"Lula foi uma liderança internacional excepcional"
José Luís Fiori – Cientista político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
José Luís Fiori – Cientista político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
José Luís Fiori graduou-se em sociologia e fez mestrado em economia na Universidade do Chile, entre 1965 e 1973. Doutorou-se em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e hoje é livre-docente e professor titular de Economia Política Internacional no Instituto de Economia da UFRJ. Colabora regularmente com várias revistas e jornais e já publicou, entre outros livros, "O poder americano", "Poder e dinheiro" (Prêmio Jabuti de 1998) e "Polarização mundial e crescimento". Para o portal Panorama Mercantil o mesmo, fala sobre temas importantes que vão das lideranças esquerdistas da América do Sul até o poderio norte americano onde diz: "Não significa que os EUA não venham ser ultrapassados em breve pela economia chinesa, ou que não possam ser desafiados ou rivalizados por várias potências que disputam hegemonias regionais com os EUA, como é o caso da própria China".
Qual a análise que o senhor faz hoje do Brasil no cenário global?
No século XX o Brasil deu um salto gigantesco. No início do século era apenas um país agrário, com um Estado fraco e fragmentado, e com um poder econômico e militar muito inferior ao da Argentina. Mas hoje, no início do século XXI, o Brasil já é a quinta maior economia do mundo, e com um enorme potencial de crescimento devido a sua extraordinária dotação de recursos hídricos, energéticos, alimentares e de fatores estratégicos indispensáveis para um país que se propõe ser um grande exportador de commodities e ao mesmo tempo desenvolver seu próprio parque industrial e tecnológico. Além disto, na primeira década deste século, o Brasil deu passos importantes para assumir sua liderança sul-americana e projetar sua influência para fora do continente. Mas este caminho não será fácil, inclusive pela grande oposição interna de forças que se opõem ao expansionismo brasileiro em nome de sua defesa do chamado "cosmopolitismo de mercado", que oferece ganhos econômicos imediatos em troca do abandono de um projeto autônomo de projeção internacional do poder e de liderança internacional do Brasil. É uma luta que está em pleno curso e que ainda não tem um vencedor claro. Por isto também não é fácil antecipar o futuro do Brasil no cenário global nas próximas décadas. Mas se vencer o projeto que está em curso neste momento, ele seguirá dependendo da sustentabilidade no tempo da atual vontade estratégica do Governo e da sociedade brasileira.
O senhor acredita que seja possível em algum momento, um líder de um país em desenvolvimento questionar a atuação nem sempre correta do Status quo internacional nos mais variados temas de importância para todo globo?
Acho que todo e qualquer país têm o direito de questionar o que quiser, outra coisa diferente é saber se eles tem poder para se fazer ouvir. Mas com certeza um país que se proponha ascender na escala internacional de poder, terá inevitavelmente que questionar – em algum momento – o Status quo estabelecido e mantido pelo pequeno grupo das grandes potências, inclusive porque sua própria ascensão já é em si mesmo um desfio e um questionamento da ordem estabelecida. As grandes potências são poucas e sempre mantiveram sólidas barreiras à entrada de novos "sócios". Por isto, neste sistema interestatal, quem sobe terá sempre que enfrentar, em algum momento, o Status quo definido pelas potências ganhadoras. Neste sistema "quem não sobe, cai".
Alguns dizem que em um certo momento, Lula foi o líder que ligou o terceiro mundo com as nações mais poderosas do planeta, tem essa mesma visão?
Não sei se houve esta ligação, nem creio que nenhuma das partes que você menciona se tenham proposto conscientemente este objetivo. O que sim você pode dizer com toda certeza é que o presidente Lula foi uma liderança internacional excepcional, que transcendeu as dimensões do seu próprio país, e que colocou o Brasil numa posição de destaque internacional que nunca havia tido anteriormente. Além disto, Lula segue sendo uma liderança reconhecida e procurada em todo mundo, e em particular no que você chama de "terceiro mundo".
