Como já tive oportunidade de destacar em outra oportunidade "há algo profundo no jogo das palavras". Ainda mais quando, quem as maneja, tem, por dever de ofício, que relatar o que cobre com precisão e clareza. Fica evidente que razão cínica e ética ambíguas são irmãs siamesas. E no jornalismo brasileiro, mudam as gerações, mas as tragédias continuam e o imaginário dos aquários insiste em se engalfinhar contra as evidências factuais.
Agora, empenhada em afirmar que o governo brasileiro teria agido de maneira irresponsável ao conceder abrigo ao presidente deposto, a mídia corporativa repete um velho procedimento. Tenta armar, na produção noticiosa, uma subversão monstruosa: a autoria e a responsabilidade do golpe são transferidas aos que a ele se opõem, de modo que os golpistas, posando de impolutos democratas, ainda encontrem razões e argumentos para desmoralizar, reprimir e, se possível, eliminar seus oponentes. Para a empreitada foram convocados até diplomatas aposentados, saudosos de uma subalternidade quase colonial.
Uma característica saliente do discurso editorial, e de forma alguma sem importância, é o tom mordaz de quem que se propõe a dizer "verdades" a leitores e/ou telespectadores não apenas iludidos, mas idealizados como obtusos. O trecho abaixo, extraído da revista Veja ( edição 2132, de 30/09/2009) é exemplar. Trata-se da reportagem "O pesadelo é nosso", assinada pelos jornalistas Otávio Cabral e Duda Teixeira.
"Com as eleições marcadas para o próximo dia 29 de novembro, o governo interino que derrubou Zelaya se preparava para reconduzir o país à normalidade democrática. O candidato ligado a Manuel Zelaya aparecia até bem colocado nas pesquisas de intenção de voto. Seria uma saída rápida e democrática para um golpe, coisa inédita na América Latina. Seria. Agora o desfecho da crise é imprevisível. O mais lógico seria deixar o retornado sob os cuidados dos amigos brasileiros até depois das eleições, que, se legítimas, convenceriam a comunidade internacional das intenções democráticas dos golpistas"
Não procurem lógica no texto. Muito menos o uso político do mito da objetividade jornalística. O panfletarismo é prepotente e assumidamente faccioso para se preocupar com detalhes. Falar em "intenções democráticas dos golpistas" não expressa dificuldade de ordem racional, mas uma formidável comédia de erros e imposturas orquestradas por setores decisivos de uma direita inconformada com uma política externa exitosa.
Não se trata apenas da insistência da grande mídia brasileira em "manter um viés anti-Lula, fazendo uma cobertura parcial e tendenciosa sobre os acontecimentos que envolvem o fato", como afirmou o deputado José Genoíno. A operação em curso vai bem além desse propósito. O que ela busca ocultar são os resultados da reunião do G-20, em Pittsburgh, com a abertura para a reorganização das instituições financeiras internacionais e maiores direitos para os países emergentes. O êxito diplomático deve ser substituído por uma "trapalhada ideológica que não faz jus à tradição pragmática do Itamaraty".
É exatamente isso o que confessa o articulista Clóvis Rossi, em sua coluna de sexta-feira, 25 de setembro, na Folha de S. Paulo.
"Escrevendo textos no lobby do Hotel Sheraton, em que Luiz Inácio Lula da Silva está hospedado em Pittsburgh, sou agradavelmente interrompido por Gilberto Scofield, o competente correspondente de O Globo em Washington: Cara, Honduras conseguiu eclipsar completamente o G20 nos jornais brasileiros. Só recebo cobranças sobre Honduras".
Essa desenvoltura de militantes eufóricos só reforça o que se sabe da grande imprensa. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mas os modelos-teimosos- permanecem como farsa de um jornalismo que não se sabe ao certo se é "de facto" ou interino. Os acontecimentos de Tegucigalpa são contagiantes
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Correio do Brasil e do Jornal do Brasil.
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