'Falar que tema da redação do Enem é de esquerda é assustador'
Luís Eduardo Gomes
Neste domingo, os estudantes que prestaram o Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) precisaram escrever a redação sobre o tema "A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira". Apesar do tom neutro do enunciado, o tema – juntamente com uma questão do dia anterior – se tornou o centro de umadiscussão na internet sobre a questão de gênero, que acabou polarizada como uma disputa entre esquerda x direita.
Profissionais que trabalham diretamente com a questão da violência contra a mulher condenaram esta polarização e saudaram a escolha do tema, afirmando que o fato de ele ser discutido no campo da educação ajuda a chamar a atenção para um assunto que sofre com o problema da subnotificação.
"Eu acho extremamente importante que o tema da violência doméstica contra a mulher tenha sido abordado, gerando a reflexão de mais de 7 milhões de jovens inscritos no Enem", disse o juiz José Luiz Leal Vieira, responsável pela Coordenadoria das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar vinculada à Corregedoria-Geral da Justiça (CGJ). "Ele permite a esse jovem pensar sobre o assunto e também, de algum modo, levar essa discussão no retorno para casa".
Para Salma Valêncio, diretora de Políticas para as Mulheres da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (SJDH) do governo de José Ivo Sartori (PMDB), o tema da redação do Enem é "extremamente apropriado" para o momento em que vivemos. "Além de chamar a atenção para a violência, leva para o debate, chama, dá luz", afirma, acrescentando ainda que há um grave problema de subnotificação de casos de violência contra a mulher no país.
Salma também saudou o fato de a violência contra mulher ter sido o tema da redação porque, em seu trabalho na SJDH, tem focado na questão da prevenção aos casos de violência. "Eu acho positivo porque temos que trabalhar muito essa questão na educação para mudar a questão cultural", diz.
Segundo Lívia de Souza, coordenadora de projetos da ONG Themis – Gênero e Justiça, o tema da redação do Enem é importante porque questões de gênero nunca tinham sido pauta antes. "Me surpreendeu de maneira muito positiva", disse. "É muito importante e muito caro que se pense como a educação tem que ser mais fortalecida na questão de gênero".
Ela salientou que o tema da prova foi importante também por se dar em um momento que considera negativo. "A prova tem um significado maior porque foi em uma semana de derrota. Na quarta-feira, teve a aprovação do projeto do Eduardo Cunha que dificulta o aborto em caso de estupro e também teve o discurso pedófilo em relação à menina do MasterChef, sexualizada ao extremo", disse. "Alunos, mesmo tendo odiado o tema, foram obrigados a voltar para casa pensando nisso", comemorou.
Lívia lembrou que, quando prestou vestibular, o pensamento da época era de que tudo que deveria ser estudado no segundo grau deveria ser apenas o que "caía na prova". "É cruel esse tipo de ensino neutro", diz.
Direita x esquerda
Nas redes sociais, o tema causava polêmica desde o fim da tarde de sábado (24), quando a prova de ciências humanas trouxe uma questão elaborada a partir de um texto de Simone de Beauvoir, tratando da questão de gênero. Muitos internautas, e inclusive parlamentares, condenaram uma suposta "doutrinação de gênero" na prova. Por outro lado, surgiram muitos "memes" comemorando o fato de o Enem ser "feminista" ou simplesmente abordar o tema.
Para Lívia, é "assustador" falar que o tema da redação foi "de esquerda". "Que direita é essa que considera tratar violência contra mulher é pauta de esquerda", questiona.
Segundo ela, a questão da violência contra a mulher é uma questão de direitos humanos, que está muito além do feminismo. "A violência contra a mulher se dá porque a gente vive em uma sociedade violenta, mas também porque a sociedade objetifica a mulher", diz.
Salma concorda que a pauta da violência contra a mulher deveria estar acima de diferenças político-partidárias. "Uma coisa que eu defendo sempre é que a pauta da mulher não é uma pauta ou assunto ou um departamento de uma parte da sociedade, é de responsabilidade de toda a sociedade", diz . "A prova do Enem só nos ajuda a enfatizar que esta é uma responsabilidade de toda a sociedade e precisa ter o olhar de todos, principalmente da educação, que é onde nós vamos puder mudar esse problema, que é cultural", complementa.
Ela criticou o fato de a polarização nas redes sociais ter se tornado uma disputa entre esquerda e direita. "A questão da mulher está acima de disputa eleitoral. Não existe o feminismo é de esquerda. As mulheres são de todas as classes, de todas as ideologias. A questão da mulher é inerente a qualquer mulher e pertence a todos, não tem como ser rotulada".
Em sua avaliação, o tema foi alvo de polêmica porque existe uma parte da sociedade que não quer enxergar a importância do debate sobre a questão, mesmo que nenhum extrato social esteja imune à ela. "A violência acontece do lado da gente, dentro da escola, dentro da tua própria família. Não existe classe social exclusiva para a violência. Há a necessidade de estar muito atento", diz.
Um dos textos do enunciado da redação trazia a informação de que, entre 1980 e 2010, 92 mil mulheres foram assassinadas, sendo 43,7 mil somente nos últimos 10 anos. O número de mortes anuais no período passou de 1.353 para 4.465, aumento de 230%. Segundo o juiz Vieira, tramitam atualmente na justiça gaúcha mais de 121 mil processos sobre violência doméstica e, em 2015, ingressaram no judiciário 48.811 pedidos de medida protetiva de urgência por violência doméstica.
Diante desses números, o juiz afirma que não é possível considerar o enunciado da redação polêmico. "A estatística demonstra que efetivamente existe uma acentuada violência doméstica contra as mulheres. Alguém até pode ser contra esse tema ser levado a discissão, mas a afirmação em si me parece que é irrebatível".
Vieira, que tem uma filha adolescente que fez a prova no domingo, disse que ela também não viu motivo para polêmica. "Ela não percebeu que tinha uma questão ideológica por trás. Se a gente ver o histórico dos temas de redação, não me aparece algo absurdo. É um tema super atual", afirma o juiz, que diz conversar com frequência com a filha sobre este tema e outras questões de direitos humanos.
Tags: Enem, redação, violência contra a mulher
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