"Ideologia de gênero, violência contra a mulher"
10 Janeiro 2017
A primeira coisa que, na minha opinião, deveria ser levada em consideração é que falar de "ideologia de gênero" é falar de "violência". De uma das formas mais brutais de violência, que mais da metade da humanidade tem sofrido desde tempos muito antigos. Por quê? Em que sentido? Explico.
Como todos sabemos, é raro o dia em que nós não ouvimos notícias de mulheres que foram vítimas da violência que os homens exercem sobre elas através de maus-tratos, torturas, assassinatos... E, de quebra, sabemos - digam o que disserem as declarações universais de Direitos Humanos - que é fato que as mulheres não gozam dos mesmos direitos que os homens. Por exemplo, as mulheres ganham menos do que os homens. E, portanto, elas acabam ficando submetidas e dependentes do que os homens decidirem em um número tão grande de questões e situações que seria impossível listar aqui.
Para não mencionar a vergonhosa legislação da Igreja: procurei no Código de Direito Canônico e, no índice de conteúdos, a palavra "mulher" nem aparece. Evidentemente, tudo isso é "violência". E é uma violência brutal. Para não falarmos de outros países, de outras culturas, de outras religiões, onde a violência contra as mulheres é ensinada e inclusive assassinato e tortura são legalizados.
Assim não podemos continuar. Por esse motivo parece acertado recordar que, frequentemente, surgem ideologias cujo motor é o ódio, um ódio do qual não costumam ser conscientes aqueles que o vivem e o difundem. Ao longo do século passado, surgiu, em primeiro lugar, a ideologia baseada no "ódio de classes" sociais, o que culminou no marxismo. Logo veio a ideologia que se sustentava no "ódio entre as raças", o que provocou o nascimento do nazismo. E agora temos uma outra manifestação de ódio: o "ódio entre os sexos", que deu origem a outra ideologia: a ideologia de gênero. Não é nenhum segredo a violência e o sofrimento que estas três ideologias causaram e, em grande medida, continuam causando.
O pressuposto básico que a ideologia de gênero defende é suprimir da sociedade tudo o que possa significar e causar opressão à mulher, o que deveria ser traduzido em uma sociedade inteiramente igualitária, especialmente no que diz respeito às desigualdades entre homens e mulheres.
Pois bem, para esclarecer esta questão tão complexa, a primeira coisa a ser considerada é que falar de "diferença" e falar de "igualdade" não é a mesma coisa. A diferença é um "fato". Enquanto a igualdade é um "direito" (Luigi Ferrajoli), o homem e a mulher são "diferentes" biologicamente, somaticamente, etc., mas "iguais" em dignidade e direitos. As "desigualdades" entre homens e mulheres não são apenas produto do direito, mas também o resultado inevitável das tradições culturais cujas origens perdemos nos confins da pré-história. E não esqueçamos que quando um fato é produto da cultura, ele é incorporado por cada ser humano "como constitutivo de sua identidade".
Por isso, um fato cultural não é alterado mediante leis, ameaças ou punições, mas somente através da educação. Uma educação bem pensada e paciente, que seja capaz de modificar certos padrões culturais condicionantes da nossa identidade.
Isto dito, tenho minhas razões para pensar que é uma generalização apressada (além de um assunto extremamente discutível, por outras razões) dizer que o enorme problema da ideologia de gênero - entre outras coisas - é resolvido mediante a promoção de métodos contraceptivos ou de campanhas a favor do aborto. É necessário avaliar muito bem o que se diz sobre estes assuntos. Visto que, entre outras coisas, o que se consegue com tais afirmações genéricas é deixar bispos e cardeais nervosos, que, frente a autoridades que legislarão sobre estas questões, têm mais poder do que provavelmente imaginamos.
É necessário acrescentar que "as origens do puritanismo" são determinantes nesta questão. Mas essas origens são tão antigas e estão tão enraizadas na cultura ocidental que, como já demonstrou o professor E.R. Dodds, de Oxford, este puritanismo já havia sido assimilado por Xenofonte ou Píndaro, que assumiram essas convicções de conduta dos xamãs que ainda existem na Sibéria. Além disso, no século V (a. C), foram convicções popularizadas por Pitágoras e especialmente por Empédocles que, em sua obsessão pela "pureza", chegou a estigmatizar o matrimônio. Um estigma que as religiões seguem considerando necessário para a ascensão ao "sagrado". O intocável celibato dos padres é uma boa prova disto.
