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"Até quando vamos ter que aguentar a apropriação da ideia de 'liberdade de imprensa', de 'liberdade de expressão', pelos proprietários da grande mídia mercantil – os Frias, os Marinhos, os Mesquitas, os Civitas -, que as definem como sua liberdade de dizer o que acham e de designar quem ocupa os espaços escritos, falados e vistos, para reproduzir o mesmo discurso, o pensamento único dos monopólios privados?"

Emir Sader

4.4.17

Mais um capítulo do golpe que, negando o fim do Estado, promoverá o próprio fim

Mais um capítulo do golpe que, negando o fim do Estado, promoverá o próprio fim
Sexta-feira, 31 de março de 2017

Mais um capítulo do golpe que, negando o fim do Estado, promoverá o próprio fim

Foto: Divulgação (Ayrton Vignola/Fiesp)

O jogo de palavras é proposital. A finalidade do Estado é cuidar do que é publico e, pois, comum a todos. Desde a segunda metade do século XX, reconhecemos como uma necessidade pública a garantia de direitos sociais. Só assim, evitaremos a barbárie.

É fato que o desmanche do Direito do Trabalho vem ocorrendo há muito tempo. Para além do eterno combate entre capital e trabalho, tendo o primeiro sempre assumido posição refratária e mesmo agressiva, em relação às poucas conquistas do segundo, desde a década de 1990 podemos perceber um impulso especial em direção ao desmanche. Não é a toa que os dois projetos de lei que pretendem regulamentar a terceirização foram propostos em 1998 e 2004.

No governo de FHC (Fernando Henrique Cardoso (PSDB)), uma lógica muito similar foi posta em curso e não prevaleceu por questões que aqui não serão desenvolvidas. Registro apenas que a atuação da classe trabalhadora, que acreditava na possibilidade de um mundo diverso e conseguiu, em 2002, materializar sua crença na vitória de Lula para a presidência da República, fez diferença na batalha que, na década de 1990, travamos contra as reformas então propostas.

Dona Marisa e o presidente Lula na posse do primeiro mandato, em 2003. Foto: Agência Brasil

A eleição de Lula transformou a crença, festejada nas ruas do país e mantida nos primeiros anos de seu governo, em desilusão. Embora tenham havido contenções importantes, a lógica liberal manteve-se inalterada. Ainda assim, havia limites. Era impensável, à época, ver um Presidente do TST (Tribunal Superior do Trabalho) declarar publicamente a inutilidade da instituição que representa, ou um ministro do STF desqualificar os juízes e suas decisões, detonando uma onda de ataques misóginos a juízas, especialmente na área trabalhista.

Não havia espaço para uma lei orçamentária, cuja exposição de motivos fosse um recado para a Justiça do Trabalho, claro e preciso: promoveremos a morte, à míngua, dessa instituição, como represália ao poder de contenção da exploração do trabalho, que ela exerce por condição genética.

É preciso reconhecer que o golpe de 2016 abriu espaço para um discurso declarado e raivoso de completo desmanche do Estado Social. Evidentemente, o Direito do Trabalho está no olho do furacão. Os exemplos mais recentes são a aprovação do desengavetado PL 4302, pela Câmara dos Deputados, e a decisão do STF, chancelando a possibilidade não apenas de a administração pública terceirizar (negando a norma constitucional que determina a contratação por concurso público), mas também de fazê-lo sem assumir qualquer responsabilidade por isso. Tudo em uma lógica de precarização, cujo enfrentamento não interessa aos poderes de Estado.

Os terceirizados pela administração pública são formalmente contratados por empresas sem sede própria, sem patrimônio, que tem duração curta, pois dependem integralmente dos contratos que firmam com entes públicos.

Recebem pouco, trabalham muito; não tem local certo de trabalho e, portanto, lhes é sonegada a sensação de pertencimento ao ambiente em que exercem suas atividades; não conseguem se organizar para batalhar coletivamente por melhores condições de trabalho; seus empregadores formais, que via de regra lhes são estranhos (desconhecem a sede ou mesmo os donos da prestadora), somem no ar sem deixar vestígios, esses trabalhadores não exercem direito às férias, pois os contratos com entes públicos dificilmente duram mais do que dois anos.

