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pergunta:

"Até quando vamos ter que aguentar a apropriação da ideia de 'liberdade de imprensa', de 'liberdade de expressão', pelos proprietários da grande mídia mercantil – os Frias, os Marinhos, os Mesquitas, os Civitas -, que as definem como sua liberdade de dizer o que acham e de designar quem ocupa os espaços escritos, falados e vistos, para reproduzir o mesmo discurso, o pensamento único dos monopólios privados?"

Emir Sader

13.4.15

A aventura humana

Literatura
A aventura humana

Em seu novo livro, Espejos, Eduardo Galeano descreve alguns momentos fundadores da saga da humanidade. E nos adverte de que o faz "do ponto de vista dos que não saíram na foto". Os excertos, selecionados pelo próprio autor, que publicamos em primeira mão no Brasil, o confirmam

por Eduardo Hughes Galeano

Os espelhos estão cheios de gente.

Os invisíveis nos vêem.

Os esquecidos nos lembram.

Quando nos vemos, os vemos.

Quando nos vamos, eles se vão?

 

Este livro foi escrito para que não partam.

Nestas páginas unem-se o passado

e o presente.

Renascem os mortos,

os anônimos têm nome:

os homens que ergueram os palácios e os templos de seus amos;

as mulheres, ignoradas por aqueles que ignoram o que temem;

o sul e o oriente do mundo, desprezados por aqueles que desprezam o que ignoram;

os muitos mundos que o mundo contém e esconde;

os pensadores e os que sentem;

os curiosos, condenados por perguntar, e os rebeldes e os perdedores e os lindos loucos que foram e são o sal da terra

 

Fundação da poluição

Os pigmeus, que têm corpo pequeno e memória grande, recordam os tempos de antes do tempo, quando a terra estava acima do céu.

Da terra caía sobre o céu uma chuva incessante de pó e de lixo, que sujava a casa dos deuses e lhes envenenava a comida.

Os deuses estavam, havia uma eternidade, suportando essa descarga sebosa, quando sua paciência acabou.

Enviaram um raio, que partiu a terra em dois. E através da terra aberta lançaram para o alto o sol, a lua e as estrelas, e por esse caminho subiram eles também. E lá em cima, distante de nós, a salvo de nós, os deuses fundaram seu novo reino.

Desde então, estamos embaixo.

Fundação da beleza

Estão ali, pintadas nas paredes e nos tetos das cavernas.

Estas figuras, bisões, alces, ursos, cavalos, águias, mulheres, homens, não têm idade. Nasceram há milhares e milhares de anos, mas nascem de novo a cada vez que alguém as olha. 

Como eles conseguiram, nossos remotos avós, pintar de maneira tão delicada? Como eles conseguiram, esses brutos que de mão limpa lutavam contra as feras, criar figuras tão cheias de graça? Como eles conseguiram desenhar essas linhas voadoras que escapam da rocha e se vão para o ar? Como eles conseguiram …?

Ou seriam elas?

Fundação da arte de te desenhar 

Em algum leito do golfo de Corinto, uma mulher contempla, à luz do fogo, o perfil de seu amante adormecido.

Na parede, reflete-se a sombra.

O amante, que jaz ao seu lado, partirá. Ao amanhecer partirá para a guerra, partirá para a morte. E também a sombra, sua companheira de viagem, partirá com ele e com ele morrerá. 

Ainda é noite. A mulher recolhe um tição entre as brasas e desenha, na parede, o contorno da sombra. 

Esses traços não partirão.

Não a abraçarão e ela sabe disso. Mas não partirão.

Fundação literária do cão

Argos foi o nome de um gigante de cem olhos de uma cidade grega há quatro mil anos. 

Também se chamava Argos o único que reconheceu Odisseu, quando chegou, disfarçado, a Ítaca. 

Homero nos contou que Odisseu regressou, ao final de muita guerra e muito mar, e se aproximou de sua casa fazendo-se passar por um mendigo enfermiço e andrajoso. 

Ninguém se deu conta de que ele era ele. 

Ninguém, salvo um amigo que não sabia mais latir, nem podia caminhar, nem sequer se mover. Argos jazia, às portas de um galpão, abandonado, crivado pelos carrapatos, esperando a morte. 

Quando viu, ou talvez farejou, que aquele mendigo se aproximava, levantou a cabeça e abanou o rabo.

Fundação do machismo 

De uma dor de cabeça pode nascer uma deusa. Atena brotou da dolorida cabeça de seu pai, Zeus, que se abriu para lhe dá-la à luz. Ela foi parida sem mãe.

Tempos depois, seu voto foi decisivo no tribunal dos deuses, quando o Olimpo teve que pronunciar uma sentença difícil. 

Para vingar seu pai, Electra e seu irmão Orestes haviam decepado, de uma machadada, o pescoço de sua mãe. 

As Fúrias acusavam. Exigiam que os assassinos fossem apedrejados até a morte, porque a vida de uma rainha é sagrada e quem mata a mãe não tem perdão. 

Apolo assumiu a defesa. Sustentou que os acusados eram filhos de mãe indigna e que a maternidade não tinha a menor importância. Uma mãe, afirmou Apolo, não é mais que o sulco inerte onde o homem planta sua semente. 

Dos treze deuses do júri, seis votaram pela condenação e seis pela absolvição.

Atena decidia o desempate. Ela votou contra a mãe que não teve e deu vida eterna ao poder masculino em Atenas.

