CARTA DE BERLIM
No artigo, cinco razões para os arautos da direita brasileira (de que Veja é apenas o mais conspícuo ninho) detestarem a sombra de Ernesto Guevara, que continua mais viva do que nunca, sobretudo do que aqueles vivos que estão mortos e ainda não sabem.
No artigo, cinco razões para os arautos da direita brasileira (de que Veja é apenas o mais conspícuo ninho) detestarem a sombra de Ernesto Guevara, que continua mais viva do que nunca, sobretudo do que aqueles vivos que estão mortos e ainda não sabem.
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Flávio Aguiar
Flávio Aguiar
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Causou reações a reacionária matéria de capa de Veja sobre Ernesto Guevara, por ocasião destes 40 anos de sua morte, assassinado por membros do Exército boliviano a serviço dos Estados Unidos. Mas é coisa de não causar surpresa.
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Tentaram, na revista, levantar o que os psicanalistas jungueanos chamariam de “a sombra” de Ernesto Guevara. Sob a égide de “destruir” um mito, pretenderam levantar tudo o que de negativo se poderia sobre a vida de um homem humano, certamente mais humano do que estes arautos do que de mais servil existe no jornalismo brasileiro.
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Não conseguem. É verdade que Ernesto Guevara se transformou no mito Che. Num mito, quanto mais se bate, mais ele cresce. Porque ao contrário do que essas vulgaridades pensam, um mito não é sinônimo de uma mentira. Um mito é uma história que explica porque estamos aqui e somos assim ou assado. Um mito remonta a enigmas que não conseguimos explicar. Então temos que narrar.
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Abaixo, dou cinco razões pelas quais os arautos da direita brasileira não podem suportar o mito Che. Muito mais do que a direita propriamente, porque duvido que os poderosos de fato na direita estejam hoje muito preocupados com o mito Che Guevara. Até porque nenhum – repito, nenhum – governo de hoje na América Latina está à altura do mito.
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1) Che em línguas pampeanas quer dizer “homem”. Em guarani quer também dizer “meu”. El Che significa “o homem”, “o ser humano”, em linguagens que, como rios subterrâneos, nos lembram das catástrofes históricas que nos trouxeram até hoje. O nome, El Che, é uma cicatriz da história, assim como o de Zumbi, ou o de Anita Garibaldi. Com a diferença de que ele cobre o continente e hoje o mundo com sua imagem. A mera presença desse nome como dos preferidos no mundo inteiro prova que as tragédias dos povos são inesquecíveis, por mais que as queiram mergulhar no esquecimento. O nome do Che é um ícone do anjo de Walter Benjamin, aquele que segue para diante na história, mas de costas, vendo-a como uma construção de ruínas.
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2) O Che foi um guerrilheiro romântico. Nada mais estranho ao mundo desses arautos do que qualquer sombra de romantismo rebelde. Eles (os arautos) tiveram que eleger o servilismo como estilo, têm que beijar a mão que os afaga ou os chicoteia conforme o gosto (o deles e o da mão). Palavras como rebeldia, entono, ousadia, energia, paixão, e outras do mesmo estilo, são verbetes em branco nos seus dicionários. O Che – que como todo o ser humano tinha qualidades, defeitos e problemas, e que como todo o mito, é mais uma lâmina de contradições do que de certezas absolutas – era alegre, era um ser voltado para a vida, não párea a morte. Como podem os mortos vivos passar incólumes diante desse ser em contínua operação na história, eles que venderam a alma mas esperam poder deixar de entrega-la?
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3) O Che era latino-americano. Nada mais detestável para esses arautos (e aí também para os poderosos da direita) do que a lembrança de que eles são latino-americanos. O ideal da sombra deles (a sombra é aquilo que a gente também é mas não gosta de lembrar de que é) é que o Brasil fosse uma imensa pista de aeroporto rumo ao norte, aos idolatrados shoppings centers onde se fala inglês como “língua natural” (como se isso existisse), porque é assim que eles vêm o mundo e a cultura do hemisfério norte. O fato do ícone cuja imagem é uma das mais procuradas no mundo ser a de alguém que morreu pelos povos desse continente amaldiçoado pelos poderes de todo o mundo traz pesadelos inconfessáveis para esses arautos. Pesadelos tão pesados que de manhã eles fingem nem se lembrar deles. Fingem tão fingidamente que até acreditam ser o sonhozinho de consumo em que fingidamente vivem, esses sinhozinhos das próprias palavras, a quem tratam como escravas.
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4) O Che lutou pela libertação da África. E com os demais companheiros e companheiras do Exército cubano. Sem a participação de Cuba, é possível até que o regime do apartheid sulafricano pelo menos demorasse muito mais para cair. A vitória do Exército angolano, com Cuba, contra as forças sulafricanas, na batalha de Cuita Canevale foi fundamental para a queda do regime sulafricano. É verdade que as iniciativas do Che nas lutas no Congo não tiveram êxito. Não importa: como o Che é que se tornou o mito, ele carrega nas costas essa pesada carga de ser um dos ícones da solidariedade latino-americana com os povos do continente cujas costas lanhadas de sangue ajudaram a construir a nossa riqueza.
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5) O Che era bonito. Aí é demais. Dispensa palavras.Tudo isso vem aliado à terrível sensação, para esses arautos, de que o mito do Che, a lembrança do personagem vivo, sobreviverá a todos eles. E que se esse mito-anjo vê a história como a construção de ruínas, eles, os arautos, são as mais expressivas da ruína humana a que se reduz o servilismo eleito como estilo.
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Flávio Aguiar é editor-chefe da Carta Maior
Flávio Aguiar é editor-chefe da Carta Maior
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