Isso, porém, sequer apareceu nos discursos dos ministros que aprovaram tese que libera a administração pública de sua responsabilidade pelo não pagamento das verbas trabalhistas dos trabalhadores e trabalhadoras, cuja força do trabalho explora diretamente, por meio de uma "atravessadora", e o fizeram com repercussão geral, permitindo e incentivando a continuação da barbárie.

O que apareceu no discurso dos ministros, porém, foi a preocupação com o quanto o Estado gasta, pagando débitos trabalhistas das empresas inidôneas que deliberadamente contrata. Como se não fosse sua a opção administrativa de burlar a Constituição e contratar por intermédio de terceiro, via de regra com o requisito do menor preço, esgarçando a lógica da exploração do trabalho como mercadoria.

Quanto ao PL 4302, há inclusive vício formal. O Senado que o aprovou, de 2002, não é mais o mesmo. Outro projeto estava sendo discutido e refutado pelas inúmeras audiências públicas realizadas por todo o país. Num golpe dentro do golpe, o PL 4302 foi desengavetado e votado às pressas, novamente sem que a questão do trabalho e da perversidade da terceirização fossem sequer tangenciadas; ficaram fora do discurso.

Como já escrevi em outro artigo, o único compromisso real de quem hoje detém o poder político em razão do golpe promovido em 2016, é promover o desmanche dos direitos sociais, dentre eles os direitos trabalhistas e previdenciários.

Câmara dos Deputados aprova lei que autoriza o trabalho terceirizado de forma irrestrita. Foto: Lula Marques/AGPT

Trata-se de um pacote perverso que desafia nossa compreensão de que o capital, quando age através do Estado, não é a representação de personalidades subjetivamente más, trata-se de uma condição objetiva do sistema. Essa premissa, que é compreensível da perspectiva da análise do que tem sido o sistema do capital nesses últimos dois séculos, regulando, tolerando e atacando o trabalho, em ritmos sistêmicos mais ou menos controlados, porque ciente da necessidade da regulação do trabalho para a sua própria sobrevivência, é desafiada pelo governo golpista que assumiu o poder em 2016. Aqui, por vezes, temos dúvida.

A perversidade é tanta no atual quadro de atuação dos órgãos de cúpula dos três poderes do Estado, que até parece que há uma subjetividade do mal, comandando as forças públicas, que esquecem sua razão de existência (ao menos declarada): cuidar do que é público.

E como o Estado vem negando seu fim (finalidade), o que constrói são os elementos de sua própria derrocada.

Negação absoluta do direito de greve dos servidores públicos; reconhecimento da legalidade da condição inconstitucional, perversa, precarizada, dos terceirizados; contratos flexíveis, curtos e precários, que reduzem o trabalhador à condição de coisa, majoração da jornada, redução do intervalo, retirada de direitos.

E, para arrematar, proposta de reforma previdenciária que permitirá aposentadoria integral apenas após 49 anos de contribuição. É muita perversidade, para que sigamos crendo na representação objetiva dos interesses do capital. Como diz a música de Nando Reis, "o mundo está ao contrário e ninguém reparou".

Não nos serve, porém, pensar em subjetividades malignas agora, porque talvez elas nem existam. O que importa é reconhecer que há um projeto sendo executado, que vem contando com a anuência e a contribuição de pessoas comprometidas com o capital internacional (que pretende, por exemplo, expandir o nicho negocial das empresas de previdência privada). Conta, também, com a falta de reflexão crítica de tantos cidadãos "de bem", que seguem suas rotinas diárias colonizadas pela necessidade do trabalho e do dinheiro, sem tempo, sem paciência e sem vontade de encarar de frente essa guerra declarada contra os trabalhadores e trabalhadoras brasileiros. Até porque a ideologia do capital nos ensina, talvez desde antes do nascimento, a eliminar a alteridade.

