"Todo ser humano possui uma tendência essencial para a ordem. Onde quer que surja o ser humano, aí aparece uma ordem das coisas, valores e certos comportamentos. A tendência para a ordem implica a convicção de que a vida possui sentido. Que no fundo da realidade, não vigora a mentira, mas a confiança, o consolo e o derradeiro aconchego", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
Eis o artigo.
Quem olha o panorama brasileiro sob a ótica da ética (toda ótica produz sua ética) não deixa de ficar desolado e profundamente entristecido. Um presidente não é apenas portador do poder supremo de um país. O cargo possui uma carga ética. Ele deve testemunhar, por sua vida e atos, os valores que quer que seu povo viva. Aqui temos o contrário: um presidente tido por corrupto, não só por acusação de políticos, nem sequer por delações, sempre discutíveis, mas por investigação séria da Polícia Federal e de outros órgãos como o Ministério Público. Mas a desmesurada vaidade do cargo e a total falta de respeito face ao seu próprio país, se mantem à base de corrupção feita à luz do dia, comprando votos de deputados e oferecendo outros benesses. E os deputados, gaiamente, se deixam corromper, porque muitos são corruptos, aproveitam a ocasião para conquistar funções e outros benefícios. A república apodreceu de vez. Temos que refundar o Brasil sobre outras bases pois aquelas que até agora mancamente o sustentaram já não conseguem dar-lhe digna sustentabilidade.
A despeito disso tudo, não deixamos a esperança morrer, embora nesse momento, no dizer de Rubem Alves, se trata de uma "esperança agonizante". Mas ela ressuscitará desta agonia e nos resgatará um sentido de viver. Se perdermos o sentido da vida, o próximo passo poderá ser o completo cinismo e, no termo, o suicídio. Quero retomar a questão do sentido da vida.
Não obstante a desesperança e a existência do absurdo face ao qual a própria razão se rende, acreditamos ainda na bondade fundamental da vida. O homem comum que somos a grande maioria, se levanta, perde precioso tempo de vida nos ônibus super lotados, vai ao trabalho, não raro penoso e mal remunerado, luta pela família, se preocupa com a educação de seus filhos, sonha com um Brasil melhor, é capaz de gestos generosos auxiliando um vizinho mais pobre que ele e, em casos extremos, arrisca a vida, para salvar uma inocente menina ameaçada de estupro. O que se esconde atrás destes gestos cotidianos e banais? Esconde-se a confiança de que, apesar de tudo, vale a pena viver porque a vida, na sua profundidade, é boa e foi feita para ser levada com coragem que produz autoestima e sentido de valor.
Há aqui uma sacralidade que não vem sob o signo religioso mas sob a perspectiva do ético, do viver corretamente e do fazer o que deve ser feito. O grande sociólogo austríaco-norte-americano Peter Berger, há pouco falecido, escreveu um brilhante livro, relativizando a tese de Max Weber sobre a secularização completa da vida moderna com o título:"Um rumor de anjos: a sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural (Vozes 1973). Aí descreve inúmeros sinais (chama de "rumor de anjos") que mostram o sagrado da vida e o sentido que ela sempre guarda, a despeito de todo caos e dos contrassensos históricos.
Trabalho apenas um exemplo que me vem à mente, banal e entendido por todas as mães que acalentam seus filhos. Um deles acorda sobressaltado dentro da noite. Teve um pesadelo, percebe a escuridão, sente-se só e é tomado pelo medo. Grita pela mãe. Esta se levanta, toma o filhinho no colo e no gesto primordial da magna mater cerca-o de carinho e de beijos, fala-lhe coisas doces e lhe sussurra:" Meu filhinho, não tenhas medo; sua mãe está aqui. Está tudo bem e está tudo em ordem, meu querido". O menino deixa de soluçar. Reconquista a confiança da noite e um pouco mais e mais um pouco, adormece, serenado e reconciliado com as coisas.
Esta cena tão comum, esconde algo radical que se manifesta na pergunta: será que a mãe não está enganando a criança? O mundo não está em ordem, nem tudo etá bem. E contudo, estamos certos: a mãe não está enganando seu filhinho. Seu gesto e palavras revelam que, não obstante a desordem que a razão prática aponta, impera uma ordem mais fundamental. O conhecido pensador Eric Voegelin (Order and History, 1956) mostrou magistralmente que todo ser humano possui uma tendência essencial para a ordem. Onde quer que surja o ser humano, aí aparece uma ordem das coisas, valores e certos comportamentos. A tendência para a ordem implica a convicção de que a vida possui sentido. Que no fundo da realidade, não vigora a mentira, mas a confiança, o consolo e o derradeiro aconchego.
Assim cremos que o tempo da grande desolação por causa corrupção que destrói a ordem, voltaremos a celebrar e desfrutar o sentido bom da existência.
http://www.ihu.unisinos.br/573316-o-sentido-da-vida-nao-se-perdeu
"Tudo vale a pena se a alma não é pequena"
"Uma alma pequena pode tornar-se grande e vice-versa. A diferença está em conceder ou não lugar a Deus e aos outros, especialmente os pobres, pequenos, excluídos, últimos – diria o Papa Francisco" escreve Alfredo J. Gonçalves, padre carlista, assessor das Pastorais Sociais.
