Estados Unidos fascistas: Já chegamos lá?
As elites conservadoras dos Estados Unidos jogaram abertamente seu futuro com o das legiões de descontentes da extrema-direita. Elas deram apoio explícito e poder às legiões para que ajam como um braço político nas ruas americanas, apoiando ameaças físicas e a intimidação de trabalhadores, liberais e autoridades que se neguem a defender seus [das elites] interesses políticos e econômicos. Chegamos. Estamos estacionados exatamente no lugar onde nossos melhores especialistas dizem que o fascismo nasce. O artigo é de Sara Robinson, do blog For Our Future.
Sara Robinson - Blog For Our Future
Artigo publicado em português  no site Vi o Mundo, de Luiz Carlos Azenha.
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Através da escuridão dos  anos do governo Bush, os progressistas assistiram horrorizados ao sumiço das  proteções constitucionais, à retórica nativista, ao uso do discurso de ódio  transformado em intimidação e violência e a um presidente dos Estados Unidos que  assumiu poderes só exigidos pelos piores ditadores da história. Com cada novo  ultraje, o punhado de nós que tinha se tornado expert na cultura e na política  da extrema-direita ouvia de novos leitores preocupados: Chegamos lá? Já nos  tornamos um estado fascista? Quando vamos chegar lá?
E cada vez que essa  pergunta era feita, gente como Chip Berlet e Dave Neiwert e Fred Clarkson e eu  mesma olhava para o mapa como o pai que faz uma longa viagem e respondia com um  sorriso confortador. "Bem... estamos numa estrada ruim, se não mudarmos de  caminho poderíamos acabar lá em breve. Mas há muito tempo e oportunidades para  voltar. Fique de olho, mas não se preocupe. Pode parecer ruim, mas não, ainda  não chegamos lá".
Ao investigar a quilometragem nesse caminho para a  perdição, muitos de nós nos baseávamos no trabalho do historiador Robert Paxton,  que é provavelmente o estudioso mais importante na questão de como os países  adotam o fascismo. Em um trabalho publicado em 1998 no Jornal da História  Moderna, Paxton argumentou que a melhor forma de reconhecer a emergência de  movimentos fascistas não é pela retórica, pela política ou pela estética. Em vez  disso, ele afirmou, as democracias se tornam fascistas por um processo  reconhecível, um grupo de cinco estágios que identificam toda a família de  "fascismos" do século 20. De acordo com nossa leitura de Paxton, ainda não  estávamos lá. Havia certos sinais -- um, em particular -- em que estávamos de  olho, e ainda não o reconhecíamos.
E agora o reconhecemos. Na verdade, se  você sabe o que procura, repentinamente vê isso em todo lugar. É estranho que eu  não tenha ouvido a pergunta por um bom tempo; mas se você me fizer a pergunta  hoje, eu diria que ainda não chegamos, mas que já entramos no estacionamento e  estamos procurando uma vaga. De qualquer forma, o futuro fascista dos Estados  Unidos aparece bem grande diante do vidro do automóvel -- e os que dão valor à  democracia dos Estados Unidos precisam entender como chegamos aqui, o que está  mudando e o que está em jogo no futuro próximo se permitirmos a essa gente  vencer -- ou mesmo manter o território.
O que é fascismo?
A  palavra tem sido usada por tanta gente, tão erroneamente, por tanto tempo que,  como disse Paxton, "todo mundo é o fascista de alguém". Dado isso, sempre gosto  de começar a conversa revisitando a definição essencial de  Paxton:
"Fascismo é um sistema de autoridade política e ordem social  que tem o objetivo de reforçar a unidade, a energia e a pureza de comunidades  nas quais a democracia liberal é acusada de produzir divisão e  declínio".
Em outro lugar, ele refina o termo como "uma forma de  comportamento político marcado pela preocupação obsessiva com o declínio da  comunidade, com a humilhação e a vitimização e pelo culto compensatório da  unidade, energia e pureza, na qual um partido de massas de militantes  nacionalistas, trabalhando em colaboração desconfortável mas efetiva com as  elites tradicionais, abandona as liberdades democráticas e busca através de  violência redentora e sem controles éticos ou legais objetivos de limpeza  interna e expansão externa".
Não considerando Jonah Goldberg, é uma  definição básica com a qual a maioria dos estudiosos concorda e é a que usarei  como referência
Do proto-fascismo ao momento-chave
De  acordo com Paxton, o fascismo surge em cinco estágios. Os dois primeiros estão  solidamente atrás de nós - e o terceiro deveria ser de particular interesse para  os progressistas nesse momento.
