Kucinski: 'Conviver com crimes hediondos é péssimo para o Brasil e para nossa moral'
Jornalista lamenta que sociedade fique "passiva" ante confissões como a do ex-delegado do Dops, de que teria incinerado corpos de presos políticos na ditadura, entre eles o de sua irmã
Por: Paulo Donizetti de Souza, Revista do Brasil
Publicado em 02/05/2012, 18:24
Última atualização às 19:01
Kucinski busca desde 1974 informações que levem ao corpo de sua irmã Ana. Ex-delegado do Dops diz tê-lo incinerado (Foto: Paulo Pepe)
São Paulo – "Talvez tenha sido. Talvez não." Assim o jornalista e escritor Bernardo Kucinski reagiu à informação de que os corpos de sua irmã Ana Rosa Kucinski e seu cunhado Wilson Silva tenham sido incinerados por agentes da ditadura. A notícia está entre as confissões de crimes cometidos pelo aparato repressivo, feitas no livro "Memórias de uma Guerra Suja" pelo ex-delegado Cláudio Guerra, do Departamento de Ordem Política e Social (Dops).
Parte do conteúdo do livro – resultado de depoimentos do ex-delegado aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros colhidos nos últimos três anos – foi divulgada hoje pelo editor Tales Faria, do portal iG. De acordo com a reportagem, Cláudio Guerra admite sua participação em mais de uma centena de sequetros e assassinatos praticados por milícias comandadas pelos órgãos da repressão.
Leia também
- Contos de B.Kucinski são metáfora de si mesmo e dos espinhos de nossa história
- Portal IG: Militantes de esquerda foram incinerados em usina de açúcar
Entre eles, Guerra revela a incineração dos corpos de pelo menos dez militantes de organizações de resistência à ditadura: João Batista, Joaquim Pires Cerveira, presos na Argentina pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury; Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva, ela com marcas de violência sexual e ele sem as unhas da mão direita; David Capistrano (“lhe haviam arrancado a mão direita”), João Massena Mello, José Roman e Luiz Ignácio Maranhão Filho, dirigentes do Partido Comunista do Brasil; e Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho, militantes da Ação Popular Marxista Leninista (APML).
Ana Rosa e Wilson desapareceram em 22 de abril de 1974. De acordo com um depoimento feito pelo ex-cabo do Exército José Rodrigues Gonçalves à jornalista Mônica Bergamo, para uma reportagem da revista Veja em 1993, teriam sido levados pelo delegado Fleury, passado um dia presos em São Paulo e depois transferidos para Petrópolis, no Rio de Janeiro. "Lá, não devem ter sobrevivido três dias até serem encaminhados à execução", conta Bernardo, que obteve da própria jornalista uma cópia da reportagem, que jamais chegou a ser publicada.
"As informações surgidas hoje coincidem com uma série de outras já reveladas em outras reportagens ou investigações", diz Bernardo, que desde os anos 1970 procura por informações que levem aos restos mortais da irmã. "Já em 1982, o ex-sargento Marival Dias Chaves havia feito relatos sobre como as pessoas eram presas e encaminhadas para Petrópolis. Só muda um pouco a versão sobre o destino dos cadáveres, mas os pontos podem ser ligados."
Morbidez trágica
Embora as revelações de Cláudio Guerra tenham nexo, Bernardo Kucinski não acha impossível que o ex-delegado fale em incineração dos corpos com objetivo de "afrouxar" as buscas dos restos mortais dos desaparecidos por seu familiares. O jornalista acredita que o acúmulo de informações alcançadas por essas operações de buscas, combinadas com ações desencadeadas pelo Ministério Público (de investigar crimes não prescritíveis, como de sequestro, nem passíveis de perdão por força da Lei de Anistia), podem contribuir mais para a elucidação das violações praticadas pela repressão.
"Essa Comissão da Verdade instalada pela presidenta Dilma já se auto-impôs limites que podem comprometer a sua eficácia. E isso é grave, porque se a Comissão não chegar a resultados efetivos, pode comprometer o curso das investigações", afirma Kucinski. "Por isso, acredito mais nas possibilidades da Comissão da Verdade do Senado, nas ações do Ministério Público e nas confissões de agentes envolvidos."
Ele considera angustiantes as imagens frequentemente relacionadas à barbárie dos anos de chumbo. "As descrições dos crimes ou fotos como aquela do Vlado Herzog (em que o jornalista aparece enforcado) expõem uma morbidez da qual amigos, filhos e netos das vítimas deveriam ser poupados", revela.
O escritor, um dos idealizadores e colaborador da Revista do Brasil, admite, porém, um inconformismo com a passividade da sociedade. "Além desse livro que é noticiado agora, já foram muitas as informações sobre os crimes hediondos da ditadura. O bastante para degradar a imagem do Brasil. A sociedade saber de tanta coisa e não fazer nada faz um grande mal à nossa moral. Nada justifica tanta omissão."
Leia especial sobre os 48 anos do golpe de 1964:
- Passados 48 anos do golpe contra João Goulart, resta algo de ditadura
- Tuna Dwek: 'Tem muita gente que está morta há muito tempo, porque foi calada pela ditadura'
- Memórias de abril e o golpe da informação
- Um quebra-cabeça para reconstruir a história das ditaduras
- Desigualdade no sistema educacional brasileiro é herança do período militar
- Na USP, cinco décadas após o golpe, a ditadura volta a dar as caras
- Silvio Tendler: 'Forças conservadoras continuam mandando no Brasil'
- Duddu Barreto Leite: "Se abandonei o teatro, foi por perseguição política"
- Para Chauí, ditadura inciou devastação física e pedagógica da escola pública
- Na saúde, ditadura começou abertura ao setor privado
Nenhum comentário:
Postar um comentário