Eis o artigo.
"Valeu a pena? Tudo vale a pena, se a alma não é pequena", escreve o poeta português Fernando Pessoa. Que significa uma "alma pequena"? Uma alma onde não habita Deus, que desconhece a dimensão do Transcendente ou qualquer princípio como o Ser Supremo. Onde o Espírito Santo encontra a porta cerrada e nada pode fazer. Vale dizer, uma alma fechada, isolada, auto-suficiente, centrada em si mesma, debruçada narcisisticamente sobre o espelho, a contemplar o próprio rosto ou umbigo. Uma alma cercada de coisas que engrandecem o ego – egocêntrica! Acumula bens que se podem ver, tocar, calcular, medir, comprar, vender, possuir. Coisas materiais, mas que podem ser também pessoas coisificadas.
Um alma onde não habita Deus, tampouco pode ser habitada por outras pessoas. Onde não entra o Pai, não entram os irmãos. E se estes aí logram penetrar, é para serem usados como meros instrumentos. Explorados como mão-de-obra ou desfrutados no seu saber técnico ou intelectual. Ferramentas utilizáveis e logo descartáveis. É relação de senhor-escravo, patrão-trabalhador, tirano-súdito, rei-vassalo. Relação que atravessa a história desde a antiguidade até a modernidade, passando pela era medieval. Na era pós-moderna, ela se torna mais sutil e disfarçada, mas não menos assimétrica e injusta. Tanto que a desigualdade sócio-econômica tem aumentado gradualmente nas últimas décadas do século XX e início deste. Em plena revolução informática e sob o domínio da Internet, tal relação adquire novas denominações, enganosas e sofisticadas, tais como flexibilização das leis trabalhistas, privatização dos serviços públicos, terceirização, uberização. Mas o objetivo não muda: como obter mais ganhos explorando até o osso, simultaneamente, os recursos da natureza, o trabalho humano e o patrimônio cultural dos povos?
O oposto de "alma pequena", porém, não é alma grande. É a alma que se abre: elástica, flexível, sempre pronta a "alargar o espaço da sua tenda", conforme a expressão do profeta Isaías (Is 54, 2). Alma sem medida, isto é, capaz de amar desmedidamente. Entra em cena a dimensão oceânica, infinita e absoluta do amor e da misericórdia. Trata-se, evidentemente, de um atributo divino, mas encontra ressonâncias recorrentes nas relações humanas, precisamente quando "a alma não é pequena". Quando a alma é capaz de romper com as fronteiras do próprio "eu", da própria família, dos próprios amigos e conhecidos, da própria terra ou pátria – para lançar-se a uma missão solidária mais vasta e plural. Predispõe-se a submeter-se a todas as implicações e consequências de uma entrega total. Submeter-se não por obrigação, lei ou regra, mas porque habitando em Deus e sendo por Ele habitada, a alma vê aí sua realização plena, sua dedicação sem limites. Dilatada, livre, leve e radiante, sente-se voar nas asas invisíveis do segredo da existência humana. Esgota a tal ponto as potencialidades humanas da caritas, que toca o mistério divino.
Disso resulta que "alma pequena" e "alma grande" – se queremos usar essa contraposição – são irmãs gêmeas, antes, pertencem à mesma pessoa. Tudo depende da elasticidade e grandeza do amor e da doação. Uma alma pequena pode tornar-se grande e vice-versa. A diferença está em conceder ou não lugar a Deus e aos outros, especialmente os pobres, pequenos, excluídos, últimos – diria o Papa Francisco.
Verifica-se, assim, uma equação que aparentemente contradiz a própria matemática. Quanto mais a alma abre espaço para a entrada de Deus e dos irmãos, mais espaço terá para oferecer ao que aos recém-chegados que a procuram. Quanto mais dedica tempo a proferir uma palavra de paz e de conforto, mais as palavras lhe brotarão dos entranhas mais secretas de si mesma. Quanto mais se abre e se dispõe à escuta e ao diálogo, mais estará disposta a ouvir novas histórias, vendo nestas novas descobertas. Dar ou dar-se – doar-se ou entregar-se – a torna sempre mais rica. Não se trata de oferecer algo ou dar coisas, mas de oferecer a si mesma como pessoa. Colocar o próprio tempo e os dons recebidos a serviço dos que têm a vida mais ameaçada. "De graça recebestes, de graça deveis dar" (Mt 10, 8b). Os exemplos são notáveis: São Francisco de Assis, Santa Teresa de Calcutá, Beato Charles de Foucauld, São Vicente de Paola, a lista não tem fim! Isso sem falar dos santos e santas sem lugar no calendário litúrgico, mas que, silenciosa e anonimamente, deram sua vida para que o mundo tenha mais vida.
http://www.ihu.unisinos.br/573322-tudo-vale-a-pena-se-a-alma-nao-e-pequena
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