A hegemonia americana ainda durará ou o senhor acredita que ela pode ser ameaçada ou rivalizada em algum momento com outra nação como a China por exemplo?
Depende do que você considere que seja exatamente o conceito de "hegemonia". Se for uma liderança única e incontrastável, então de fato ela nunca existiu, ou foi apenas uma ilusão da década de 90 do século passado, logo depois do fim da Guerra Fria. Mas se não for isso, então há que reconhecer que os EUA tem hoje uma supremacia militar com relação ao resto do mundo que não deverá ser ultrapassada nas próximas décadas, talvez em todo o século XXI. Mas isto não significa que os EUA não venham ser ultrapassados em breve pela economia chinesa, ou que não possam ser desafiados ou rivalizados por várias potências que disputam hegemonias regionais com os EUA, como é o caso da própria China e com certeza, da Rússia, ou do Irã, por exemplo.
Quando o euro surgiu como moeda escritural em 1999 e depois como notas e moedas desde 2002, se pensou que o continente se fortaleceria de uma forma jamais vista. Depois da crise de 2008, países como a Grécia, foram duramente atingidos. Qual deve ser o futuro da Zona do Euro?
Do meu ponto de vista o problema central é que o euro é uma moeda emitida por um Banco Central "metafísico", que não pertence a nenhum Estado, nem administra a dívida de nenhum Tesouro Central. O novo sistema monetário europeu começou a ser construído com o Tratado de Maastricht, em 1992, e culminou com a criação do euro, em 2002, e sua concepção supunha que esta nova moeda "global" levaria inevitavelmente à criação de um poder central capaz de gerí-la, porque a própria história europeia ensina que foram sempre os Estados nacionais que emitiram as moedas soberanas, garantindo o seu valor com base na sua capacidade de tributação e de endividamento. Deste ponto de vista, se pode dizer que o euro tem uma "falha de nascimento", e que funcionou até hoje, como uma espécie peculiar de moeda semi-privada e inconclusa, sendo aceita com base na crença privada e na certeza publica de que o BCE (Banco Central Europeu), e a Alemanha, cobririam todas as dívidas emitidas pelos Estados membros da "eurozona". Nesse sentido, me parece que a moeda europeia só se transformará numa moeda efetiva, quando for lastreada por um Estado e por um Tesouro Central que assumam a responsabilidade pela sua sustentação e pela sua circulação internacional.
Por que EUA não interviram diretamente na Síria como fizeram com a Líbia e com o Iraque?
Porque todas sujas intervenções militares deste início do século XXI foram um fracasso ou foram inconclusivas, do ponto de vista político. Ou seja, foram vitórias militares cujas consequências políticas escaparam ao controle dos EUA, como foi o caso do Afeganistão, do Iraque, da Líbia, etc. Sendo que no caso da Síria, a complexidade da situação é muito maior e envolve a uma grande possibilidade explícita de que sua intervenção militar resultasse na entrega do governo da Síria em mãos de grupos ligados diretamente ao seu maior inimigo, o movimento Al Quaeda. Já basta que sua gigantesca intervenção militar no Iraque tenha promovido, em última instância, a entrega do governo iraquiano aos xiitas, aliados do Irã. Além disso, é óbvio, há que agregar que os EUA também sofreram a oposição de seus principais aliados europeus, começando pela Inglaterra, seu verdadeiro cão de fila nas intervenções militares anteriores.
Hoje fala-se muito no poder dos EUA e da China, e a Rússia que já foi a grande rival dos norte-americanos no passado, como fica nesse "tabuleiro"?
