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pergunta:

"Até quando vamos ter que aguentar a apropriação da ideia de 'liberdade de imprensa', de 'liberdade de expressão', pelos proprietários da grande mídia mercantil – os Frias, os Marinhos, os Mesquitas, os Civitas -, que as definem como sua liberdade de dizer o que acham e de designar quem ocupa os espaços escritos, falados e vistos, para reproduzir o mesmo discurso, o pensamento único dos monopólios privados?"

Emir Sader

24.7.14

Um homem de boa-fé

Um homem de boa-fé

janeiro 2009 / Entrevistas

Ariano Suassuna

GRAZIELLE ALBUQUERQUE

Um homem de boa-fé. Para além da retórica, é isto que transcende no contato com Ariano Suassuna. Poderia se falar muitas coisas sobre o escritor, o teatrólogo, o artista. Porém, no pouco tempo em que pude conversar com Ariano, desnudou-se a capa de qualquer pompa. Ali, diante de mim, vi um ser humano preocupado com o próximo e com as possibilidades do seu tempo. Generoso, afasta qualquer tentativa de rapapés ou burocracias. Longe de polêmicas, Ariano conta causos e fala do cotidiano. Mansamente, ele nos desperta algo de melhor, como uma esperança sem vícios, própria da meninice. Foi assim que as perguntas viraram conversa e, pela literatura, foi se falar da vida.

(...)

• Seu trabalho está repleto do sentido dado às pessoas e aos atos, mesmo crítica social tem um fundo de esperança. O senhor acha que o público atual, urbano, ligado numa séria de atrativos eletrônicos, conhece ou se interessa por esse sertão do encantamento? O Brasil conhece esse sertão?
O Brasil conhece muito pouco o Brasil e o próprio sertão, em particular. E quando digo isso não estou me excluindo, não. Por exemplo, já estive na Amazônia, mas não posso dizer que conheço a Amazônia. O Brasil é muito grande e cabe a nós, escritores nordestinos e sertanejos, chamar atenção para nossa realidade. Não só para o sertão ruim, mas para o do encantamento. Não nego a sua face dura, com as vinganças, secas, fome. E isso você encontra na minha obra. Mas nela também é possível ver o sertão afirmativo, do amor pela vida. E meu grande amigo João Cabral de Melo Neto, que era mais da família de Graciliano Ramos do que da minha, quando publiquei A pedra do reino, escreveu um poema que me deixou contentíssimo porque dizia: "Foi bom que se visse que o sertão não fala só a língua do não".

• A astúcia é mesmo a coragem dos pobres? Gostaria que o senhor falasse um pouco dessa superação pelo humor.
Olhe, vou lhe dizer mais. Não é só o humor, não. São o humor e a festa. Você veja que no carnaval há o cavalo-marinho, os reisados, o maracatu rural, os caboclinhos. É disso que falo, da festa popular. Como é que um povo que passa por tamanhas dificuldades ainda tem coragem de rir e de se manifestar através da festa. Que exemplo este! Vejo países muito mais ricos e bem organizados, mas com um povo triste, de cara amarrada. Outra coisa que deve ser dita é que, de todas as etnias que compõem o povo brasileiro, talvez os negros sejam os mais injustiçados e, no entanto, são os principais responsáveis pela alegria brasileira que reflete até na maneira de jogar futebol. Uma maneira de jogar que parece uma dança. Há quem fale, em tom pejorativo, que o Brasil é o país do carnaval e do futebol. Para mim, quem diz isso não conhece o Brasil e nem o povo brasileiro.

• Se formos comparar com o resto do mundo, estes elementos da formação brasileira são bem atípicos. É um país miscigenado que nunca entrou em uma guerra civil ou religiosa. Como se explica isso?
É um milagre, não é? Você pode comparar com a América Espanhola que se fragmentou toda. Eu vou fazer uma imagem derivada da literatura para lhe dizer o que quero. O livro que mais admiro é o Dom Quixote, mas acho que normalmente se dá uma importância muito grande à figura do Dom Quixote. Ele merece, para mim é o maior personagem da literatura. Mas as pessoas esquecem de Sancho Pança. Veja que Dom Quixote representa a aristocracia, decadente, mas a aristocracia, enquanto Sancho representa o povo. Pois bem, você transportando isso para a história da América Latina, Simon Bolívar era o Quixote, mas talvez fosse exatamente por isso que ele não conseguiu unificar o continente. Agora veja que, do ponto de vista político, há um episódio bastante significativo em Dom Quixote, que é quando ele ganha o direito de governar uma ilha. Mas, ele não foi governá-la, deu a Sancho essa tarefa. E Sancho fez um governo excelente. Então, no mesmo paralelo em que comparo Bolívar a Sancho, uso esse episódio para comparar José Bonifácio a Quixote. Bonifácio fez a independência do Brasil por intermédio do príncipe herdeiro e foi por causa do Império que se manteve a unidade brasileira. Uma outra figura histórica injustiçada é Dom João XVI, que gostava mais do Brasil do que de Portugal. Pois bem, o apresentam como uma figura grotesca e ridícula. O que ninguém vê é a sua grande administração e a visão estratégica do Brasil que ele tinha. Ele elevou o Brasil à sede do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e isso teve um significado imenso. São os portugueses que têm horror a ele; e com razão. Inclusive, muitas coisas que José Bonifácio realizou já haviam sido pensadas por ele.