Esses cidadãos que seguem sua rotina sem ir para as ruas, sem se revoltar, sem sequer reconhecer que há um processo de desmanche em curso, não se reconhecem nos trabalhadores terceirizados, nos jovens que terão de ser "flexíveis" e aceitar trabalhos intermitentes, se as alterações propostas forem aprovadas. Não se reconhecem nos trabalhadores e trabalhadoras do campo, cuja sazonalidade do trabalho determinará a impossibilidade concreta de aposentar-se. Não se reconhecem nos servidores públicos. Ao contrário, por vezes os invejam e demonizam a partir do senso comum de que não trabalham e, para desespero de todos aqueles que lutam e competem no "mercado", ainda são detentores de estabilidade no emprego! Como se a evolução social devesse se dar no sentido da redução das condições de trabalho do Outro, e não de sua expansão para mim.

Essa ideologia amplamente disseminada e que impede nossa capacidade de empatia, de nos reconhecermos no outro, conta com um apoio claro, ostensivo, da chamada "mídia oficial". E para aqueles que insistem em não compreender o termo, explico. Mídia oficial é o chamado Quarto Poder, as grandes corporações que dominam a comunicação de massa.

Aqueles que, quando você sai para trabalhar pela manhã, insistem em referir o quanto a greve "atrapalha" a vida dos cidadãos "de bem", como se a luta dos metroviários, dos servidores, dos professores, dos bancários, não contribuísse para melhorar a vida em sociedade, para todas as pessoas que a compõem.

Aqueles que, quando devem falar da aprovação de um projeto como o PL 4302, chamam um especialista: o dono de uma grande rede de lojas, para que dê sua opinião, para a qual não haverá algum contraponto.

Aqueles que entrevistam o trabalhador (terceirizado) de uma empresa de telemarketing, para que ele exalte o quanto é bom trabalhar ali. Obviamente, sem referir o fato de que atua como escudo de uma empresa que não fala diretamente com seus clientes: ouvindo desaforos, cumprindo metas impossíveis, com controle absoluto do tempo de trabalho e da subjetividade (através da necessidade de informar o uso do banheiro, por exemplo). Não referem também o fato de que o salário, nessa área já completamente transfigurada pela terceirização, quase nunca ultrapassa pouco mais de mil reais por mês.

A mídia oficial composta por aqueles que inventam uma crise e falam dela o tempo todo, para convencer inconscientemente as pessoas de que o golpe é necessário. E quando aplicado o golpe, se calam.

E a palavra crise milagrosamente desaparece do discurso. Aqueles que passaram a nominar a Presidenta eleita como petista, para demonizar um partido que, se já havia vendido sua alma ao capital, ainda constituía um elemento importante do discurso contra hegemônico. Eis aí uma breve e clara descrição da mídia oficial, cuja contribuição para o golpe, hoje como em 1964, não pode ser desprezada.

Não passa um dia em que a TV aberta não insista na necessidade de "modernizar" as relações de trabalho (como se a CLT fosse a mesma de 1943, como se modernizar fosse sinônimo de suprimir e precarizar) ou não apresente pesquisas (cuja falsidade tem sido decantada por estudos sérios) acerca de suposto déficit da previdência.

O golpe em curso tem objetivo claro de atacar todas as frentes capazes de gerar resistência e, como isso, eliminar o próprio Estado. Desde a reforma do ensino médio, para criar uma geração de operários preparados para a condição de precarizados, passando pela redução drástica dos gastos com saúde, educação, cultura, através da PEC 55, até a reforma trabalhista e previdenciária. A extinção da Justiça do Trabalho está no pacote, basta perceber como a "mídia oficial" tem dado espaço a manifestações de opinião nesse sentido.

A aprovação das reformas trabalhistas e o desmanche que vem sendo promovido pelo STF constituem estímulo ao desrespeito a direitos fundamentais. A consequência será (e já está sendo) a inviabilidade de pequenos e médios empreendimentos, que não tem condições de competir numa lógica predatória. Os empregados, por sua vez, terão de recorrer ao seguro-desemprego, a fim de sobreviver nos meses em que estiverem sem trabalho. Não haverá, portanto, enxugamento da máquina estatal.

Haverá, como já está ocorrendo, uma procura ainda maior por soluções que o mercado não pode nem tem interesse em dar, e que são vitais para evitar o caos.

O Estado se constitui, especialmente através da Justiça do Trabalho, como o único e último reduto de realização, mesmo que tardia e parcial, dos direitos sociais. É sabido que a democracia traz consigo o ônus da necessidade de estruturas ágeis e capazes de promover o retorno à ordem jurídica democraticamente instaurada. Ou seja, viver em um Estado Democrático de Direito significa ter direitos e deveres, mas também contar com uma estrutura forte que os faça valer, sempre que violados. Do contrário, a própria democracia revela-se como uma farsa.