No primeiro estágio, um movimento rural  emerge em busca de algum tipo de renovação nacionalista (o que Roger Griffin  chama de palingenesis, o renascimento das cinzas, como a de fênix). Eles se  reúnem para restaurar uma ordem social rompida, como sempre usando temas como  unidade, ordem e pureza. A razão é rejeitada em favor da emoção passional. A  maneira como a história é contada muda de país para país; mas ela sempre tem  raiz na restauração do orgulho nacional perdido pela ressureição dos mitos e  valores tradicionais da cultura e na purificação da sociedade das influências  tóxicas de estrangeiros e de intelectuais, aos quais cabe o papel de culpados  pela miséria atual.
O fascismo somente cresce no solo revolto de uma  democracia madura em crise. Paxton sugere que a Ku Klux Klan, que se formou em  reação à Restauração pós-Guerra Civil, pode ser o primeiro movimento  autenticamente fascista dos tempos modernos. Quase todo país da Europa teve um  movimento proto-fascista nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial (quando o  Klan experimentou um ressurgimento nos Estados Unidos), mas a maior parte deles  empacou no primeiro estágio -- ou no próximo.
Como Rick Perlstein  documentou em seus dois livros sobre Barry Goldwater e Richard Nixon, o  conservadorismo moderno dos Estados Unidos foi construído sobre esses mesmos  temas. Do "Despertar nos Estados Unidos" [tema de campanha de Ronald Reagan] aos  grupos religiosos prontos para a Ruptura [os milenaristas], ao nacionalismo  branco promovido pelo Partido Republicano através de grupos racistas de vários  graus, é fácil identificar como o proto-fascismo americano ofereceu a redenção  dos turbulentos anos 60 ao promover a restauração da inocência dos Estados  Unidos tradicionais, brancos, cristãos e patriarcais.
Essa visão foi  abraçada tão completamente que todo o Partido Republicano agora se define nessa  linha. Nesse estágio, é abertamente racista, sexista, repressor, excludente e  permanentemente viciado na política do medo e do ódio. Pior: não se envergonha  disso. Não se desculpa para ninguém. Essas linhas se teceram em todo movimento  fascista da História.
Em um segundo estágio, os movimentos fascistas  ganham raízes, se tornam partidos políticos reais e ganham um lugar na mesa do  poder.
Interessantemente, em todo caso citado por Paxton a base política  veio do mundo rural, das partes menos educadas do país; e quase todos chegaram  ao poder se oferecendo especificamente como esquadrões informais organizados  para intimidar pequenos proprietários em nome dos latifundiários.
A KKK  lutava contra os pequenos agricultores negros [do sul dos Estados Unidos] e se  organizou como o braço armado de Jim Crow. Os "squadristi" italianos e os  camisas-marrom da Alemanha reprimiam greves rurais. E nos dias de hoje os grupos  anti-imigração apoiados pelo Partido Republicano tornam a vida dos trabalhadores  rurais hispânicos nos Estados Unidos um inferno. Enquanto a violência contra  hispânicos aumenta (cidadãos americanos ou não), os esquadrões da direita estão  obtendo treinamento básico que, se o padrão se confirmar, poderão eventualmente  usar para nos intimidar.
Paxton escreveu que o sucesso no segundo estágio  "depende de certas condições relativamente precisas: a fraqueza do estado  liberal, cujas inadequações condenam a nação à desordem, declínio ou humilhação;  e a falta de consenso político, quando a direita, herdeira do poder mas incapaz  de usá-lo sozinha, se nega a aceitar a esquerda como parceira  legítima".
Paxton notou que Hitler e Mussolini assumiram o poder sob  essas mesmas circunstâncias: "Paralisia do governo constitucional (produzida em  parte pela polarização promovida pelos fascistas); líderes conservadores que se  sentiram ameaçados pela perda de capacidade para manter a população sob controle  num momento de mobilização popular maciça; o avanço da esquerda; e líderes  conservadores que se negaram a trabalhar com a esquerda e que se sentiram  incapazes de continuar no governo contra a esquerda sem um reforço de seus  poderes".
E, mais perigosamente: "A variável mais importante é aceitação,  pela elite conservadora, de trabalhar com os fascistas (com uma flexibilidade  recríproca dos líderes fascistas) e a profundidade da crise que os induz a  cooperar".
