resolução de n.181, de 07 de agosto de 2017, publicada em 06 de setembro do mesmo ano, do Conselho Nacional do Ministério Público, torna-se oportuno trazer à colação um estudo que publiquei no site Empório do Direito, com o sugestivo título: "Ministério Público é Ministério Público. Polícia é Polícia".
Termino este breve texto, com dois indignados "desabafos" de quem, após 31 anos dedicados ao Ministério Público, recebeu dois "Colares do Mérito", importantes honrarias que nos foram concedidas pelo Ministério Público do E.R.J. e pelo Ministério Púbico Militar da União.
1 – O Conselho Nacional do Ministério Público está criando, indevidamente e ao arrepio da Constituição Federal, um "mini" sistema processual, paralelo e conflitivo com muitas das regras do Cod.Proc.Penal.
Ademais, a atual realidade está demonstrando que, quando o Ministério Público faz o papel da polícia, passa a sofrer dos mesmos ataques, fundados ou não. Recentemente, tivemos um Procurador da República preso preventivamente e, agora, temos outro suspeito de graves crimes. Imaginem o que vai acontecer com o Ministério Público (todo poderoso) por este Brasil afora !!!
A chamada justiça pactuada ou consensual será o cemitério do Ministério Público e do Estado de Direito.
Até bem pouco tempo, o Ministério Público aparecia, nas pesquisas de opinião pública, como uma das instituições brasileiras mais respeitadas pela população. Agora, ele é amado por muitos e odiado por outros tantos. Virou até mesmo uma questão política e ideológica. Ele hoje tem sua atuação maculada por suspeitas de falta de isenção ou mesmo falta de imparcialidade.
2 – A "bagunça" está generalizada, pois já não temos um sistema processual penal. A "importação" de institutos jurídicos norte-americanos subverteu e amesquinhou o nosso princípio da legalidade e, agora, vale o negociado sobre o legislado. Quer dizer, as regras cogentes do Direito Penal e do Direito Processual Penal podem ser derrogadas por um acordo entre um membro do Ministério Público e um criminoso confesso !!!
O "meu" Ministério Público, no futuro, vai "pagar um preço" muito alto por esta ambição desmedida de poder. Estes jovens procuradores da república e o Dr. Rodrigo Janot não tinham o direito de subverter o nosso Direito Processual Penal, não tinham o direito de expor o Ministério Público desta forma !!!
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Afrânio Silva Jardim é professor associado de Direito Processual Penal da Uerj. Mestre e Livre-Docente de Direito Processual (Uerj). Procurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público do E.R.J.
http://emporiododireito.com.br/tag/afranio-silva-jardim/
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