Fundação dos contos de fadas

No início do século dezoito, Daniel Defoe, o criador de Robinson Crusoé, escreveu alguns ensaios sobre temas de economia e comércio. Em um de seus trabalhos mais difundidos, Defoe exaltou a função do protecionismo estatal no desenvolvimento da indústria têxtil britânica: se não fosse pelos reis que tanto ajudaram o florescimento fabril com suas barreiras aduaneiras e seus impostos, a Inglaterra continuaria sendo uma fornecedora de lã crua para a indústria estrangeira. A partir do crescimento industrial da Inglaterra, Defoe podia imaginar o mundo do futuro como uma imensa colônia submetida a seus produtos.

Depois, à medida que o sonho de Defoe ia tornando-se realidade, a potência imperial foi proibindo, por asfixia ou a tiros de canhão, que outros países seguissem seu caminho.

– Quando chegou ao topo, chutou a escada – disse o economista alemão Friedrich List. 

Então, a Inglaterra inventou a liberdade de comércio: em nossos dias, os países ricos continuam contando esse conto aos países pobres, nas noites de insônia. 

Fundação da linguagem

Em 1870, ao final de uma guerra de cinco anos, o Paraguai foi aniquilado em nome da liberdade de comércio. 

Nas ruínas do Paraguai, sobreviveu o primeiro: entre tanta morte, sobreviveu o nascimento. 

Sobreviveu a língua original, a língua guarani, e com ela a certeza de que a palavra é sagrada. 

A mais antiga das tradições conta que nesta terra cantou a cigarra carmim e cantou o gafanhoto verde e cantou a perdiz e então cantou o cedro: da alma do cedro ressoou o canto que na língua guarani chamou os primeiros paraguaios. 

Eles não existiam. Nasceram da palavra que os nomeou. 

Fundação de Hollywood

Cavalgam os mascarados, túnicas brancas, brancas cruzes, tochas ao alto: os negros, famintos de brancas donzelas, tremem diante destes cavaleiros vingadores da virtude das damas e da honra dos cavalheiros.

Em pleno auge dos linchamentos, o filme de D. W. Griffith, O nascimento de uma nação, eleva seu hino de louvor à Ku Klux Klan.

Esta é a primeira superprodução de Hollywood e o maior êxito de bilheteria de todos os anos do cinema mudo. É, também, o primeiro filme que estréia na Casa Branca. O presidente, Woodrow Wilson, o aplaude de pé. O aplaude, se aplaude: este defensor da liberdade é o autor dos principais textos que acompanham as épicas imagens. 

As palavras do presidente explicam que a emancipação dos escravos foi uma verdadeira derrocada da Civilização no Sul, o Sul branco sob os calcanhares do Sul negro.

A partir de então, reina o caos, porque os negros são homens que ignoram os usos da autoridade, exceto suas insolências. 

Mas o presidente acende a luz da esperança: por fim foi dada à luz uma grande Ku Klux Klan.

E até Jesus em pessoa desce do céu, no final do filme, para dar sua bênção.

Fundação do Faroeste

Os cenários dos filmes do Oeste, onde cada revólver disparava mais balas que uma metralhadora, eram aldeias miseráveis, onde o único som eram os bocejos e os bocejos duravam muito mais que as badernas. 

Os cowboys, esses taciturnos cavalheiros, cavaleiros empertigados que atravessavam o universo resgatando donzelas, eram peões mortos de fome, sem nenhuma companhia feminina além das vacas que fustigavam, através do deserto, arriscando a vida em troca de um salário de fome. E não se pareciam nem um pouquinho com Gary Cooper, nem com John Wayne, nem com Alan Ladd, porque eram negros ou mexicanos ou brancos desdentados que nunca haviam passado pelas mãos de uma maquiadora. 

E os índios, condenados a trabalhar como extras no papel de maus, perversos, nada tinham a ver com esses débeis mentais, emplumados, mal pintados, que não sabiam falar e uivavam em volta da diligência crivada de flechadas. 

A saga do Faroeste foi a invenção de um punhado de empresários vindos da Europa Oriental. Estes imigrantes tinham bom olho para o negócio, Laemmle, Fox, Warner, Mayer, Zukor, que nos estúdios de Hollywood fabricaram o mito universal de maior sucesso do século vinte.

Eduardo Hughes Galeano é um dos mais prestigiados escritores latino-americanos da atualidade, Nascido em Montevidéu, Uruguai, em 1940, tornou-se mundialmente conhecido graças a seu livro As veias abertas da América Latina, publicado em 1971.


04 de Junho de 2008
Palavras chave: LiteraturaEduardo Hughes Galeano




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Cancion con todos

Salgo a caminar
Por la cintura cosmica del sur
Piso en la region
Mas vegetal del viento y de la luz
Siento al caminar
Toda la piel de america en mi piel
Y anda en mi sangre un rio
Que libera en mi voz su caudal.

Sol de alto peru
Rostro bolivia estaño y soledad
Un verde brasil
Besa mi chile cobre y mineral
Subo desde el sur
Hacia la entraña america y total
Pura raiz de un grito
Destinado a crecer y a estallar.

Todas las voces todas
Todas las manos todas
Toda la sangre puede
Ser cancion en el viento
Canta conmigo canta
Hermano americano
Libera tu esperanza
Con un grito en la voz