Essa descrição parece muito com a situação difícil em que os  congressistas republicanos estão nesse momento. Apesar do partido ter sido  humilhado, rejeitado e reduzido a um status terminal por uma série de  catástrofes nacionais, a maior parte produzida pelo próprio partido, sua  liderança não pode nem imaginar governar cooperativamente com os democratas em  ascensão. Sem rotas legítimas para voltar ao poder, sua última esperança é  investir no que restou de sua "base dura", dando a ela uma legitimidade que não  tem, recrutá-la como tropa de choque e derrubar a democracia americana pela  força. Se eles não podem vencer eleições, estão dispostos a levar a disputa  política para as ruas e assumir o poder intimidando os americanos a se manterem  silenciosos e cúmplices.
Quanto esta aliança "não santa" é feita, o  terceiro estágio -- a transição para um governo abertamente fascista --  começa.
O terceiro estágio: chegando lá
Durante os anos do  governo Bush, os analistas progressistas da direita se negaram a chamar o que  viam de "fascismo" porque, apesar de estarmos de olho, nunca vimos sinais claros  e deliberados de uma parceria institucional comprometida entre as elites  conservadoras dos Estados Unidos e a horda nacional de camisas-marrom. Vimos  sinais de flertes breves - algumas alianças políticas, apoio financeiro,  palavras-de-ordem doidas da direita na boca de líderes conservadores  tradicionais. Mas era tudo circunstancial e transitório. Os dois lados  mantiveram uma distância discreta um do outro, pelo menos em público. O que  acontecia por trás das portas, só dá para imaginar. Eles com certeza não agiam  como um casal.
Agora, o jogo de advinhação acabou. Nós sabemos sem  qualquer dúvida que o movimento do Teabag foi criado por grupos como o  FreedomWorks do Dick Armey e o Americans for Prosperity do Tim Phillips, com  ajuda maciça de mídia da Fox News [a TV de Rupert Murdoch, o magnata da mídia, é  porta-voz da extrema-direita dos Estados Unidos].
Site da  FreedomWorks
Site do  Americans For Prosperity
[Nota do Viomundo: O movimento do  Teabag foi um protesto em escala nacional, organizado pelos republicanos, com  ampla cobertura da Fox, em que eleitores protestaram contra a cobrança de  impostos e o tamanho do governo federal. Uma tentativa de trazer de volta a  rebelião contra a cobrança de impostos que esteve na origem do movimento de  independência dos Estados Unidos. Ver Boston Tea Party]
Vimos a  questão dos birther [aqueles que acreditam que Barack Obama não nasceu nos  Estados Unidos, mas no Quênia] -- o tipo de lenda urbana que nunca deveria ter  saído da capa do [jornal sensacionalista] National Enquirer -- sendo ratificada  por congressistas republicanos. 
Vimos os manuais produzidos  profissionalmente por Armey que instruem grupos de eleitores republicanos na  arte de causar distúrbios no processo de governo democrático - e as imagens de  autoridades públicas aterrorizadas e ameaçadas a ponto de requererem  guarda-costas armados para sair de prédios [os protestos aconteceram durante  audiências públicas para debater o novo sistema de saúde].
Um dos protestos aparece aqui
Vimos o líder da  minoria republicana John Boehner aplaudindo e promovendo um vídeo de  manifestantes e esperando por "um longo e quente agosto para os democratas no  Congresso".
Este é o sinal pelo qual estávamos esperando -- o que nos  diria que sim, crianças, chegamos. As elites conservadoras dos Estados Unidos  jogaram abertamente seu futuro com o das legiões de descontentes da  extrema-direita. Elas deram apoio explícito e poder às legiões para que ajam  como um braço político nas ruas americanas, apoiando ameaças físicas e a  intimidação de trabalhadores, liberais e autoridades que se neguem a defender  seus [das elites] interesses políticos e econômicos.
Este é o momento  catalisador em que o fascismo honesto, de Hitler, começa. É nossa última chance  de brecá-lo.
O ponto decisivo
De acordo com Paxton, esse  momento da aliança do terceiro estágio é decisivo - e o pior é que quando se  chega a esse ponto, é provavelmente tarde para pará-lo. Daqui, há uma escalada,  quando pequenos protestos se tornam espancamentos, mortes e a aplicação de  rótulos em certos grupos para eliminação, tudo dirigido por pessoas no topo da  estrutura de poder. Depois do Dia do Trabalho [Labor Day], quando senadores e  deputados democratas voltarem a Washington, grupos organizados para intimidá-los  vão permanecer na cidade e usar a mesma tática - aumentada e aperfeiçoada a cada  uso - contra qualquer pessoa cuja cor, religião ou inclinação política eles não  aceitem. Em alguns lugares, eles já estão tomando nota e preparando listas de  nomes.
