Vitória das mudanças sobre o conservadorismo e a prepotência
- Acerca das eleições uruguayas –
*Adão Villaverde
No recente 25 de outubro, sob um belo domingo ensolarado, como que expressando os novos ventos que têm soprado na latinoamérica, se realizou o primeiro turno da eleição nacional uruguaya. Dando sinais fortes, mais uma vez, de que está em curso neste vizinho e amigo país, mais uma importante e memorável caminhada de transformações cívicas, construída de forma simples, ampla e obstinada por seu povo e sua gente.
Referir este país é sempre falar um pouco de sua gente e de nós mesmos. Somos filhos de uma geração que sempre que necessitou encontrou guarida nos hermanos. Talvez pela proximidade geográfica e quem sabe pela identidade cultural do gaúcho, do churrasco, do chimarrão, de Benedetti e Galeano dentre outros. Mas tenho certeza, sobretudo, pela acolhida afável e sempre afetuosa de seu povo, principalmente nos momentos mais difíceis da construção da resistência democrática no Brasil, de forma sempre generosa albergavam nossos exilados políticos, apoiando-lhes na reconstrução de uma nova fase em suas vidas.
É com este carinho enorme, e com um profundo apreço de reconhecimento, que nossos laços permanentes de relação e compromissos nos fazem dedicar estas considerações que seguem. Pois ninguém quitará os lampejos de memória de nossa tenra idade, da epopéia cívica de Liber Seregni, em 1971, pelas ruas de Montevidéo. Assim como não esqueceremos que os vitoriosos à época, o futuro ditador Juan Bordaberry (Colorado), afinado com o general ditador brasileiro Emílio Médici, forçou ao exílio em Londres seu próprio aliado, o blanco Wilson Aldunate. Mas as coisas não ficaram aí, os tempos seriam piores. O congresso foi fechado e a Constituição suspensa, o "V" da vitória da democracia foi substituído por tanques e fuzis e o medo e a repressão viraram rotina. Veio a perseguição e o êxodo; com eles o abandono e a decadência e aquela bela e atrativa cidade "vieja" da capital teve suas ruas, cafés e livrarias despovoados pelo clima de repressão.
Passava-se a viver um tempo perdido e sem futuro. Os opositores que não tombaram, não se exilaram e não silenciaram, só tinham dois destinos: o presídio com o nome cínico de "Libertad" e a prisão de "Punta Rieles", onde, aliás, esteve encarcerada e foi covardemente torturada, nossa querida Flávia Schilling.
Mas, apesar de tudo, a resistência não esmoreceu. Nas bases a sociedade resistia. Em
Mas os horizontes dos anos 80 vislumbrariam os primeiros e tênues passos de mudanças para nossos vizinhos. Em 1984, vieram as eleições diretas, com todas as limitações do processo de transição da ditadura para a democracia, em que não puderam concorrer os principais líderes proscritos: o frenteamplista (FA) Líber Seregni e o blanco Aldunate. O primeiro marco real da redemocratização só ocorreria em 1989, com a eleição realmente livre do regime arbitrário. E foi nela que Tabaré Vázquez (Frente Ampla) se elegeu prefeito da capital que, aliás, os frenteamplistas governam até hoje.
E foi exatamente a experiência e o reconhecimento de ter governado a Intendência de Montevideo, abrigando quase metade da população uruguaya, que levou, há exatos cinco anos, Tabaré ao comando do país.
Em que pese alguns desgastes por ser situação, a gestão da FA obteve agora, nas urnas de 25 de outubro, dividendos concretos de retomada do crescimento e desenvolvimento da nação e de recuperação das funções públicas de Estado uruguayo, cuja desconstituição foi produzida pela coalizão conservadora e autoritária, produto da hegemonia secular da alternância nacional-colorada no poder.
Num país que já foi conhecido como a Suíça do continente, recomeçar a reescrever sua história, de forma incontestável, com os avanços do atual governo, é descortinar um segundo período de gestão de esquerda e progressista no país que deverá, de modo indelével, ser chancelado democraticamente nas urnas no próximo dia 29 de novembro.