Por conta de minha condição de teólogo, quero finalizar indicando duas coisas:
1) Jesus nunca se interessou pelas questões relacionadas à sexualidade. É um assunto do qual os Evangelhos não falam. Quando Jesus se referiu a esta questão, ele o fez porque falava de mulheres casadas. E na cultura judaica da época, a mulher casada era propriedade do marido, o que impedia a igualdade entre homens e mulheres (Mt 19, 1-9 par; cf. Dt 24, 1); ou era uma situação em que desejar uma mulher casada, era "desejar o bem alheio", o que o décimo mandamento proíbe (Ex 20, 17: Mt 5, 31-32).
2) O único grupo humano com o qual Jesus nunca teve o menor enfrentamento foi precisamente as mulheres, por mais que fossem infiéis, prostitutas, adúlteras... Jesus sempre as defendeu. E elas sempre estiveram ao seu lado. Inclusive quando ele estava agonizando na cruz.
E concluo dizendo que "os homens da Igreja" (padres, bispos, cardeais) fariam um bem imenso a esta mesma Igreja se deixassem de falar tanto de assuntos dos quais entendem pouco, como é o caso das temáticas relacionadas ao sexo, e se preocupassem mais com a justiça, o sofrimento humano e a igualdade de todos no que diz respeito à dignidade e aos direitos. Nunca devemos esquecer o quanto estamos perdidos como seguidores de Jesus e que "a pureza, ao invés da justiça, tornou-se o principal meio para a salvação" (E.R. Dodds). Ainda que pareça mentira, esta tem sido, e continua a ser, a ruína da Igreja e da cultura do ocidente.
10 Janeiro 2017
A recente declaração do Cardeal Cañizares contra a "ideologia de gênero" reacendeu e intensificou o forte confronto ideológico e midiático que, desde o final do século passado, vem se mantendo, e até mesmo se acentuando, entre os especialistas no assunto, as pessoas que não têm uma grande compreensão e os mais ignorantes no assunto. Onde está o problema? E, acima de tudo, por que este assunto desperta tanto interesse no povo? E, finalmente, o que pensar sobre esta questão?
O comentário é de José María Castillo, teólogo espanhol, publicado por Religión Digital, 07-01-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
O comentário é de José María Castillo, teólogo espanhol, publicado por Religión Digital, 07-01-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
A primeira coisa que, na minha opinião, deveria ser levada em consideração é que falar de "ideologia de gênero" é falar de "violência". De uma das formas mais brutais de violência, que mais da metade da humanidade tem sofrido desde tempos muito antigos. Por quê? Em que sentido? Explico.
Como todos sabemos, é raro o dia em que nós não ouvimos notícias de mulheres que foram vítimas da violência que os homens exercem sobre elas através de maus-tratos, torturas, assassinatos... E, de quebra, sabemos - digam o que disserem as declarações universais de Direitos Humanos - que é fato que as mulheres não gozam dos mesmos direitos que os homens. Por exemplo, as mulheres ganham menos do que os homens. E, portanto, elas acabam ficando submetidas e dependentes do que os homens decidirem em um número tão grande de questões e situações que seria impossível listar aqui.
Para não mencionar a vergonhosa legislação da Igreja: procurei no Código de Direito Canônico e, no índice de conteúdos, a palavra "mulher" nem aparece. Evidentemente, tudo isso é "violência". E é uma violência brutal. Para não falarmos de outros países, de outras culturas, de outras religiões, onde a violência contra as mulheres é ensinada e inclusive assassinato e tortura são legalizados.
Assim não podemos continuar. Por esse motivo parece acertado recordar que, frequentemente, surgem ideologias cujo motor é o ódio, um ódio do qual não costumam ser conscientes aqueles que o vivem e o difundem. Ao longo do século passado, surgiu, em primeiro lugar, a ideologia baseada no "ódio de classes" sociais, o que culminou no marxismo. Logo veio a ideologia que se sustentava no "ódio entre as raças", o que provocou o nascimento do nazismo. E agora temos uma outra manifestação de ódio: o "ódio entre os sexos", que deu origem a outra ideologia: a ideologia de gênero. Não é nenhum segredo a violência e o sofrimento que estas três ideologias causaram e, em grande medida, continuam causando.
