Jorge Luiz Souto Maior O relato já realizado em texto anterior, embora bastante resumido, é suficiente para demonstrar que quem, efetivamente, convive com insegurança jurídica nas relações de trabalho no Brasil são os trabalhadores, até porque os empregadores detêm o que, em direito processual, se denomina auto-tutela dos próprios interesses. Na relação jurídica trabalhista quem estipula as obrigações e determina o modo de execução dos serviços é o empregador. Aliás, nem se precisaria de muitos mais argumentos para explicar a quem, de fato, atinge a insegurança jurídica, bastando verificar que em quase 100% das demandas levadas à Justiça do Trabalho o autor é um trabalhador. E não são demandas despropositadas, abusivas, inescrupulosas e de má-fé, como às vezes se tenta convencer à opinião pública, tanto que, seguramente, a proporção de reclamações julgadas, total ou parcialmente, procedentes, ultrapassa os 90% do total. Nem se diga que isso apenas prova que a Justiça do Trabalho é tendenciosa, atuando para favorecer, de forma indevida, aos trabalhadores, pois, como já dito em outro texto, mais de 40% das ações versam sobre verbas rescisórias, que são devidas de forma incontroversa na maioria dos casos; e o restante, na maior parte, diz respeito a empresas cujo descumprimento da lei é recorrente, valendo destacar que, em âmbito nacional, a União é a maior litigante e isso se dá, sobretudo, por conta do fenômeno da terceirização[i]. Há segmentos empresariais que, fazendo as contas, adotam o descumprimento da legislação trabalhista como uma estratégia de gestão, contando com os acordos e com a ausência de punição judicial para a prática reiterada do ilícito. É bem verdade que muitas das reclamações não são fruto de descumprimento deliberado da legislação, podendo-se afirmar que há empresas que, de fato, consideram que aplicam de forma devida a legislação e depois se veem diante de uma condenação judicial com a qual não esperavam, mas nem sempre o que pensam ser o correto é o que prevê o conjunto normativo. Além disso, o juiz não cria o conflito; não propõe as reclamações; apenas julga e ao fazê-lo aplica a lei ao caso concreto, sendo que há na Justiça do Trabalho ao menos três instâncias para se conferir a regularidade jurídica das decisões: Varas do Trabalho, Tribunais Regionais e Tribunal Superior do Trabalho; e muitos casos ainda chegam ao Supremo Tribunal Federal. Então, é completamente impróprio acusar a Justiça do Trabalho de conferir direitos indevidos aos trabalhadores, sendo que o que pode ocorrer com maior incidência é exatamente o contrário, ou seja, a supressão institucionalizada dos direitos dos trabalhadores, que pode ser estatisticamente comprovada, em razão do número de conciliações. Na fase de conhecimento, 40% das reclamações são resolvidas por acordos[ii] e, como se diz, de forma corrente na prática judiciária, "se for para pagar tudo não é acordo". Além disso, a quase totalidade desses acordos é firmada com cláusula de quitação do extinto contrato de trabalho. Muitos acordos, inclusive, são feitos sem o reconhecimento do vínculo empregatício, e boa parte com discriminação de verbas que desconsidera as obrigações das partes perante o fisco e a Previdência Social, beneficiando, mais uma vez, o infrator da legislação. O que se dá, concretamente, nos casos em que o descumprimento das leis não é deliberado, assumido mesmo como uma estratégia de gestão, é a adoção de uma prática jurídica de risco, advinda ou do recurso às iniciativas legislativas de cunho flexibilizante ou da construção de um negócio jurídico "mágico". De fato, se olharmos para a CLT, como foi editada em 1943, pouca, ou nenhuma, margem para insegurança jurídica aos empregadores se vislumbra. Afinal, o que a legislação confere aos trabalhadores não é nada além que: limitação da jornada de trabalho, salário (com regras de proteção ao salário), férias, períodos de descanso, idade mínima para o trabalho, preservação da saúde do trabalhador... No entanto, como demonstrado em texto anterior, a