Família como ela é…
Por Ângela Langaro Becker
Muito poucas vezes assisti um filme tão próximo do nosso cotidiano como este. Assim de forma simples e direta, como diz a diretora, de uma forma crua. "Que horas ela volta?" é dirigido por Anna Muylaert que caracteriza a direção de arte como em busca da vida, não da beleza.
Usando basicamente a luz natural, mantendo o cenário com suas imperfeições como a sujeira nas paredes ou os restos de lixo no chão, o ritmo do filme não perde os tempos internos de uma cena real. A forma crua de que fala a diretora parece ser sua intenção de fabricar um espelho, visando a classe média e as domésticas, ocupação de muitas mulheres brasileiras.
O filme "Que horas ela volta"? foi premiado no Festival de Sundance, Utah, EUA. Extremamente bem acolhido em Berlin, França e Itália com sucesso de bilheteria como cinema autoral popular. E agora aqui está em cartaz para nossa diversão e nossa reflexão.
Regina Casé é um dos focos de visibilidade da produção, no papel da empregada doméstica Val, uma pernambucana que sai de sua terra natal, Recife, em busca de trabalho, deixando uma filha pequena nas mãos de uma amiga ou parente que promete cuidá-la. Como é comum a muitas mulheres que migram pra trabalhar, não conseguem mais voltar pra casa porque o trabalho as prende numa grande capital. Depois de 10 anos passados, sua filha quer ir ao seu encontro, pois pretende fazer vestibular em São Paulo.
A chegada de Jéssica (Camila Márdila) vai desnortear o que antes parecia tão equilibrado entre a doméstica e seus empregadores, o casal Bárbara (Karine Teles) e Carlos ( Lourenço Mutarelli)
A sutileza da diretora foi criar um espelho sem cair em estereótipos ou caricaturas fáceis. Ela afirma em uma das entrevistas na imprensa que queria mostrar o jogo separatista que nós brasileiros praticamos desde o tempo colonial – sem nos darmos conta, como se fosse uma coisa natural. Então , identificados com a cena onde os patrões são gentis e amáveis com uma doméstica dedicada que cria o filho deste casal, com todo amor, como se fosse seu, vamos aos poucos percebendo o drama que há por trás deste contrato de trabalho aparentemente justo. A herança portuguesa e escravagista permanece em nós de uma forma que não a reconhecemos.
A diretora é bem sucedida em possibilitar as identificações da plateia com os personagens, pois não culpabiliza nem vilaniza nenhum dos lados da trama, mas não tem como não experimentar uma conscientização crescente do quanto a violência pode se apresentar como gentileza no trato com as escravas modernas. Como diz a própria personagem Val quando sua filha a questiona: "essas coisas a gente já nasce sabendo". Tem certos traços de nossa fundação que ficam inquestionados, basta encontrar quem os conheça desde o berço, como era o caso de Val que sabia qual era seu lugar e aceitava isso, mas sua filha foi criada diferente.
No mínimo o filme nos alerta do quão anacrônicos ainda somos nestes hábitos de classe média. Qualquer um que teve oportunidade de viver num país europeu sabe que professores de universidade, profissionais liberais, artistas, enfim, a classe média não possui mais empregados. As máquinas de lavar e secar roupas, as comidas congeladas e o aspirador de pó substituíram as domésticas e cozinheiras. São serviços extremamente caros e especializados e que não se integram "como se fossem da família" como acontecia em tempos do Brasil Colônia e que conservamos até hoje como uma gentileza que esconde a violência escravagista.
Apesar de tudo isto, o filme é delicado, intimista e sutil nas críticas que faz, pois simplesmente recorta do cotidiano situações que são situações-limite como o comportamento de Jessica dentro da casa dos patrões de sua mãe. Não tem como não achá-la abusada, rompendo as regras das diferenças de classe. Sua personagem é propositalmente ingênua, agindo como se não conhecesse aquele modo de viver, as diferenças de classe. Na sua ingenuidade provoca situações limite que já foi motivo de demissão de muitas empregadas que "não sabiam o seu lugar". Como define a personagem Val:" Não aceite, minha filha, pois eles só oferecem porque sabem que você vai recusar". A imagem da gentileza fica mantida, por um acordo tácito entre patrões e empregados.
