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Quarta, 21 de outubro de 2015
Com Francisco, está acabando o tempo dos "fiéis infantis". Artigo de Marco Marzano
Não são poucos os católicos concentrados nos movimentos eclesiais ou nos territórios onde o laicato amadureceu menos, católicos pré-modernos ou infantis, que não são capazes de usar a própria cabeça ou não têm a intenção disso, aqueles que ainda precisam venerar a autoridade constituída, aqueles que se sentem pequenos em relação a uma veste cardinalícia ou mesmo só à batina de um padre, aqueles que se confessam duas vezes por semana e contam ao padre sobretudo quantas vezes se masturbaram e não quantas outras vezes roubaram dinheiro da coisa pública.
A opinião é do sociólogo italiano Marco Marzano, professor da Universidade de Bérgamo, em artigo publicado no jornal Il Fatto Quotidiano, 18-10-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Este é o último capítulo da minha investigação sobre a Igreja Católica italiana nos tempos de Francisco. Conclui-se, assim, aquela que, para mim, foi uma viagem às vezes entusiasmante, na qual aprendi muitas coisas, conheci pessoas esplêndidas e iniciei um diálogo estreito com os leitores deste jornal, que, para começar, se refletirá o e-book que, ao lado de todos meus artigos, vai incluir algumas das muitas cartas que eu recebi de vocês e que, depois, eu espero que continue fecundo ao longo do tempo.
Este é o momento da avaliação, das imagens de síntese que podem ser obtidas a partir da observação das várias etapas da minha viagem ao interior da Igreja italiana. O mais vívido dos instantâneos, aquele que primeiro vem à minha mente, é a oposição bastante clara entre a Igreja da cúpula e a de base, entre a casta sacerdotal e o povo de Deus.
Este último me pareceu ser, de fato, nas tantas periferias existenciais onde eu o procurei, perfeitamente secularizado, isto é, formado por pessoas adultas capazes de pensar com a própria cabeça, muito à vontade no mundo e com os não crentes, comprometidas em uma miríade de projetos locais de solidariedade, não obcecados com o sexo, com a culpa e com o pecado, mas bastante interessadas em manifestar a sua fé, pregando, meditando sobre o Evangelho e, sobretudo, amando o próximo.
No melhor dos casos, estes representam, aos meus olhos, o rosto de Deus, isto é, são a demonstração viva dos efeitos positivos que a fé (também, e talvez sobretudo, a incerta, até mesmo a mais atormentada e sofrida) pode produzir em quem a possui.
Esses "católicos adultos" ignoram serenamente os documentos produzidos pela hierarquia, acompanham os vários Sínodos de modo distraído, já que não têm nem o tempo nem a vontade de estar atrás das doutas disputas doutrinais sobre a família e arredores, que, ao contrário, tanto envolvem a gerontocracia clerical.
E isso tanto porque muitas vezes elas já tem uma família própria, com tantas exigências que se somam às da paróquia, da Cáritas, do voluntariado etc., quanto porque pensam que essas disputas não lhes dizem muito respeito, porque consideram que o que vem dos palácios do poder clerical realmente não diz respeito às suas vidas.
Uma vida, a deles, enraizada perfeitamente neste tempo histórico e na qual assume-se como óbvio aquilo que é óbvio para todos nós: isto é, que usar um anticoncepcional não é pecado, mas é, ao contrário, um gesto de responsabilidade, que o matrimônio não é o único regime aceitável para uma relação amorosa, que os homossexuais são pessoas perfeitamente normais e não defeitos da criação, que um massacre da máfia ou um extermínio em massa são culpas um pouquinho mais graves do que um divórcio. E assim por diante.
As reformas que a Igreja custa tanto a iniciar, sobre as quais tantos cardeais se atormentam a golpes de teologia e de direito, eles já as realizaram. As suas existências agora não se assemelham mais em nada às dos seus antepassados, àquelas da época a que tantos hierarcas gostariam que todos voltássemos.
Poderíamos dizer que, em muitos aspectos, esses católicos já se tornaram protestantes, já pularam o fosso que os separa de um cristianismo à altura dos tempos e das sensibilidades contemporâneas. Quase todos eles amam o Papa Francisco, um líder que, finalmente, parece ter se colocado, embora com tantas contradições ainda não resolvidas, em sintonia com os seus sentimentos, com o seu desejo de dispor de uma leitura da mensagem evangélica menos retrógrada e reacionária, mais aberta e disposta a exaltar os temas do amor, da misericórdia, da justiça.