Mas a base da boa e decisiva aceitação que os frenteamplistas tiveram nas urnas, resultado também da grande mobilização de sua militância que produziu o diferencial político em relação às forças tradicionais, reside fundamentalmente na ideia-força de que as mudanças deveriam continuar, de que o governo tinha aceitação popular.
Primeiro porque o elemento-chave para compreender sua chegada ao poder central, deve ser entendida como parte deste giro à esquerda da América Latina no último período. Pode-se dizer, sem medo de errar, que os cinco anos de Tabaré guardam fortes relações com a experiência e a aceitação do governo Lula no Brasil. Uma primeira constatação a ser ressaltada, que guarda forte relação conosco, é que a chegada ao governo se deu num período de profunda crise das formulações e paradigmas dos preceitos neoliberais também em âmbito local.
A outra é que no governo a FA conseguiu produzir políticas públicas concretas e alternativas ao modelo anterior. Com muita sensibilidade social e, sobretudo, ancoradas numa espécie de reserva ético-moral, sempre muito bem conservada e salientada pela esquerda uruguaya.
Nos seus programas e ações a preocupação social é uma constante, que já começam explicitar o enfrentamento as desigualdades e ter como resultados os movimentos inclusivos, tanto social como no campo do desenvolvimento. A sociedade reconhece que o maior impacto, até agora produzido, se deve à ampliação dos investimentos sociais, já incidindo num traço histórico e estrutural deste país que é a pobreza, reduzindo-a de modo evidente nos últimos anos. Resultado também decorrente da reativação da economia, da queda do desemprego e de uma política firme de transferência de renda aos mais pobres, induzida pelo Estado.
Outra variável importante, evidentemente aliada à sensibilidade social, foi sua combinação com o que se poderia chamar de espécie de "heterodoxia" macroeconômica, o que possibilitou uma condição fiscal e econômica que o país não conhecia há muitos anos, e que serviu de base para obter reservas para investir. Associado a isto, outro elemento importante foi a ideia do resgate da soberania e de uma relação externa que fugiu de forma substancial da lógica de submissão e subordinada, desenvolvida no seu passado recente pelos governos conservadores.
Estes elementos foram decisivos para a vitória avassaladora, ainda que não tenha alcançado-a de forma definitiva no primeiro turno e seja necessário uma "segunda volta". Mas é bom lembrar que não faltaram tentativas de caracterizar como uma derrota da esquerda, o fato da FA não ter resolvido a questão neste turno inicial. Mas sobre a vitória, aliás, o próprio candidato vitorioso a presidente, José Pepe Mujica, indagou a seus correligionários e a sua gente simples, como ele mesmo chama seu povo: "¿se esto nos es triunfo, el triunfo dónde está?"
A conquista de 49,40% dos votos válidos num universo de 2,5 milhões de eleitores, deixou a Frente Ampla alguns centésimos abaixo do necessário para vencer o pleito já na primeira rodada. Mas as evidências são maiores ainda quando os números são interpretados com suas reais dimensões e alcances, para além da mera matemática.
A Frente Ampla alcançou maioria parlamentar absoluta nas duas Câmaras, de deputados e de senadores, confirmando uma expectativa de vitória espetacular na capital e na grande Montevidéo. Obteve também uma evidente supremacia no interior do país, que levou um dos principais articulistas políticos do Uruguay a sentenciar: "el interior se passo al Frente!".
O crescimento da esquerda foi de tal forma expressivo que conseguiu nos 18 departamentos do país uma diferença de mais de 20% dos votos diante do tradicional Partido Nacional, cujo candidato é o ex-presidente Luis Alberto Lacalle, que conquistou pouco mais 29% dos válidos. Isto significou um desempenho 11 vezes superior ao que havia obtido de diferença na última presidencial.
Já o outro partido tradicional, o Colorado, do candidato Pedro Bordaberry (filho do ex-ditador Juan Maria Bordaberry, que encontra-se em prisão domiciliar) logrou pouco mais de 17% dos votos válidos. De onde pode-se verificar outro extraordinário resultado da FA ao superar a soma dos votos dos dois centenários e tradicionais partidos. Este é, por sua vez, um memorável feito, que coloca os frenteamplistas diante das chances reais de tornarem, no final de novembro, a chapa José Mujica- Nelson Astori vitoriosa.