Qual é a linha do perigo? Paxton oferece três rápidas perguntas  que nos ajudam a identificar:
1. Estão os neo ou proto-fascistas se  tornando arraigados em partidos que representam grandes interesses e sentimentos  e conseguem ampla influência na cena política?
2. O sistema econômico ou  constitucional está congestionado, de forma aparentemente insuperável, pelas  autoridades atuais?
3. A mobilização política rápida está ameaçando sair  do controle das elites tradicionais, ao ponto que elas poderiam buscar ajuda  para manter o controle?
Pela minha avaliação, a resposta é sim. Estamos  muito perto. Muito perto.
O caminho adiante
A História nos diz  que uma vez essa aliança [entre a elite e a tropa de choque] é formada,  catalisada e tem sucesso em busca do poder, não há mais como pará-la. Como Dave  Neiwert escreveu em seu livro recente, The Eliminationists, "se apenas  podemos identificar o fascismo em sua forma madura - os camisas-marrom com  passos de ganso, o uso de táticas de intimidação e violência, os comícios de  massa - então será muito tarde para enfrentá-lo".
Paxton (que anteviu que  "um autêntico fascismo popular nos Estados Unidos será crente e anti-negros")  concorda que se uma aliança entre as corporações e os camisas-marrom tiver uma  conquista - como a nossa aliança tenta agora [barrando a reforma do sistema de  saúde proposta por Barack Obama] - pode rapidamente ascender ao poder e destruir  os últimos vestígios de um governo democrático. Assim que ela conseguir algumas  vitórias, o país estará condenado a fazer a feia viagem através dos dois últimos  estágios, sem saída ou paradas entre agora e o fim.
O que nos espera? No  estágio quatro, quando o dueto assumir o controle completo do país, lutas  políticas vão emergir entre os crentes do partido - os camisas-marrom e as  instituições da elite conservadora - igreja, militares, profissionais e  empresários. O caráter do regime será determinado por quem vencer a disputa. Se  os membros do partido (que chegaram ao poder através da força bruta) vencerem,  um estado policial autoritário seguirá. Se os conservadores conseguirem  controlá-los, um teocracia tradicional, uma corporocracia ou um regime militar  podem emergir com o tempo. Mas em nenhum caso o resultado lembrará a democracia  que a aliança derrubou.
Paxton caracteriza o estágio cinco como  "radicalização ou entropia". Radicalização é provável se o novo regime conseguir  um grande vitória militar [Nota do Azenha: sobre a Venezuela, por  exemplo], o que consolida seu poder e dá apetite para expansão e uma  reengenharia social em grande escala (Veja a Alemanha). Na ausência do evento  radicalizador, podemos ter a entropia, com a perda pelo estado de seus  objetivos, o que degenera em incoerência política (Ver a Itália).
É fácil  neste momento olhar para a confusão na direita e dizer que é puro teatro  político do tipo mais absurdamente ridículo. Que é um show patético de  marionetes. Que esse povo não pode ser levado a sério. Com certeza, eles estão  com raiva -- mas eles são minoria, fora do poder e reduzida a ataques de nervos.  Os crescidos devem se preocupar com eles tanto quanto se preocupam com uma  menina de cinco anos, furiosa, que ameaça segurar a respiração até ficar  azul.
Infelizmente, todo o barulho e as ameaças obscurecem o perigo. Essa  gente é tão séria quanto uma multidão linchadora e eles já deram os primeiros  passos para se tornar uma. Eles vão se sentir mais altos e mais orgulhosos agora  que suas tentativas de desobediência civil estão contando com apoio integral das  pessoas mais poderosas do país, que cinicamente os usam numa última tentativa de  garantir suas posições de lucro e prestígio.
Chegamos. Estamos  estacionados exatamente no lugar onde nossos melhores especialistas dizem que o  fascismo nasce. Todos os dias que os conservadores no Congresso, os  comentaristas de extrema-direita e seus barulhentos seguidores conseguem segurar  nossa capacidade de governar o país, é mais um dia em que caminhamos em direção  à linha final, da qual nenhum país, mostra a História, conseguiu  retornar.
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