A ignorância transatlântica
04 Outubro 2015.
Por Marcos Bagno (*)
Quando leio depoimentos de linguistas estrangeiros que se queixam da ignorância dos meios de comunicação de seus países sobre tudo quanto diz respeito à língua, quase me convenço de que o problema deve ser nosso, dos estudiosos da linguagem, que não conseguimos nos comunicar com esses comunicadores.
E em parte é mesmo. Mas logo em seguida me lembro que, tal como no Brasil, a grande mídia de muitos países é um feudo repartido entre pouquíssimas famílias, todas entranhadamente conservadoras e prontas a corromper quem quer que seja para se manterem no topo da cadeia alimentar.
Pois vejam vocês. Faz tempo recebi uma mensagem de uma jornalista portuguesa, com perguntas e um pedido para que eu as respondesse.
Tratavam do decreto assinado pela presidenta (sim, presidenta!) Dilma, tornando obrigatória a flexão no feminino das profissões declaradas nos diplomas.
O teor das questões era tão absurdamente ridículo que cheguei a duvidar da seriedade do pedido. Perdi a paciência: respondi curto e grosso. Transcrevo aqui a entrevista porque, cá para nós, duvido que ela seja publicada na íntegra lá do outro lado do Atlântico. Divirtam-se!
— Faz sentido mudar a Língua por decreto?
MB: O que não faz sentido é perguntar se houve alguma "mudança" na língua. A presidenta Dilma apenas decretou que as formas no feminino, QUE JÁ EXISTEM NA LÍNGUA, sejam empregadas nos diplomas. Isso porque, até recentemente, muitos diplomas eram emitidos dizendo que a Sra. Maria da Silva se graduou como "arquiteto" ou "engenheiro", por exemplo.
A feminização da linguagem é um processo de combate às desigualdades entre os sexos, em todos os níveis, inclusive na língua.
— Que sentido faz usar a expressão "estudanta" ou "assistenta" ou mesmo "presidenta"? Os substantivos acabados em "e" não são por definição neutros e, por isso, dão tanto para o feminino como para o masculino?
Outra pergunta sem sentido. A forma PRESIDENTA está registrada nos dicionários há muito tempo e só causa furor aos que são, no fundo, machistas e, no raso, reacionários conservadores.
A ideia de que a partir de agora vamos usar "estudanta" ou "assistenta" só passa pela cabeça de quem tenta pensar como uma anta ou nunca teve uma boa mestra de português.
— No dia-a-dia no Brasil já se usam de forma corrente essas palavras?
As formas femininas das profissões e cargos já são usadas há muito tempo: engenheira, química, arquiteta, chefa, embaixadora etc. O decreto presidencial visa apenas oficializá-las nos certificados e dipomas.
— Esse decreto foi bem aceite no Brasil ou causou polémica?
Causou polêmica porque os nossos meios de comunicação, essencialmente conservadores e de extrema direita, reagem a qualquer coisa que proceda de um governo voltado para a democratização plena da nossa vida pública.
— Faz sentido, estando o Brasil na Comunidade de Países de Língua Portuguesa, tomar esta decisão sem consultar o Instituto Internacional da Língua Portuguesa? Um país pode alterar a gramática de forma unilateral e por decreto?
Outra pergunta no mínimo estúpida. O Brasil não alterou gramática nenhuma. Repito: as formas sancionadas existem na língua há muito tempo. Foram apenas oficializadas para efeitos de emissão de diplomas. Não há nada de grave nisso.
Só mesmo quem não entende nada de linguagem e de política pode se assustar com isso. E que diabos é esse Instituto Internacional da Língua Portuguesa que não faz nada, não serve para nada e não tem o menor impacto sobre os destinos dos povos que falam português?
______________________
(*) Marcos Bagnoé linguista, escritor e professor da UnB
E-mail: bagno.marcos@gmail.com
http://www.jornaldoromario.com.br/artigos/501-a-ignorancia-transatlantica
Nenhum comentário:
Postar um comentário