Reforma da Previdência, proteção ao mercado e desvalorização da vida
"O que temos é uma investida contra a responsabilidade social em âmbitos que são assumidos na vida privada prioritariamente pelas mulheres, ao mesmo tempo em que se amplia a idade mínima que é necessária para que elas se aposentem."
Por Flávia Biroli.
O debate sobre a reforma da Previdência vem sendo apresentado pelo governo e pela mídia com ele alinhada como parte de um ajuste econômico das contas do Estado. Não é, no entanto, um problema técnico. Diz respeito ao modelo de sociedade que vamos adotar e ao tipo de proteção social que nela haverá para as pessoas. É, assim, um problema político de primeira ordem.
Quando discutimos o sistema de proteção social adotado, o que está em questão é se e como a sociedade assume responsabilidade coletiva pela vulnerabilidade das pessoas. Essa vulnerabilidade pode ser momentânea, como no caso de doenças temporárias; pode ser definidora da vida de algumas pessoas, como no caso daquelas que têm deficiências e, portanto, necessidades especiais; e pode ser definidora de etapas da vida de todas as pessoas, como é a vulnerabilidade na infância e na velhice. O traçado entre Estado e mercado, entre os direitos de cidadania e a necessidade de cada um se virar como pode, está sendo redefinido pela proposta de reforma da Previdência do governo Temer.
No Brasil, de acordo com a Constituição Federal (artigo 194), a seguridade social abrange saúde, assistência e previdência.
As duas primeiras independem de contribuição. O atendimento à saúde é universal e a assistência é voltada para quem dela precise, isto é, para necessidades específicas e especiais (artigos 196 e 203). Estão, ambas, ameaçadas pela aprovação recente da PEC 241/55, que reduz o mínimo constitucional de investimento público nessas áreas, atingindo diretamente o Sistema Único de Saúde, o SUS, e o acesso à assistência nos marcos da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) e do Benefício de Prestação Continuada de Assistência Social (BPC). Embora muito já tenha sido dito sobre a PEC, é preciso lembrar ainda uma vez que seu caráter político é evidente não apenas porque incide sobre a Constituição em pontos fundamentais para as garantias à cidadania, mas também porque congela os investimentos por 20 anos. É uma modalidade sofisticada de restrição da democracia, que por meio de mudança na Constituição retira do jogo político por um tempo significativo a disputa sobre os investimentos do Estado na seguridade social.
O terceiro componente da seguridade previsto constitucionalmente é a previdência (artigo 201). Nesse caso, a contribuição é obrigatória para trabalhadores registrados do mercado formal e o benefício varia de acordo com ela. As regras atuais da aposentadoria, benefício que faz parte da Previdência Social, foram definidas na Constituição e por emendas e legislação posteriores. A LOAS, que é de 1993, garante o benefício de um salário mínimo para idosos acima de 65 anos ou pessoas com deficiências de longo prazo quando a renda familiar per capita é inferior a ¼ do salário mínimo.
A proposta de reforma da Previdência do governo Temer (PEC 287/2016) reduz o acesso à aposentadoria de quem contribui e de quem se encaixa na legislação de assistência social. Pouco tem sido noticiado sobre como incide na LOAS: a idade mínima para acesso aos benefícios pelos idosos das camadas mais pobres da população, com renda de até ¼ de salário mínimo por pessoa da família, passará de 65 para 70 anos caso a reforma seja aprovada. A proposta também desvincula os benefícios da LOAS do salário mínimo, reduzindo seu piso em relação ao piso previdenciário (de quem contribui), com a justificativa de que o percentual direcionado à assistência é alto relativamente ao PIB brasileiro. Segundo dados da PNAD/IBGE, em 2014 25,4% das pessoas (21,5% dos homens e 30,6% das mulheres) tiveram rendimento médio mensal proveniente do trabalho inferior a 1 salário mínimo. Pode não parecer, mas é desse país que estão falando os integrantes do governo ilegítimo quando justificam a proposta de mudança no acesso dos benefícios pela população mais pobre dizendo que a lei atual "resulta em desincentivo para que determinada camada da população contribua para o sistema de previdência social". Além da baixa renda, trata-se da camada da população com menor expectativa de vida e menores condições de envelhecer com o acesso adequado a cuidado, medicamentos e alimentação. Peço que quem me lê faça o exercício de migrar dos números para a imagem mental que sua experiência lhe traz de quem são essas pessoas e de suas condições de vida.
Também pela proposta, a idade mínima para aposentadoria passar a ser de 65 anos sem distinção entre homens e mulheres e trabalhadores/as urbanos/as e rurais. Pela lei atual, a idade de aposentadoria pode variar segundo o tempo de contribuição, a idade mínima para as mulheres se aposentarem é de 60 anos – ou 55 no caso das trabalhadoras rurais – e para os trabalhadores rurais é de 60. O regime especial para trabalhadoras e trabalhadores rurais e para a população indígena hoje não exige contribuição individual, o que será modificado pela nova lei caso a proposta atual de reforma passe pela Câmara e pelo Senado. Pela proposta, para que a aposentadoria corresponda a 100% do benefício, a trabalhadora ou trabalhador deve contribuir por 49 anos. É uma das chaves para a redução do acesso à aposentadoria.