Na Igreja de base, obviamente não há só católicos desse tipo. Há também, e não são poucos, católicos concentrados nos movimentos eclesiais (Comunhão e Libertação, neocatecumenais etc.) ou nos territórios onde o laicato amadureceu menos, católicos pré-modernos ou infantis, aqueles que não são capazes de usar a própria cabeça ou não têm a intenção disso, aqueles que ainda precisam venerar a autoridade constituída, aqueles que se sentem pequenos em relação a uma veste cardinalícia ou mesmo só à batina de um padre, aqueles que se confessam duas vezes por semana e contam ao padre sobretudo quantas vezes se masturbaram e não quantas outras vezes roubaram dinheiro da coisa pública ou pior, aqueles que, como católicos obsequiosos do preceito, cultivam um ódio sectário por todos aqueles – isto é, pelo resto do mundo para além do seu pequeno grupo – que ignoram lindamente a doutrina moral da Igreja e as suas receitas de vida.
Para esse tipo de católicos, o que acontece no Sínodo e arredores é muito mais relevante. O risco que eles temem, de fato, é o de uma mudança, ainda que mínima, no sistema doutrinal construído, com reacionária meticulosidade e sabedoria, pelos dois antecessores de Francisco.
Se isso acontecesse, a Igreja começaria, a seus olhos, a se perder, a se confundir com a odiada modernidade, a encostar na quina da rendição definitiva aos demônios do individualismo libertário e da democracia.
No cruzamento de todos os caminhos, o dos católicos adultos e o dos infantis, o da Igreja de base e o da hierárquica, na encruzilhada central de toda a intrincada trama de percursos eclesiais, destaca-se, dilacerada e sofredora, tão paradoxal quanto nenhuma outra, a figura do padre.
Para a hierarquia, o funcionário chamado a disciplinar, com servil fidelidade à cúpula, os comportamentos do rebanho; para a base muitas vezes, um precioso companheiro em um percurso de emancipação humana e intelectual, o presbítero católico é cada vez mais, na nossa época, um lugar de contradições vivas e dolorosas, que às vezes se reverberam em sérios incômodos psíquicos, que frequentemente se transformam em doenças, embora só da alma.
O tema do celibato e da vida afetiva e sexual do clero é o banco de provas mais evidente dessas enormes contradições. Para os católicos adultos, trata-se de um assunto totalmente irrelevante: eles ficariam contentes se o vínculo fosse abolido; para eles, que o padre tenha ou não uma namorada ou um namorado é um assunto totalmente dele, é uma questão privada. O que importa é que ele seja preparado, competente, honesto e disponível, que ajude a comunidade a se tornar cada vez mais adulta, autônoma e consciente de si.
Ao contrário, para os católicos infantis, a assexualidade do padre, a sua pureza física se reveste de uma importância enorme, é a premissa para reputar como sagrada a figura sacerdotal, para colocá-la ao lado daquela figura imensa e salvífica de Cristo. E, consequentemente, para considerar santa a Igreja como estrutura de mediação entre Deus e o homem.
Negar esse assunto significa, para os crentes crianças, cometer um verdadeiro sacrilégio. Que eu, no meu pequeno, cometi aos seus olhos quando escrevi, em um dos últimos capítulos da investigação, que a castidade do clero é uma ficção. Fui inundado com cartas cheias de indignação e de raiva incontida e genuína. Como se eu tivesse blasfemado. Só porque declarei que os padres são homens como todos os outros. Nem mais nem menos. E que, quando eles se esforçam para não sê-lo, muitas vezes provocam em si mesmos e nos fiéis que os cercam danos psíquicos e morais certamente não irrelevantes.
Nesse rastro, com a escolta de muitas das reações de vocês às minhas palavras, quero trabalhar duro no futuro próximo. Sempre na convicção de prestar homenagem àquelas que continuam sendo as minhas divindades pessoais prediletas: a liberdade de pensamento e o amor pela verdade.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/548074-com-francisco-esta-acabando-o-tempo-dos-qfieis-infantisq-artigo-de-marco-marzano
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