O julgamento da ética pública não é monopólio de políticos (por Jacques Távora Alfonsin)
O editorial do Estadão do dia 21 deste agosto, comentando a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal aceitar a denúncia oferecida no dia anterior, pelo procurador geral da república, contra Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, afirma que ele "precisará deixar o comando da Casa. Espera-se que ele e seus pares tenham consciência disso."
A denúncia atribui ao deputado ter praticado crime de corrupção e lavagem de dinheiro. Nessa hipótese, a renúncia seria necessária, de acordo com o mesmo editorial, "para que seus atos não mereçam sempre dupla interpretação e para que a imagem da Câmara dos Deputados não se confunda com a de uma figura no banco dos réus". "Por muito menos, o então presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (PP-PE), renunciou ao comando da Casa e ao próprio mandato parlamentar. Era acusado de cobrar um "mensalinho" do dono de um restaurante no Congresso – R$ 10 mil em dinheiro da época."
Eduardo Cunha já antecipou não ter nenhuma intenção de fazer isso, abrindo-se então a oportunidade de o Plenário da Câmara, decidir sobre sua permanência, ou não, na presidência para a qual foi eleito, como dispõe o artigo 55, da Constituição Federal. No parágrafo primeiro deste artigo, está previsto o seguinte:
"É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas."
"Decoro parlamentar", "abuso de prerrogativas", "percepção de vantagens indevidas", em qualquer dessas hipóteses pode o presidente da Câmara renunciar ou ser destituído de suas funções, se provadas forem a corrupção e a lavagem de dinheiro a ele atribuídas pela denúncia.
Eduardo Cunha não perderia só a presidência da Câmara, mas até o o próprio mandato. O editorial do Estadão deduz essa consequência do ponto de vista estritamente lógico. Se isso depender, contudo, da consciência de Eduardo Cunha e de seus pares como lá está dito, não existe qualquer garantia no futuro.
Basta recordar-se que o Plenário da Câmara, recentemente, aprovou a PEC (projeto de emenda constitucional) 182/07, relacionada com a possibilidade de doação do dinheiro de empresas privadas a partidos, uma das causas mais conhecidas e deploradas de corrupção de políticos e de administradores públicos, por meio de manobras contábeis de desvio de dinheiro, tipo caixa 2. E assim decidiu – ironia perversa – em seguimento aos projetos de reforma política…
O presidente da Câmara está tão certo de sua permanência no cargo que, mesmo na hipótese de o Plenário conseguir instaurar o processo legal da possibilidade de sua destituição do cargo, está debochando da denúncia contra ele oferecida, qualificando-a como "ridícula".
A tal emenda constitucional vai ao Senado agora, restando alguma esperança de ali serem barrados os seus maus efeitos. O sentido de corrupção moral, ou ética como se prefere denominar o desvio de conduta de agentes públicos, tem sido atordoado de tal forma, nos últimos meses, que não se fala noutra coisa.
O alvo desse barulho todo, acentuado por gente indo para as ruas batendo em panelas, visava desgastar o governo, mas eis que, agora, se vira contra um dos mais representativos políticos da oposição.
Uma luz no meio dessa confusão pode ser vista num ensinamento muito conveniente e oportuno de Enrique Dussel, para o Brasil de hoje. Traduzido para o português, em 1986, pela Editora Vozes, Dussel faz uma distinção oportuna entre moral e ética no seu livro "Ética Comunitária. Liberta o pobre.":
"Os clássicos definiam a "moralidade" como a relação essencial com a norma ou lei." (…) "O problema surge, como facilmente se pode compreender quando, uma vez que o sistema do mundo se afirmou como o fundamento ou a lei do ato, a moralidade depende da realização do próprio sistema. É moralmente "bom" um ato que esteja de acordo ou cumpra os fins do sistema vigente. Se pago os impostos, o salário mínimo, etc., exigidos pela lei, sou um homem "'justo", "bom". Talvez a lei seja injusta, os impostos insuficientes, o salário de fome, mas tudo isso fica fora da possível consideração moral." (…) "Deste modo, respeitando e amando a lei do sistema vigente, suas normas, seus fins, seus valores, o próprio dominador (pecador) torna-se justo e bom para o mundo. O "Príncipe deste mundo" é agora o juiz da maldade e da bondade. A própria moralidade se inverteu. É a "sabedoria do mundo" feita norma."
Um mínimo de percepção dos poderes econômicos e políticos atualmente em disputa no nosso país, sobre o que é moral ou ético, não precisa de senso crítico mais apurado para identificar nessa lição o capitalismo neoliberal como o fundamento moral do "sistema vigente".
Daí a precisão de alguma das agudas conclusões de Dussel, desarmando ingenuidades sobre tudo quanto pode passar por moral mas não é ético: "O ético é assim transcendental ao moral. As morais são relativas: há moralidade asteca, hispânica, capitalista. Cada uma justifica a práxis de dominação como boa. A ética é uma, é absoluta: vale em toda a situação e para todas as épocas."
Embora essa ousadia conclusiva possa receber algum tipo de crítica, ela serve para advertir as opiniões em voga no hoje da crise, para se colocar sob suspeita todas aquelas "morais", interessadas em tirar proveito do caos, sob a aparência da indignação ética, mas realmente inspiradas em conveniências episódicas da própria preservação do "sistema", sua força e seus privilégios.
Se essa realidade está se reproduzindo agora, é imoral e antiética, independentemente do partido, da religião, da ideologia ou da/o político/a. Deixar-se enganar equivale à cumplicidade. Daí a urgência de se empoderar iniciativas realmente democráticas de defesa da cidadania, dos direitos humanos fundamentais e do Estado de Direito, como as que circulam em redes sociais por uma reforma política verdadeiramente popular e a necessidade de se formar uma frente ampla para convocar uma assembleia nacional constituinte, soberana e exclusiva.
Se o lobo da dominação sempre soube fantasiar-se com a pele de cordeiro do serviço que quer prestar, a crise atual pode muito bem servir de desafio para o povo que quer, pode e deve quebrar-lhe os dentes.
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Jacques Távora Alfonsin é Procurador do Estado aposentado, Mestre em Direito pela Unisinos, advogado e assessor jurídico de movimentos populares.
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