legislação trabalhista foi ficando mais complexa e isso não se deu pelo aumento de direitos aos trabalhadores e sim como resultado das reivindicações patronais criadas para que se tentasse fugir das obrigações trabalhistas. Essa legislação flexibilizadora, no entanto, costuma ser confusa e, além disso, quase sempre os empregadores procuram adotá-la de modo ainda mais extensivo, no sentido da redução de custo, do que a literalidade estrita da lei permite. O aumento da insegurança jurídica provocado por esses fatores pode ser facilmente verificado na experiência histórica: - a CLT previu a excepcionalidade dos contratos a prazo, cujas normas, portanto, devem ser interpretadas restritivamente; e quantos não foram os empregadores que tentaram firmar contratos a prazo em hipóteses não expressamente autorizadas? - a lei fixou que o representante comercial não era empregado; e quantos não foram os empregadores que passaram a considerar seus vendedores como representantes comerciais? - a lei conferiu a possibilidade do trabalho temporário em duas hipóteses; e quantos não foram os empregadores que tentaram extrapolar essas situações? - a CLT disse que os empregados em trabalho externo, em condições incompatíveis com o controle da jornada, não têm direito ao recebimento de horas extras; e quantos não foram os empregadores que consideraram que bastaria o empregado trabalhador trabalhasse fora do seu estabelecimento para que não tivesse a obrigação de controlar e limitar a jornada de trabalho do empregado? - a lei dizia - antes de 1988 - que os vigias tinham jornada de 12 horas; e quantos não foram os Bancos que negaram aos seus vigias, em respeito ao critério legal da categorização dos trabalhadores pela atividade preponderante, a condição de bancários e, consequentemente, o direito à jornada reduzida de seis horas prevista no art. 224 da CLT (sendo esta, aliás, a origem da Lei n. 7.102/83)? - a lei disse que estagiários não eram empregados; e quantas não foram as empresas que passaram a contratar estudantes para realizar serviços como um empregado qualquer, sob a condição apenas formal do contrato de estágio? - a Súmula 331 do TST passou a autorizar a terceirização na atividade-meio; e quantas não foram as empresas que passaram a considerar que tudo em seu empreendimento era atividade-meio? (Lembro-me, a propósito, de um processo no qual uma grande empresa de refrigerantes alegava que empregados, atuando na linha de produção, realizando o serviço de operar a máquina que colocava as tampinhas nas garrafas, podiam ser terceirizados, porque, afinal, não encostavam a mão no líquido, partindo do pressuposto de que apenas o líquido seria a atividade-fim da empresa; ao que fui obrigado a indagar se, concretamente, algum trabalhador encostava a mão no líquido, pois os consumidores tinham o direito de saber disso) - a lei disse que não haveria formação de emprego nas cooperativas de trabalho; e quantas não foram as empresas que chegaram a dispensar todos os seus empregados, recontratando-os por intermédio de cooperativas, que eram cooperativas apenas na aparência, pois a essência do cooperativismo é a eliminação do intermediário entre o trabalho e o aproveitamento do seu resultado no mercado? - a lei possibilitou a formação de banco de horas, primeiro considerando o limite de 120 dias e, depois, no prazo de um ano; e quantas não foram as empresas que se valeram (e o fazem até hoje) desse mecanismo para simplesmente frustrar o efetivo controle das horas trabalhadas pelos empregados? Muitas dessas leis, ademais, como dito, são de discutível validade jurídica, vez que afrontam a pedra fundamental do Direito do Trabalho, que é a da melhoria da condição social dos trabalhadores (art. 7º, da CF), e também rejeitam os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, da proteção da dignidade humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, III e IV), sendo certo que esta mesma Constituição conferiu uma função social à propriedade (art. 5º, XXIII) e estabeleceu, expressamente, que "a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" (art. 170). Dentro desse contexto, os retrocessos sociais e humanos, ainda que fixados por lei, estão sempre sob o manto da avaliação de sua constitucionalidade, trazendo à baila, inclusive, a incidência dos preceitos internacionais de Direitos Humanos. É sempre muito arriscado, pois, querer valer-se de leis flexibilizantes para atingir o objetivo de diminuir o custo do trabalho. É bem certo que uma corrente doutrinária tentou vender a ideia de que a Constituição Federal não teria toda essa força jurídica, buscando em suas normas fundamentos para justificar a flexibilização, mas este foi um esforço jurídico impróprio, que acabou sendo, devidamente, rebelado. E há, ainda, situações bem mais afrontosas em que se tenta, de forma aberta, criar uma mágicas jurídicas para burlar a lei trabalhista, mas que são facilmente rechaçadas por aplicação do art. 9º da CLT, que, a exemplo do art. 166, VI, do Código Civil, considera "nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos" da legislação do trabalho. Assim, as supostas saídas encontradas por muitas empresas, como a "CLTflex", a contração de trabalhadores como PJs, a fixação de jornadas de trabalho de 12 horas, em regimes de 4x2, 5x1, ainda que fixados em acordos ou convenções coletivas, estão fadadas ao insucesso jurídico. Que dirá, então, dos procedimentos assumidamente ilegais de deixar de registrar o emprego; de pagar salário "por fora"; e de não anotar a efetiva jornada trabalhada em cartões de ponto, que são recorrentes nos processos trabalhistas? O fato é que as sucessivas reivindicações para se efetivar uma flexibilização na legislação trabalhista e as investidas sobre essa mesma legislação, buscando extrair dela permissivos de fuga ainda maiores, que se acredita ser possível a apenas à determinada empresas, que se considera mais criativa e esperta que todas as demais, o que lhe daria, por consequência, uma vantagem econômica sobre a concorrência, o que se faz acompanhar da sensação de impunidade, fruto da noção de que direito trabalhista não precisa mesmo ser respeitado, acabaram gerando situações de insegurança jurídica, mas isso, repito, como resultado da implementação de uma intenção juridicamente inconcebível, a de se alcançar segurança jurídica mesmo realizando negócios jurídicos diretamente ofensivos ao projeto constitucional de elevação da condição social dos trabalhadores e da consideração de dignidade humana como princípio fundamental da República. É interessante também perceber que muitas das tensões jurídicas atualmente estabelecidas decorrem de um momento histórico em que se quis acreditar que as unidades produtivas tinham ganhado a guerra, digamos assim, contra o Direito do Trabalho e a Justiça do Trabalho, o que se deu, mais precisamente, ao final da década de 90, quando também se importaram as novas técnicas de gestão baseadas em aumento da produtividade por meio da imposição de metas. Essa situação de insegurança jurídica dos trabalhadores, proporcionada pelas normas de flexibilização e pela ameaça de desemprego, acompanhadas da impossibilidade de reação institucional dos trabalhadores, dada a fragilização do sindicalismo e da força repressiva estatal, o qual atribuiu para si o papel de levar adiante o projeto neoliberal, conduziu os trabalhadores a um autêntico estágio de submissão e os empregadores à plenitude da soberba. Isso permitiu o advento de uma concepção empresarial no sentido de que deixar de aplicar direitos já não era o bastante, vez que passava a ser possível desenvolver uma forma de tratamento que assumia o caráter descartável do trabalhador. Quando a concorrência entre as empresas perde o padrão jurídico-moral e estas se veem impulsionadas pela lógica da maior produtividade a qualquer custo, municiadas pelas tais estratégias de gestão, surge a prática da imposição de metas inatingíveis aos trabalhadores e, por consequência, novas patologias no mundo do trabalho (atingindo-se até mesmo o ponto da loucura). Foi dentro desse contexto, lá