22.12.09 - BRASIL |
São Paulo - Adital -
Daniel Augusto Gaiotto é Procurador do Trabalho na Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região, em São Paulo, capital paulista. Ocupa atualmente o cargo de representante regional da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho, atuando especificamente na Grande São Paulo e Baixada Santista, no combate ao trabalho degradante ou trabalho análogo ao escravo.
Atualmente, um dos focos principais da sua atuação é a exploração sofrida por migrantes latinos no setor de confecções em algumas regiões da cidade. E foi sobre esse assunto que ele falou à Adital, principalmente sobre o combate que o órgão faz em relação a estes crimes que violam gravemente a dignidade humana. Confira a entrevista.
Adital - Atualmente, muito se fala do trabalho análogo ao escravo ou degradante. Em relação aos migrantes bolivianos em São Paulo, o senhor poderia fazer um breve histórico para percebermos como se chegou ao ponto em que estamos hoje.Daniel Augusto - Minhas informações são baseadas em fatos práticos e também em dados que vou colhendo. No setor de confecções, sobretudo de roupas femininas, há um ciclo de exploração, pelo menos nos últimos 30 ou 40 anos. Isso em relação às confecções existentes no Brás e no Bom Retiro, as regiões de São Paulo que mais vendem esse tipo de roupa. A pessoa que trabalha na confecção ou nas oficinas de costura, com o tempo vai juntando o seu dinheiro, enriquece e passa a ser dono da oficina. Depois, chega à fase do lojista, progride, sai dessa atividade, e vai exercer outra atividade mais qualificada e rentável, em outro ramo. Isso aconteceu no meio da década de 60 com muitos dos coreanos, que passaram por todas essas fases. Agora, estamos na fase dos bolivianos. Então, existe um ciclo de exploração, em que um sempre vai sendo explorado lá na base. Mas o ciclo de exploração está evoluindo. Evoluindo no sentido figurado, obviamente. Sempre existe aquele grupo que é explorado hoje e vai progredindo, ainda que à custa dos outros e, de forma injusta, ascende na cadeia produtiva.
Adital - Antes dos coreanos, havia outros grupos? É interessante conhecer esse aspecto, e a área geográfica, talvez, da cidade em que isso mais se identifica.
Daniel Augusto - O Brás e o Bom Retiro são as regiões mais famosas. É um pouco inseguro, contudo, voltar muito atrás e elencar os grupos que primeiramente atuavam por lá. Necessário também ter cautela para evitar rotular um grupo social pela conduta de alguns de seus integrantes. As comunidades predominantes nessas regiões eram de origem síria, libanesa, judaica; os italianos também atuavam, embora em menor número. Atuavam em vários setores do comércio.
Mas, pelos relatos, os coreanos já chegaram a trabalhar como costureiros, depois foram donos de oficinas e de lojas. Na verdade, trabalharam para alguém que, nessa época, já os explorava nas confecções e nas lojas. Devemos ter a atenção de lembrar que estamos analisando o passado com os olhos de hoje, de forma que aquilo que é visto atualmente como degradante, poderia não sofrer tanta rejeição da sociedade naquela realidade. Por isso até, não há registros oficiais de denúncias de exploração de trabalhadores em oficinas de costura naquela época. Estou falando sobre o que aconteceu no passado, com base em informações de pessoas que viveram naquela época, que trabalharam como costureiros, como donos de oficina e, depois, como lojistas.
Adital - Qual é a dimensão disso? Quantas pessoas estão envolvidas nesse tipo de exploração?
Daniel Augusto - O trabalho nas confecções e nas oficinas de costura é muito pulverizado, o que acaba dificultando o nosso trabalho. Se antigamente era um pouco mais concentrado, poucas oficinas com mais empregados, ultimamente nós temos oficinas funcionando com meia dúzia de pessoas. O número total de trabalhadores envolvidos chega a ser assustador e há uma certa divergência quanto ao número de bolivianos. Muitos estão em situação ainda não regularizada, e continuam chegando. Já ouvi pessoas falando de 50 mil, de 100, 200, 300, 400 mil pessoas aqui na Grande São Paulo. Não tenho dados seguros, mas são muitos.
Adital - E como a Procuradoria age quando recebe alguma denúncia? Como é esta atuação?
Daniel Augusto - Nós recebemos as denúncias, por e-mail ou pessoalmente, sigilosas ou não, que são autuadas e distribuídas para os procuradores. As denúncias também podem ser feitas pelo próprio Procurador ou por outra autoridade. Aberta a investigação, vamos até o estabelecimento do denunciado, com apoio da Polícia Federal. Uma vez constatadas as irregularidades, intimamos o dono e propomos um termo de compromisso para que ele regularize a situação. Obrigações como registrar os empregados, pagar salário em dia, limitar a jornada de trabalho para oito horas, no máximo dez, recolhimento de FGTS e, especialmente, a regularização das condições de trabalho. Isso porque as condições são degradantes, os ambientes úmidos, mal ventilados e pouco iluminados, há risco de incêndio por causa da fiação e do material inflamável. Geralmente, essas oficinas de costura são precárias. Nessa medida, também é preciso fazer programas de saúde e de prevenção de acidentes dentro da empresa. Ao longo do tempo, os trabalhadores também adquirem doenças do trabalho, pois a atividade é desgastante, ainda mais porque o mobiliário não é ergonômico.