A Rússia já foi atacada, invadida e destruída várias vezes através de sua história milenar, e sempre voltou a se levantar, reconstruir, e reocupar uma posição de destaque entre os grandes poderes mundiais. Mas em 1991, parecia impossível que isto pudesse acontecer de novo, depois da derrota soviética e da destruição liberal da economia russa. Dezesseis anos depois, a Rússia está de novo de pé, e volta a preocupar o "mundo ocidental". Logo depois da Segunda Guerra Mundial, Hans Morgenthau [alemão pioneiro no campo de estudos da teoria das relações internacionais 1904-1980], o pai da teoria política internacional realista, norte-americana, formulou a tese de que a causa das guerras têm a ver com a vontade dos derrotados recuperarem sua posição anterior à sua derrota, retomando seu lugar na hierarquia do poder mundial. E esta é a situação da Rússia, neste início do século XXI. E não queira esquecer que a Rússia segue sendo o maior Estado territorial e a maior reserva energética e detém o segundo arsenal atômico do mundo, e é o único país com capacidade real de intervenção estratégica, e de disputa hegemônica, em todo o continente eurasiano.
O conflito Israel-Palestina é uma guerra sem fim?
Não existem guerras sem fim, mas com certeza se pode falar de guerras seculares, e este conflito tem grandes possibilidades de se transformar numa destas guerras, pelo imenso número e complexidade dos fatores históricos, religiosos, e geopolíticos envolvidos, incluindo o arsenal atômico de Israel. Se Israel não dispusesse de um arsenal atômico, e se Israel não tivesse sido até hoje o ponta de lança dos americanos na região, ou seja, se este conflito envolvesse apenas Israel e a Palestina, ele seria apenas mais um destes conflitos crônicos que se arrastam sem solução, em vários cantos do mundo, uma vez que se tratam de dois Estados nacionais muito pequenos.
Como tem observado os governos de esquerda da América do Sul?
Creio que foram um dos acontecimentos mais surpreendentes do início do século XXI. Pela sua simultaneidade e por ter sido num continente onde as forças de esquerda nunca chegaram ao poder, ou quando chegaram foram desalojadas por golpes militares ou por intervenções externas. Além disto, ao contrário de outros momentos e lugares, na América do Sul estes governos contaram a seu favor com uma situação econômica internacional extremamente favorável, sobretudo pelo peso da nova demanda chinesa na dinâmica econômica continental. Mas ao mesmo tempo, a própria reeleição destes governos têm colocado desafios novos e inusitados, para a esquerda e para o continente como um todo. E este é o grande desafio que estes governos enfrentarão nesta segunda década do século, depois da sua euforia inicial embalada pelo sucesso da economia. O desafio de se reinventarem como projeto e como estratégia, e de reinventarem a própria esquerda, numa conjuntura internacional em que as forças socialistas e social-democratas parecem ter perdido o rumo, como no caso da própria Europa, onde eles nasceram.
Acredita que as relações entre EUA e Irã, devem avançar de uma forma positiva, tendo agora o país do Oriente Médio um intelectual e diplomata como presidente?
Acredito que sim, a despeito da imensa resistência interna dentro da elite norte-americana, e entre vários aliados tradicionais dos EUA, no Oriente Médio. Todos tentarão boicotar o acordo permanentemente, mas me parece que existem forças objetivas que apontam para a necessidade de um redesenho do equilíbrio de forças na região, inclusive para diminuir o grau de envolvimento dos norte-americanos. Neste momento o governo Obama vem fazendo um grande esforço de terciarização de sua supremacia, em muitos tabuleiros geopolíticos regionais onde a presença direta americana ficou muito onerosa de todos os pontos de vista. E com certeza, dois destes tabuleiros se destacam entre todos: o Oriente Médio e a Ásia Central. E nos dois casos o Irã é a potência regional que mais pode ajudar os EUA a estabilizar estas regiões, ainda mais se o Irã e os EUA contarem com a colaboração da Rússia. Este aliás é o grande acordo que está por trás das atuais negociações entorno ao programa nuclear do Irã e em torno da reorganização da Síria. Se ele tiver sucesso será um verdadeiro terremoto geopolítico. Talvez até consiga interromper definitivamente a guerra secular entre Israel e a Palestina.
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