Essa proposta de reforma amplia o desgaste, desfaz o sonho da aposentadoria numa idade em que ainda se pode usufruir do tempo livre e reduz a proteção na velhice de quem mais precisa dela. Ao equiparar mulheres e homens, ignora o fato básico da jornada maior de trabalho das mulheres, que hoje ultrapassa a dos homens em cerca de 5 horas semanais, segundo a PNAD. Neste quesito, é importante lembrar que a redução dos investimentos públicos determinada pela PEC 241/55 afeta também o provimento de creches e a qualidade do ensino público, além de outros equipamentos que poderiam reduzir o tempo que cada mulher dedica ao trabalho de cuidado das crianças e da casa. O que temos, portanto, é uma investida contra a responsabilidade social em âmbitos que são assumidos na vida privada prioritariamente pelas mulheres, ao mesmo tempo em que se amplia a idade mínima que é necessária para que elas se aposentem. Muitos estudos mostram que menos creches e equipamentos públicos implicam menor empregabilidade para as mulheres que são mães. Podemos, assim, ter ainda mais mulheres com renda insuficiente para contribuir e inseridas na regra de acesso aos benefícios da LOAS apenas com 70 anos e segundo um cálculo que reduzira o valor real do benefício.
A ideia de que a reforma é necessária nos moldes propostos tem sido propagandeada pelas grandes empresas de mídia sistematicamente. Muitos estudos mostram que há entendimentos enviesados sobre as contas da Previdência amparando a proposta e que há outras reformas possíveis, nas quais o ajuste de contas não seja financiado por trabalhadoras e trabalhadores e a responsabilidade social pelos mais vulneráveis seja mantida (coloco ao final algumas indicações). Mesmo na campanha da imprensa pela reforma, as fissuras se fazem ver. O Globo, que tem um quadro pró-reforma programado para aparecer junto dos textos sobre Previdência no seu site, publicou recentemente uma matéria sobre a expectativa de ganhos dos planos privados de seguro de previdência.
Além da questão de quem financia a reforma, esse é um ponto central: quem ganhará com ela? Trata-se, sem dúvida, de mais um movimento em direção ao aprofundamento da financeirização das relações, o que significa que a proteção na velhice vai sendo moldada como um bem de mercado, distanciando-se do ideal de um direito de cidadania à proteção na velhice de qualquer pessoa. Não é preciso retirar a previsão constitucional de saúde e assistência para fazê-la minguar, atendendo aos interesses do setor privado. É o que tem ocorrido sistematicamente no caso da saúde, em que as empresas que fornecem planos e seguros privados ampliam seus lucros na medida da fragilidade do sistema público. Elas e as empresas do setor de educação têm a comemorar com a PEC 241/55, assim como agora as empresas de previdência privada esperam ansiosas pela aprovação da reforma proposta por Temer.
Meu ponto é que esta é uma decisão política contrária à segurança, ao amparo, ao cuidado com as vidas das pessoas em um momento em que todas e todos são mais vulneráveis, que é a velhice. É, também, uma punhalada na ideia de que a vida pode ser vivida para além das exigências extenuantes de anos e anos de trabalho, uma vez que se projeta aqui uma ponte que leva diretamente do trabalho remunerado para a idade avançada. Adicione-se a isso uma proposta de reforma trabalhista que sobrepõe o acordado sobre o legislado e temos, ainda, que contar com a possibilidade de que o tempo trabalhado seja feito de jornadas maiores e garantias mais escassas.
Às mulheres brasileiras, fica um destaque. O que está em questão é bem mais do que os cinco anos somados pela proposta ao tempo hoje necessário para o acesso à aposentadoria. Trata-se de um modelo que aprofunda a privatização da responsabilidade pela velhice. E quem cuida dos idosos? Quem é a força de trabalho não-remunerada que cuida das pessoas quando a responsabilidade social se encolhe e o mercado seleciona quem terá acesso a esse cuidado? As mulheres, e em especial as trabalhadoras rurais, as mais pobres e as negras, são as perdedoras diferenciadas nesse processo.
Alguns estudos sobre a Previdência Social e posições críticas sobre a reforma:
- "A falácia do rombo da Previdência", de Vilson Romero, acessível aqui.
- "A política fiscal e a falsa crise da seguridade social no Brasil", de Denise Gentil, acessível aqui.
- "A previdência social não tem deficit", de Eduardo Fagnani, disponível aqui.
- "Nota técnica. Previdência rural: contextualizando o debate em torno do financiamento e das regras de acesso", de Alexandre Arbex Valadares e Marcelo Galiza, disponível aqui.
- "Governo Temer: reflexões sobre a proposta de reforma da Previdência", de Rosa Maria Marques e Camila Kimie Ugino, disponível aqui.
- "Nota pública da OAB", disponível aqui.
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Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. É autora, entre outros, de Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu Abramo, 2014) e, em co-autoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014).
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