(...)

• Hoje, o senhor acredita que é possível a liberdade e a justiça coexistirem pelas mãos desse ser humano que é ético, mas nem tanto.
Um dos maiores pensadores do século 20 era um filósofo francês Jacques Maritain. Pessoalmente, acho Bergson melhor que Maritain. Mas, este último, que para mim era um aspirante a santo, dizia uma coisa sobre o Brasil que me alenta a esperança. Ele disse que o Brasil está destinado a uma missão que é a mais elevada que já foi confiada a um povo — a de realizar um regime em que pela primeira vez se fundam justiça e liberdade. Fiquei orgulhosíssimo quando li isso, mas sei que ainda não é verdade. É algo para o futuro. Um sonho que se deve alimentar porque o homem sem sonho não vai a lugar nenhum. Mas a coexistência entre esses dois valores não existe em nenhum lugar do mundo. Portanto, é um sonho para todos.

• Mas, sem querer parecer descrente, será que o ser humano, seja ele brasileiro, norte-americano ou turco, é capaz disso? Falo deste ser humano que vemos aí, todos os dias.
Com o ser humano atual, é. Por isso que dizia a você que não acho que o ser humano seja um ser completo, ele está a caminho e ele caminha para o absoluto, para a divindade. O Cristo dizia uma coisa muito interessante. Ele disse que nós temos que ser fermento. Ele sabia que o homem está a caminho. Mas perceba que o progresso moral da humanidade é muito lento. Então, se o Brasil, um dia, chegar pelo menos perto dessa junção a qual se referia o Jacques Maritain, ele será uma luz para todo o mundo.

• Esse caminhar é um esforço individual ou coletivo?
Eu procuro fazê-lo. Mas cada um de nós tem que começar por si. Agora, ele só é finalizado coletivamente.

• Este é sonho possível agora?
No momento, acho que isso não é possível. Mas não me desespero. É por isso que, por maiores decepções que você sofra, a política é uma coisa indispensável. Isso porque, ela entendida como deve ser, é a arte do bem comum. Uma decisão política bem tomada melhora muito as coisas. Agora, repito que essa é uma mudança lenta. Nós gostaríamos de identificar o tempo da história como o tempo da nossa biografia. Mas isso não é possível. Veja bem, antes do Cristo, a crueldade era uma coisa tão comum que não se tinha sequer acanhamento em demonstrá-la. Júlio César foi considerado um sujeito muito generoso porque, em relação aos generais do tempo dele que cortavam as duas mãos dos povos conquistados, ele só cortava uma. Pois bem, hoje a crueldade continua, porém ninguém mais tem coragem de expô-la com essa desfaçatez. Isso, em si, é um ganho. Embora, elas tenham ocorrido através do sangue de muitos inocentes, sobretudo, daquele que chamamos de Cristo.


http://rascunho.gazetadopovo.com.br/um-homem-de-boa-fe/

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Cancion con todos

Salgo a caminar
Por la cintura cosmica del sur
Piso en la region
Mas vegetal del viento y de la luz
Siento al caminar
Toda la piel de america en mi piel
Y anda en mi sangre un rio
Que libera en mi voz su caudal.

Sol de alto peru
Rostro bolivia estaño y soledad
Un verde brasil
Besa mi chile cobre y mineral
Subo desde el sur
Hacia la entraña america y total
Pura raiz de un grito
Destinado a crecer y a estallar.

Todas las voces todas
Todas las manos todas
Toda la sangre puede
Ser cancion en el viento
Canta conmigo canta
Hermano americano
Libera tu esperanza
Con un grito en la voz