O pressuposto básico que a ideologia de gênero defende é suprimir da sociedade tudo o que possa significar e causar opressão à mulher, o que deveria ser traduzido em uma sociedade inteiramente igualitária, especialmente no que diz respeito às desigualdades entre homens e mulheres.
Pois bem, para esclarecer esta questão tão complexa, a primeira coisa a ser considerada é que falar de "diferença" e falar de "igualdade" não é a mesma coisa. A diferença é um "fato". Enquanto a igualdade é um "direito" (Luigi Ferrajoli), o homem e a mulher são "diferentes" biologicamente, somaticamente, etc., mas "iguais" em dignidade e direitos. As "desigualdades" entre homens e mulheres não são apenas produto do direito, mas também o resultado inevitável das tradições culturais cujas origens perdemos nos confins da pré-história. E não esqueçamos que quando um fato é produto da cultura, ele é incorporado por cada ser humano "como constitutivo de sua identidade".
Por isso, um fato cultural não é alterado mediante leis, ameaças ou punições, mas somente através da educação. Uma educação bem pensada e paciente, que seja capaz de modificar certos padrões culturais condicionantes da nossa identidade.
Isto dito, tenho minhas razões para pensar que é uma generalização apressada (além de um assunto extremamente discutível, por outras razões) dizer que o enorme problema da ideologia de gênero - entre outras coisas - é resolvido mediante a promoção de métodos contraceptivos ou de campanhas a favor do aborto. É necessário avaliar muito bem o que se diz sobre estes assuntos. Visto que, entre outras coisas, o que se consegue com tais afirmações genéricas é deixar bispos e cardeais nervosos, que, frente a autoridades que legislarão sobre estas questões, têm mais poder do que provavelmente imaginamos.
É necessário acrescentar que "as origens do puritanismo" são determinantes nesta questão. Mas essas origens são tão antigas e estão tão enraizadas na cultura ocidental que, como já demonstrou o professor E.R. Dodds, de Oxford, este puritanismo já havia sido assimilado por Xenofonte ou Píndaro, que assumiram essas convicções de conduta dos xamãs que ainda existem na Sibéria. Além disso, no século V (a. C), foram convicções popularizadas por Pitágoras e especialmente por Empédocles que, em sua obsessão pela "pureza", chegou a estigmatizar o matrimônio. Um estigma que as religiões seguem considerando necessário para a ascensão ao "sagrado". O intocável celibato dos padres é uma boa prova disto.
Por conta de minha condição de teólogo, quero finalizar indicando duas coisas:
1) Jesus nunca se interessou pelas questões relacionadas à sexualidade. É um assunto do qual os Evangelhos não falam. Quando Jesus se referiu a esta questão, ele o fez porque falava de mulheres casadas. E na cultura judaica da época, a mulher casada era propriedade do marido, o que impedia a igualdade entre homens e mulheres (Mt 19, 1-9 par; cf. Dt 24, 1); ou era uma situação em que desejar uma mulher casada, era "desejar o bem alheio", o que o décimo mandamento proíbe (Ex 20, 17: Mt 5, 31-32).
2) O único grupo humano com o qual Jesus nunca teve o menor enfrentamento foi precisamente as mulheres, por mais que fossem infiéis, prostitutas, adúlteras... Jesus sempre as defendeu. E elas sempre estiveram ao seu lado. Inclusive quando ele estava agonizando na cruz.
E concluo dizendo que "os homens da Igreja" (padres, bispos, cardeais) fariam um bem imenso a esta mesma Igreja se deixassem de falar tanto de assuntos dos quais entendem pouco, como é o caso das temáticas relacionadas ao sexo, e se preocupassem mais com a justiça, o sofrimento humano e a igualdade de todos no que diz respeito à dignidade e aos direitos. Nunca devemos esquecer o quanto estamos perdidos como seguidores de Jesus e que "a pureza, ao invés da justiça, tornou-se o principal meio para a salvação" (E.R. Dodds). Ainda que pareça mentira, esta tem sido, e continua a ser, a ruína da Igreja e da cultura do ocidente.
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