Portanto, o segundo turno que se avizinha projeta um verdadeiro plebiscito, onde seguramente estará em jogo o futuro do Uruguay, uma vez que quando ainda não estavam contabilizados todos os votos o candidato colorado já anunciava seu apoio ao blanco. Numa clara comprovação de que está em curso um grande acordo direitista-conservador para barrar a tendência a dar continuidade ao projeto de mudanças porque passa o país desde 2005.
Cabe registrar, também, que realizaram-se junto com as eleições, duas consultas plebicitárias. Por maioria apertada, uma delas manteve a anistia aos que violaram os direitos humanos na época da ditadura, frustrando as expectativas e um forte sentimento humanista que faz parte da cultura do país. A outra, de forma mais folgada, mas de maneira incompreensível, rejeitou o voto por carta dos uruguayos moradores no exterior.
Depois de mais de um século e meio de predomínio político dos "fortes e quase imbatíveis" partidos tradicionais, que sempre se disseram formadores da gênese e da identidade da chamada banda oriental; o que se está assistindo nos últimos anos, como ficou demonstrado nesta contenda recente, é o crescimento e a consolidação de um grande movimento social e econômico, rural e urbano no país, de mudanças e transformações. Que teve como ponto de partida aquela inesquecível e grande jornada cívica que deu início nos anos 70, numa clara premonição à ditadura que se prenunciava, combatida pela via democrática com a criação à época da Frente Ampla. Que agora se expressa numa proposta de fazer avançar as mudanças, não apenas com meros compromissos eleitorais, mas com algo que tem sido demonstrado de forma clara e objetiva pelo atual governo, que oferece ao seu povo um novo rumo e um sentido estratégico de novo tipo ao projeto nacional.
Hoje o frenteamplismo não é mais somente aquele referencial inicial de um generoso e humanista movimento de resistência democrática ao regime arbitrário que governou o país. Já se alçou também à condição de uma alternativa de ideias e de políticas de gestão, superadoras do fracassado modelo neoliberal, na sua lógica meramente desconstituidora das funções públicas do Estado. Aliás, muito bem expressas nesta eleição pelo binômio tradicional, autoritário e "renovador", de corte completamente conservador do ponto de vista das propostas, representados por Lacalle (Nacional/Blanco) e Bordaberry (Colorado).
Talvez o ponto nodal desta grandiosa vitória e dos novos tempos que se descortinam é que este povo uruguayo, depois de um longo período, conseguiu compatibilizar a um só tempo, duas questões decisivas e imprescindíveis para a reconstrução de um projeto-nação pela via eleitoral. De um lado, construir lideranças com um perfil preparado e qualificado, respeitado pela intelectualidade, pelos setores médios e mesmo pelos adversários, como é o caso do médico oncologista Tabaré Vázquez, atual presidente. De outro, não despregar-se daquela gente simples e humilde que, de forma importante e decisiva, conferiu à FA a representação que ela tem hoje.
Sendo capaz de projetar como grande líder um dirigente político de mãos calejadas e de corpo pisoteado e perfurado nos porões da ditadura, mas que conservou e manteve na fenomenologia de sua alma, a generosidade e confiabilidade dos seus, sem deixar de dedicar-se de forma pacienciosa durante anos e anos, às mais longínquas comarcas e redutos de seus conterrâneos. Esta foi doação a seu povo nos últimos anos, deste ex-guerrilheiro tupamaro e sempre simples e sensível chacarero, conhecido por todos como Pepe Mujica.
É com este linguajar das regiões urbanas mais pobres e excluídas, que combina tão bem com aquele ambiente rural que descreve e vive no seu cotidiano, que se legitima este atual e já lendário líder, de trabalho incansável e de compromissos inarredáveis com a melhora da vida dos seus e com o frenteamplismo.
E foi neste contexto e em meio a tudo isto, que nos foi permitido nos últimos dias que antecederam ao pleito, na periferia de Montevideo, visitando bairros populares, ouvir do cidadão mais simples, de seus vizinhos e mesmo de seus filhos pobres com um laptop na mão, resultante das políticas de educação com inclusão social e digital do governo, dizerem em alto e bom tom: "yo y mi gente votamos por el Frente! ".
*Professor, engenheiro e dep. estadual PT/RS – outubro/2009
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