Três vezes Cortázar
Em agosto Cortázar faria cem anos. Vamos soprar algumas velinhas aqui. Me aguardem.
Não te deixes, de Último round, volume II.
É óbvio que tratarão de comprar todo poeta ou narrador de ideologia socialista cuja literatura influa no panorama de seu tempo; não é menos óbvio que do escritor, e só dele, dependerá que isso não aconteça.
Em troca, será mais difícil e penoso para ele evitar que seus correligionários e leitores (nem sempre uns são os outros) o submetam a toda gama de extorsões sentimentais e políticas para forçá-lo amavelmente a se meter cada vez mais nas formas públicas e espetaculares do “compromisso”. Chegará um dia em que, mais do que livros, lhe reclamarão discursos, conferências, assinaturas, cartas abertas, polêmicas, idas a congressos, política.
E assim esse justo, delicado equilíbrio que permite seguir criando uma obra com ar nas asas, sem se transformar num monstro sagrado, o prócer que exibem nas feiras da história cotidiana, se torna o combate mais duro que o poeta ou narrador terá de livrar para que seu compromisso continue se cumprindo ali onde tem sua razão de ser, ali onde brota sua folhagem.
Amarga e necessária moral: Não se deixe comprar, garoto, mas tampouco vender.
Conservação das lembranças, de Histórias de cronópios e famas
Para conservar suas lembranças, os famas tratam de embalsamá-las da seguinte forma: depois de fixar a lembrança tintim por tintim, envolvem-na de cima abaixo num lençol preto e a colocam de pé contra a parede da sala, com uma etiqueta que diz: “Excursão a Quilmes”, ou: “Frank Sinatra”.
Em troca, os cronópios, esses seres bagunceiros e desapegados, deixam as lembranças soltas pela casa, entre gritos alegres, e andam no meio delas e quando passa uma correndo, acariciam-na com suavidade e lhe dizem: “Não vai se machucar”, e também: “Cuidado com os degraus”. É por isso que as casas dos famas são arrumadas e silenciosas, enquanto que nas dos cronópios há uma grande agitação e portas que batem. Os vizinhos sempre se queixam dos cronópios, e os famas mexem a cabeça compreensivamente e vão ver se as etiquetas estão todas em seu lugar.
Vestir uma sombra, de Último round, volume II
O mais difícil é cercá-la, conhecer seu limite ali onde se enlaça com a penumbra à borda de si mesma. Escolhê-la entre tantas outras, afastá-la da luz que toda sombra respira sigilosa, perigosamente. Começar então a vesti-la como que distraído, sem se mover demais, sem assustá-la ou dissolvê-la: operação inicial onde o nada se oculta em cada gesto. A roupa íntima, o sutiã transparente, as meias que desenham uma escalada sedosa até as coxas. Ela consentirá tudo em sua ignorância momentânea, como se pensasse que ainda brinca com outra sombra, mas bruscamente se inquietará quando a saia envolva sua cintura e sinta os dedos que abotoam a blusa entre os seios, roçando a garganta que se eleva até se perder numa taça escura. Repelirá o gesto de coroá-la com a peruca de flutuantes cabelos loiros (esse halo trêmulo rodeando um rosto inexistente!) e será preciso pressa para desenhar a boca com a brasa do cigarro, deslizar anéis e pulseiras para lhe dar essas mãos com que resistirá hesitantemente enquanto os lábios apenas nascidos murmuram o lamento imemorial de quem desperta para o mundo. Faltarão os olhos, que deverão brotar das lágrimas, a sombra se completando por si mesma para lutar melhor, para se negar. Inutilmente comovedora quando o mesmo impulso que a vestiu, a mesma sede de vê-la surgir perfeita do espaço confuso, a envolva em seu juncal de carícias, comece a despi-la, a descobrir pela primeira vez sua forma que procura em vão se abrigar atrás de mãos e súplicas, cedendo lentamente à queda entre um brilho de anéis que rasgam no ar seus pirilampos úmidos.
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Ernani Ssó é o escritor que veio do frio: nasceu em Bom Jesus, numa tarde de neve. Em 73, entrou pro jornalismo porque queria ser escritor. Saiu em 74 pelo mesmo motivo. Humor e imaginação são seus amuletos.
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