no fundo do poço, em razão de uma importantíssima e competente atuação da advocacia trabalhista, do Ministério Público do Trabalho, da Justiça do Trabalho e dos auditores-fiscais do trabalho, com apoio em intensa produção científica ligada às questões do trabalho de diversas áreas do conhecimento (sociologia, história, psicologia, medicina e direito, dentre outras), que o Direito do Trabalho começou a se reconstruir, municiado, sobretudo, pelos preceitos pertinentes aos direitos de personalidade. Diante dos sucessivos casos de tratamento abusivo, com desconsideração da condição humana dos trabalhadores e o aumento vertiginoso das doenças profissionais e dos acidentes, notadamente, na terceirização, as indenizações por dano moral e por assédio moral passaram a habitar o cotidiano das Varas do Trabalho no início dos anos 2000. Mas tudo como efeito de toda a destruição jurídica promovida na década de 90, que conferiu ao Brasil, inclusive, o título do quarto país do mundo em número de mortes por acidentes do trabalho[iii]. E quanto custa uma ofensa à dignidade? Bem, como se diz, isso não tem preço e essa imprevisibilidade maltrata muitos empregadores, mas a culpa da situação não é da Justiça do Trabalho e sim da tentativa de se estabelecer uma exploração do trabalho sem a consideração dos limites mínimos impostos pelo estágio da evolução da humanidade, consagrados nos direitos sociais. Portanto, querer impor um retrocesso ao estágio da humanidade, por intermédio de argumentos econômicos que interessam apenas ao setor dominante da sociedade, é uma tarefa irrealizável. Ao menos isso não se dará sem muita resistência e, consequentemente, sem o aumento dos riscos para os seus protagonistas. [i]. http://www.csjt.jus.br/noticiadestaque/-/asset_publisher/6Mvh/content/justica-do-trabalho-publica-listas-com-maiores-litigantes-no-pais?redirect=%2Finicio%2F-%2Fasset_publisher%2Fh7PL%2Fcontent%2Fcoleprecor-elege-comissoes-para-atuarem-no-csjt%3Fredirect%3D%2F [ii]. http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83676-relatorio-justica-em-numeros-traz-indice-de-conciliacao-pela-1-vez [iii]. http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-04/brasil-e-quarto-do-mundo-em-acidentes-de-trabalho-alertam-juizes, acesso em 18/06/16. |
pergunta:
"Até quando vamos ter que aguentar a apropriação da ideia de 'liberdade de imprensa', de 'liberdade de expressão', pelos proprietários da grande mídia mercantil – os Frias, os Marinhos, os Mesquitas, os Civitas -, que as definem como sua liberdade de dizer o que acham e de designar quem ocupa os espaços escritos, falados e vistos, para reproduzir o mesmo discurso, o pensamento único dos monopólios privados?"
Emir Sader
Emir Sader
4.4.17
VII- “É preciso eliminar a insegurança jurídica”
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Cancion con todos
Salgo a caminar
Por la cintura cosmica del sur
Piso en la region
Mas vegetal del viento y de la luz
Siento al caminar
Toda la piel de america en mi piel
Y anda en mi sangre un rio
Que libera en mi voz su caudal.
Sol de alto peru
Rostro bolivia estaño y soledad
Un verde brasil
Besa mi chile cobre y mineral
Subo desde el sur
Hacia la entraña america y total
Pura raiz de un grito
Destinado a crecer y a estallar.
Todas las voces todas
Todas las manos todas
Toda la sangre puede
Ser cancion en el viento
Canta conmigo canta
Hermano americano
Libera tu esperanza
Con un grito en la voz
Por la cintura cosmica del sur
Piso en la region
Mas vegetal del viento y de la luz
Siento al caminar
Toda la piel de america en mi piel
Y anda en mi sangre un rio
Que libera en mi voz su caudal.
Sol de alto peru
Rostro bolivia estaño y soledad
Un verde brasil
Besa mi chile cobre y mineral
Subo desde el sur
Hacia la entraña america y total
Pura raiz de un grito
Destinado a crecer y a estallar.
Todas las voces todas
Todas las manos todas
Toda la sangre puede
Ser cancion en el viento
Canta conmigo canta
Hermano americano
Libera tu esperanza
Con un grito en la voz
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