Elegemos nossos representantes, aprovamos as normas jurídicas e concordamos em conceder ao Estado o monopólio da jurisdição. Em contrapartida, podemos (e devemos) exigir do Estado que garanta a realização dessa ordem de coisas, que aja quando nossos direitos forem violados.

A decisão que o STF tomou esta semana, chancelando a possibilidade de que ente publico terceirize, tome trabalho e não se responsabilize por isso, rompe com essa noção de Estado.

A Justiça do Trabalho é o ambiente em que as normas fundamentais de proteção ao trabalho encontram espaço para serem exigidas, para serem respeitadas. Suprimir esse espaço ou a possibilidade de acessa-lo – é disso que se trata a recente decisão do STF sobre terceirização – é retirar dos trabalhadores a possibilidade de exercício de sua cidadania, de exigência do respeito às normas constitucionais.

Esse problema não é só nosso, não que isso seja um alívio. O cenário é muito grave em quase todo o planeta. A greve voltou a ser questão de polícia, ideais fascistas se disseminam em sociedades muito diferentes entre si, o esgotamento dos recursos naturais tem tornado insustentável a vida em alguns lugares da terra.

Nesse contexto, o desamparo e o desespero vem dando a tônica, mas é preciso evitá-los. Momentos de crise como esse são também oportunidade para que algo novo floresça. O capitalismo não existe há tanto tempo assim, e não é algo perene. É uma escolha que talvez já tenha durado tempo demais.

Há um claro esgotamento da forma de organização da sociedade que conhecemos. A existência do Estado está em jogo. O sistema está em jogo. Não é difícil perceber que a consolidação do projeto de desmanche que o próprio Estado se empenha tanto em concretizar implicará seu fim.

Quando a atividade jurisdicional for privatizada, como se pretende (e em alguma medida já vem ocorrendo, através do incentivo à conciliação, de preferência com "quitação geral do contrato", essa aberração jurídica que a própria Justiça do Trabalho gestou), a jornada for de 14h ou mais, o salário for precarizado, não houver mais identidade de classe, não houver saúde ou educação públicas, será difícil seguir sustentando a necessidade do Estado.

Para mediar relações dos gigantes que detém o capital? Para salvar empresas em crise? Não haverá crise, pois não haverá relação mediada entre capital e trabalho. Haverá caos. E no caos, nem o sistema do capital se sustenta (a história nos revela isso, insistentemente), nem seus mecanismos de opressão ou aparelhos ideológicos, como refere Althusser, dentre os quais o Estado é o mais expressivo, terão razão de existência.

Crise tem sempre algo de positivo, porque nos convida à reflexão e nos instiga a tomar posição, e agir. Estamos diante de uma crise da existência mesma do Estado, em que o capital internacional desamarra-se e se propõe, de modo muito claro e ostensivo, a buscar novas bases de convívio social, rompendo com os compromissos de contenção expressados especialmente nas constituições do segundo pós guerra.

Os caminhos ainda serão construídos e talvez consigamos sair desse momento de transição fortalecidos, fazendo do esgotamento do Estado, como forma jurídica do capital, a razão para o repensar desse modelo de sociedade e de todas as amarras que o configuram como elemento de exclusão e miséria. Para isso, porém, é preciso, antes de tudo, reconhecer o movimento de destruição que está em marcha. E lutar contra ele.

Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.



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Cancion con todos

Salgo a caminar
Por la cintura cosmica del sur
Piso en la region
Mas vegetal del viento y de la luz
Siento al caminar
Toda la piel de america en mi piel
Y anda en mi sangre un rio
Que libera en mi voz su caudal.

Sol de alto peru
Rostro bolivia estaño y soledad
Un verde brasil
Besa mi chile cobre y mineral
Subo desde el sur
Hacia la entraña america y total
Pura raiz de un grito
Destinado a crecer y a estallar.

Todas las voces todas
Todas las manos todas
Toda la sangre puede
Ser cancion en el viento
Canta conmigo canta
Hermano americano
Libera tu esperanza
Con un grito en la voz