É a figura de Jéssica, uma jovem esperta, inteligente e determinada, que produz aos poucos um rompimento desta situação aparentemente estável. Os personagens que compõem a família nuclear começam a revelar-se um a um por trás da formalidade gentil. O pai, homem de meia idade, revela sua solidão, apresentando-se como um artista, que vale dentro de casa pelo dinheiro que herdou de família. Não só se encanta com a companhia da jovem, como revela toda sua solidão e carência quando suplica que case com ele, em troca de viagens. Fabinho, único filho, criado e mimado por Val, mostra que dos pais não reconhece autoridade e está perdido com seu futuro.
Quando Val, transbordando de felicidade, quer compartilhar o orgulho de sua filha ter passado no vestibular, encontra a patroa Bárbara e seu filho Fabinho na dor do seu fracasso. Cena intensa e extremamente polêmica. A primeira coisa que se pensa: só em filme isso acontece. Como pode uma jovem, criada longe da mãe, estudando num colégio duvidoso, passar num vestibular tão difícil? E o jovem criado aparentemente com duas mães, num Colégio bom e caro, não passar? Depois se percebe que esta lógica não é tão direta como se imagina.
O vestibular não deixa de ser um dos rituais de passagem do mundo moderno para a vida adulta. Apesar de ser fabricado por uma rede de instituições que transformam a educação em empresas e capital, tornou-se de tal forma valorizado, que quando o adolescente não encontra êxito, desestabiliza-se e junto com ele toda a família que passou a vida investindo nesta passagem.
Muitas vezes, estar ignorante do tamanho desta exigência, como no caso de Jessica que se surpreende quando fica sabendo que a vaga que deseja é muito difícil de conseguir, abre maior possibilidade de sucesso, pois permite que se responda fora do lugar de uma expectativa pressionadora.
Mas o sucesso de Jéssica faz questionar também o chamado núcleo familiar, tema extremamente oportuno no momento em que se aprova um Projeto de Lei que define a família como núcleo formado a partir da união entre um homem e uma mulher. O argumento é de se reconhecer humildemente o que a natureza prescreve. Que não se trata de uma união afetiva, mas sim a união que faz a procriação e a formação de pessoas.
Certamente é a classe media que mais se adapta a esta imagem de uma união que, embora sem afeto se ocupa da procriação e da educação dos filhos, como prescreve a natureza. A falsidade desta imagem está na medida direta do resultado para Fabinho: sua derrota no vestibular, pois não há na construção do futuro uma implicação genuína dos pais. Entram com o dinheiro para a escola, para a babá. Não tem noção dos seus limites ou possibilidades. Ele confia no amor de Val, que o acha inteligente. Também na sua sexualidade parece estar com dificuldades, pois como conta pra Val, as meninas fogem dele.
Porém, os pais pouco sabem dele. A cena da maconha revela o modo formal e burocrático de resolver o problema. Também a mãe lhe demandando atenção, com ciúmes do seu carinho por Val, revela que seu lugar na vida do filho não foi do afeto.
Enfim, projetos como esse surgem de interesses econômicos e religiosos e desautorizam uniões que são não só afetivas, mas estruturantes na educação das crianças. Quantas vezes a avó faz a função do terceiro na relação entre mãe e criança, coisa não assumida por muitos homens, apesar de serem os pais de filhos resultantes da união com uma mulher.
O filme mostra através do diálogo de Jessica e sua mãe, que há na vida da jovem um pai presente e preocupado. Como diz Val "Se ele não fala contigo é porque é algo muito grave que tu fez." Val confia numa relação justa de pai pra filha. Ela teve um filho e isso o pai não aprovou. Este pai está presente. Mas será que Carlos está presente na vida de Fabinho? A cena da mesa em que cada um está com seu celular mostra uma família vazia de conversas, de implicações.
Comovente é a cena de Val dentro da piscina, comunicando à sua filha que pode aprender com ela a vontade de libertar-se. Transpor a barreira do território exclusivo aos patrões, agora ela também podia. A filha havia feito isso de forma definitiva passando no vestibular. Agora Val estava implicada em mudar o repetitivo da história de tantas mulheres que deixaram seus filhos pra poder trabalhar. Queria mudar a historia, iria formar uma família com sua filha, para criar seu neto e este ter a mãe perto dele.
Estas uniões que a vida humana compõe tem muito mais chance de serem bem sucedidas no cuidado e educação dos filhos do aquelas prescritas por uma suposta natureza.
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Ângela Lângaro Becker é psicanalista; membro da APPOA; mestre em Psicologia Social e Institucional e doutora em Psicanálise e Dança pela Université Paris XIII. angelalbecker@gmail.com.
http://www.sul21.com.br/jornal/familia-como-ela-e-sobre-que-horas-ela-volta/
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