A crise do pensamento crítico latino-americano
[Detalhe da capa de Equador: da noite neoliberal à revolução cidadã, novo livro sobre economia latino-americana do presidente Rafael Correa, traduzido por Emir Sader]
Por Emir Sader.
É no momento de auge dos enfrentamentos políticos e das grandes lutas de ideias na América Latina que se sente com mais força a relativa ausência da intelectualidade critica. No momento em que os governos sofrem as mais duras ofensivas da direita, buscando impor processos de restauração conservadora, valendo-se do monopólio dos meios de comunicação, o pensamento critico latino-americano poderia ter um papel importante, mas sua ausência relativa é outro fator que afeta a força do campo da esquerda.
A direita se vale desse monopólio e de seus pop stars. Vargas Llosa e Fernando Henrique Cardoso – os queridinhos da direita internacional – voltam com força a campo para apoiar Mauricio Macri, a direita venezuelana e atacar os governos do Brasil, do Equador, da Bolívia. Não lhes faltam espaços, ainda que lhes faltem ideias.
Ao pensamento crítico não faltam ideias, a briga é por espaços, mas falta muito maior participação, faltam entidades que convoquem a intelectualidade crítica para que participe ativamente no enfrentamento dos problemas teóricos e políticos com que se debatem os processos progressistas na América Latina.
À pobreza das propostas de retorno à centralidade do mercado, do Estado mínimo, das politicas de retorno à subordinação aos EUA, à apologia das empresas privadas, resta um marco amplo de argumentos e de propostas a serem assumidos pela intelectualidade de esquerda. Para desmascarar as novas fisionomias que assume a direita, para valorizar os avanços da década e meia de governos pós-neoliberais, de promover o papel desses governos, na contracorrente da onda neoliberal que segue varrendo o mundo e os direitos dos mais vulneráveis.
Esses governos fizeram a critica, na prática, dos dogmas do pensamento único, de que "qualquer governo serio" deveria privilegiar os ajustes fiscais. De que não era possível crescer distribuindo renda. De que as políticas sociais só poderiam existir como um subproduto do crescimento econômico. Que a equação do dinamismo sócio econômico se expressa sempre com mais mercado e menos Estado. Que não há alternativa à subordinação aos países do centro do capitalismo. Que o Sul é o atraso…
Enfim, tudo o que os governos progressistas desmentiram rotundamente são argumentos fortes para que o pensamento crítico se apoie neles e encare as dificuldades presentes nas perspectivas do aprofundamento desses processos e não do seu abandono. Isto é feito por aqueles que – da direita à ultra esquerda – se refugiam no triste consolo de um suposto esgotamento do ciclo progressista. A ambas forças lhes sobram motivações, por terem sido derrotadas, por uma década e meia de ciclo progressista. Mas lhes faltam razões: elas não podem projetar um futuro para o continente que não seja a reiteração do passado desastroso e superado ou o discurso sem prática.
É o momento do pensamento crítico deixar de lado as práticas burocráticas que neutralizam o potencial crítico do pensamento latino-americano e mediocrizam as entidades tradicionais, e voltem a protagonizar, na primeira linha, a lucha anti-neoliberal. Tornem a, sem medo, propor ideias audazes, novas, emancipatórias, que voltem a enlaçar a intelectualidade com as novas gerações órfãs de futuro.
A burocratização é uma doença fatal para o pensamento crítico, seja das estruturas acadêmicas, seja das praticas institucionais em outras instancia. Até quando a intelectualidade crítica deixará que os "intelectuais midiáticos" da direita ocupem praticamente sozinhos os espaços de debate de ideias, que formem novas gerações nos valores do egoísmo, dos preconceitos, do consumismo?
A burocratização leva à despolitização, que é o melhor serviço que se pode prestar à direita, subtraindo espaços críticos à luta de ideias para volta-los simplesmente à manutenção de cargos e de remunerações. São burocratas que, ainda que nominalmente pretendem pertencer ao campo da esquerda, a desmoralizam, pelo uso abusivo das palavras sem a prática correspondente ou com uma prática sem ideias, nem projeção política concreta.
Foi uma tragédia para a esquerda a separação entre uma prática sem teoria – que frequentemente se perde nos meandros da institucionalidade vigente – e uma teoria sem prática concreta.
Hoje é indispensável resgatar a articulação entre pensamiento crítico e luta de superação do neoliberalismo, entre teoria e prática, entre intelectualidade e compromisso politico concreto. Se os velhos caminhos se desviaram dessas vias, novos tem que ser abertos. Os espaços públicos conquistados estão aí para serem ocupados. Como canta Pablo Milanés:
"Los caminos que encontramos hechos
son deshechos de viejos destinos.
No crucemos por esos caminhos
porque solo son caminos muertos"
Sejamos fieis aos precursores do pensamento crítico latino-americano, mas sobretudo fieis aos novos destinos que apenas começamos a construir.
Quem perde a batalha das ideias está fadado à derrota política. Não merecemos perder nem uma, nem a outra.
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Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). É secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena a coleção Pauliceia, publicada pela Boitempo, e organizou ao lado de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile a Latinoamericana – enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006), vencedora do 49º Prêmio Jabuti, na categoria Livro de não-ficção do ano. Publicou, entre outros, Estado e política em Marx, A nova toupeira e A vingança da história. Colabora para o Blog da Boitempoquinzenalmente, às quartas.
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