Adital - Desde que começou esse trabalho, quantos grupos ou pessoas foram autuadas? Há quantos bolivianos nas confecções? Eles conseguiram se libertar ou é um rolo compressor tão forte que depois volta?
Daniel Augusto - Não atuamos só em relação às oficinas de costura. É preciso ampliar um pouco o objeto para abranger também quem toma o serviço das oficinas, que classificamos como lojistas ou tomadores. Nas oficinas de costura, sempre são localizados documentos (como notas fiscais) que revelam quem são os lojistas que repassaram os cortes de roupas para serem costurados. Em relação a estes tomadores, estabelecemos que têm de selecionar melhor as oficinas de costura que contratam. Entendemos que são responsáveis pelas condições de trabalho dos costureiros, tanto o dono da oficina de costura como quem o contrata.
Chamamos os lojistas para que se comprometam a selecionar somente as oficinas que estão em situação regular, que tenham um ambiente digno e que mantenham empregados registrados. Mesmo aqui, não há como calcular o número de trabalhadores envolvidos, porque são muitos.
Adital - A partir de quando começaram a chegar as denúncias em relação aos bolivianos?
Daniel Augusto - Eu prefiro colocar os "sul-americanos", porque já constatamos, embora em número bem menor, os paraguaios no setor de confecções de roupas. As denúncias começaram a chegar aqui no final da década de 90. Então a partir dessa época, tivemos uma fase em que diminuíram um pouco as denúncias, mas elas aumentaram consideravelmente nos últimos três meses.
Adital - Uma questão crônica no Brasil é a pouca infraestrutura que às vezes se dispõe para executar uma determinada ação. Seu trabalho dispõe de quais meios, pessoas e instrumentos para executar suas ações? Ou as denúncias são tantas que não conseguem ir atrás de tantas denúncias?
Daniel Augusto - O Ministério Público do Trabalho não atua só com base nas denúncias recebidas. Às vezes, criamos programas e vamos atrás das empresas, quando constatamos a recorrência de um problema. A nossa estrutura não é a ideal, mas, conseguimos bons resultados. Um dos caminhos que seguimos foi atuar em conjunto com o Ministério do Trabalho, a Prefeitura de São Paulo, as comunidades envolvidas, a Associação Brasileira dos Coreanos, a Câmara do Comércio Brasil-Coréia, a Associação dos Bolivianos, a Associação dos Paraguaios, o CAMI (Centro de Apoio ao Migrante) e a Centro Pastoral dos Migrantes para tentar resolver essa questão. Um dos resultados da atuação conjunta foi a celebração de um Pacto Social com vistas a regularizar as condições do trabalho dos trabalhadores no setor de confecção. Primeiro vamos orientar, pois, esse pacto está dizendo o que cada um tem que fazer, quais as obrigações dos lojistas e das oficinas de costura. É um trabalho que não sabemos ainda o tamanho que vai adquirir no futuro, quando nós partirmos para a fiscalização. Isso é uma forma que encontramos para contar com a própria participação dos envolvidos, para regularizarem a situação voluntariamente. Depois, em uma segunda fase, vamos verificar se eles cumpriram aquilo a que se comprometeram.
Adital - Com relação aos problemas práticos, os que mais aparecem à medida que se descobre essa questão, a pulverização, que incita também grandes lojas que aproveitam esse tipo de trabalho, o senhor poderia falar um pouco?
Daniel Augusto - O que encontramos nas oficinas de costura não são só as etiquetas e as notas fiscais de lojas pequenas, dessas localizadas no Brás e no Bom Retiro. Recentemente, fomos até uma oficina de costura, onde encontramos etiquetas de uma rede de lojas de roupas femininas de marca conhecida em shopping centers. Outras grandes lojas, inclusive multinacionais, também já repassaram roupas, ainda que indiretamente, para oficinas de costura precárias.
Já fizemos termos de compromisso com alguns dos maiores magazines do país, para que controlem as confecções que contratam para confeccionar as roupas a serem vendidas. Estamos ainda em fase de acompanhamento desses termos de compromisso. Ainda não podemos dizer que o problema foi totalmente resolvido, mas contamos com outras entidades para nos ajudar, porque o número de fornecedores passa, muitas vezes, de 200, 300, 400.
Quanto aos pequenos lojistas, é mais difícil, porque é mais pulverizado. São pequenos, aos milhares, tornando esse controle bem mais difícil. Contudo, um problema complexo exige várias soluções. Estamos trilhando vários caminhos e vamos resolver, pelo menos aqui em São Paulo. E um dos meios que adotamos é justamente esse Pacto Social, que foi firmado em colaboração com várias entidades da sociedade civil e envolvendo também o Ministério do Trabalho.
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