Uma dor continental
Por Tarso Genro
Para os militantes da minha geração, que estavam juntos na época da Guerra Fria, nos períodos dos regimes de exceção e de lutas legais e clandestinas nos anos 70, a morte de Eduardo Galeano, traz a dor da recordação e a lembrança de tempos que martelam na nossa memória. E a amassam. Raul Bopp num dos seus memoráveis poemas diz, a certa altura, num um dos seus melhores: "negro velho fuma diamba para amassar a memória".
A morte de Galeano amassa a nossa memória e dela saem, na extremidade do nosso passado, as recordações que iluminam o presente: não pensem, aqueles que querem novamente um regime forte e de exceção no país, que os crimes cometidos à época, o foram somente contra os que pegavam em armas ou que eram contra os regimes ditatoriais.
Uma fúria repressiva que não tem freios, como ocorreu -por exemplo- aqui no Uruguai, onde estou neste momento, ou, com maior ou menor intensidade, em todos os países da América Latina, não tem limites. Milhares de jovens de todas as classes e de todas as origens políticas, que nada tinham a ver com a resistência, também foram abatidos ou torturados, pela simples suspeita levantada por uma cabelo longo, por contestar um professor que integrava os "serviços reservados" ou, simplesmente, por abrigar um amigo perseguido. Às vezes, inclusive, sem consciência do que pessoa tinha feito ou estava envolvida.
É uma simples lembrança, que registro sem expectativa que tenha influência em alguém que esteja com a cabeça pronta para defender a volta de um improvável regime militar no país, no qual as Forças Armadas cumprem um papel garantidor da soberania sobre o nosso território. Mas é uma lembrança que faço em homenagem a Eduardo Galeano, que escrevia e falava sempre se reportando principalmente aos jovens, que ele via como a verdadeira energia garantidora da ampliação dos territórios da liberdade e da igualdade.
Quis o destino que estivesse em Montevideo no dia do velório de Galeano. Anteontem à noite — bem tarde da noite —, nas antigas ruas da cidade velha, um vento úmido e quente soprava vindo do rio. As folhas caídas dos plátanos escorriam, melancolicamente, sobre as ruas da cidade na qual ele tanto amou e lutou. Foi uma dor imensa, só revelada depois. Quando uma grande lágrima continental, dos pobres, dos excluídos, dos torturados, se derramou como uma sinfonia noturna. E então Galeano viveu para sempre.
Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
http://www.sul21.com.br/jornal/uma-dor-continental/
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