Uma ponte para o caos
Pesquisador no Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT) e professor titular no Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o economista gaúcho Marcio Pochmann é referência em estudos acadêmicos sobre trabalho. Nos governos petistas, entre 2007 e 2012, foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Pochman, que foi secretário municipal de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade na cidade de São Paulo entre 2001 e 2004, acompanha de forma crítica o conjunto de políticas colocadas em curso pelo governo do peemedebista Michel Temer, intitulado "Ponte para o futuro". Ele conversou com o Extra Classe durante sua participação no Fórum Grandes Debates, promovido pela Assembleia Legislativa no início deste mês de agosto, e expôs suas considerações a respeito da situação do país e projetou cenários para 2017 e 2018: "aqui as mudanças estruturais resultam da possibilidade do caos".
Extra Classe – O país passa por um período longo de crise, com escândalos diários na política e uma economia que não consegue se levantar. É possível projetar um cenário otimista no curto prazo?
Marcio Pochmann – O Brasil está tendo uma grande oportunidade para enfrentar a crise na qual se encontra. Ela permitirá organizar o país para as próximas décadas, inclusive do ponto de vista internacional.
EC – O quadro atual permite vislumbrar oportunidades?
Pochmann – O Brasil é um país que faz mudanças estruturais em determinadas circunstâncias, diferentemente de outros países, onde foram mudanças tecnológicas que implicaram alterações na sociedade, na economia e na política. No caso brasileiro, não tivemos mudanças técnicas que justificaram alterações estruturais. Aqui as mudanças estruturais resultam da possibilidade do caos. Tivemos dois períodos comparáveis ao que vivemos hoje, quando o Brasil brincou com o caos. Na década de 1880 e na década de 1930. São dois períodos excepcionais do ponto de vista de mudanças estruturais no Brasil.
EC – Por quê?
Pochmann – Porque, no primeiro, a transição da sociedade escravista para a sociedade capitalista se deu justamente ante a ameaça do caos instalado com o esgotamento da monarquia e com a incapacidade da antiga elite político-econômica de conduzir o Brasil. E, na década de 1930, houve uma substancial mudança na passagem de uma sociedade agrária para uma sociedade urbana e industrial. Ela foi permeada de uma crise profunda em função do caos decorrente da depressão de 1929, dos conflitos da Revolução de 30, da contrarrevolução de 32, enfim, de uma sucessão de situações em que o Brasil quase mergulhou em uma guerra civil. Hoje, guardadas as devidas proporções, vivemos uma situação semelhante. Tínhamos o encaminhamento de um projeto que, a partir dos anos 2000, se organizava do ponto de vista democrático. Esse projeto foi interrompido e se constituiu uma resposta, como se estivéssemos em 1932. Uma reação a uma perspectiva apresentada pelo projeto anterior. Os sinais de caos são cada vez mais evidentes: desconstituição dos valores democráticos, descrédito da política e dos políticos, ineficiência da perspectiva exclusiva do curto prazo.
EC – E as oportunidades?
Pochmann – Vivemos uma grande oportunidade do ponto de vista mundial devido ao esvaziamento da unipolaridade dos Estados Unidos e da passagem para uma situação de multipolaridade. O papel da Alemanha na Europa Ocidental, da Rússia na Europa Oriental. O papel da China e da Índia na Ásia. E, neste sentido, da África do Sul e do Brasil. É um mundo com possibilidades multilaterais.
EC – O atual governo justifica parte de suas ações com o argumento da importância de parcerias e investimentos internacionais, sob um outro viés, contudo. As oportunidades das quais o senhor fala passam pela troca de governo?
Pochmann – O governo atual é um instrumento de execução de um projeto diferente do anterior. De uma maioria diferente. Mudar o governo por mudar não é suficiente se isto não for acompanhado de uma nova maioria política e de outro projeto. Porque este governo pode ser sucedido por um outro na mesma linha. Por exemplo, tirar Michel Temer e colocar Rodrigo Maia. Ou parlamentarismo em 2018. Mudanças de governo que não alterariam necessariamente o projeto posto em curso.
EC – A população como um todo compreende esta alteração de projetos?
Pochmann – O fato concreto é que situação e oposição fazem uma disputa muito grande de uma parcela muito pequena da população. Há um acirramento, uma situação de polarização intensa em segmentos esclarecidos, digamos assim, da população brasileira. Talvez em torno de 20% da população viva um quadro de polarização em função do que era executado anteriormente e do que é hoje. Agora, o grosso da sociedade praticamente está de fora, não participa, não se posiciona, até porque não compreende muito bem o que ocorre até o presente momento, está exposto a um bombardeio de informações que não o ajudam a compreender o quadro. E isto leva ao seu afastamento da disputa.
EC – Objetivamente, quais as principais diferenças entre os dois projetos em disputa?
Pochmann – O que vivemos agora é mais um movimento para que o Brasil volte a sua normalidade histórica. Esta normalidade se caracteriza pela ausência de democracia; por um país economicamente dependente do exterior, especialmente do comércio externo; e no qual os pobres não cabem no orçamento, não cabem no Estado. Se olharmos os 500 anos do Brasil, essa é sua normalidade, sua trajetória. O projeto que o governo Temer sustenta é o de voltar à normalidade histórica. A questão é saber se o Brasil tem maturidade suficiente para não aceitar isso. Eu, sinceramente, não acredito em saídas tradicionais. Tenho dificuldade de entender que o Brasil vai se resolver do ponto de vista eleitoral. Portanto, acredito que a situação deve piorar ainda mais. E que, quanto mais aumenta o risco de caos, maior é a possibilidade de alteração estrutural. Resta saber se os progressistas, a esquerda e etc. têm bala na agulha para resistir a este momento. Se não vão se entregar, se fragmentar e se inviabilizar. Na década de 1930, a situação era muito mais grave do que a atual.
EC – Sob este ponto de vista, a impressão é de que o país anda em círculos.
Pochmann – É preciso entender a natureza do Brasil. Na verdade cometemos (os governos petistas) um grave equívoco. Acreditamos que o ciclo da Nova República tinha nos levado a um país republicano, com instituições democráticas sólidas. E o Brasil não é isso. O Brasil, por exemplo, não tem elites. Ele tem ricos, o que é um pouco diferente. Ricos não são necessariamente uma elite que pensa o país. O movimento de dar civilidade ao capitalismo brasileiro começou na Nova República, especialmente a partir da Constituição de 1988, que é um marco. E o país fez isto em um momento em que havia um retrocesso no mundo. A singularidade é que o Brasil aumentou seu gasto social quando a economia brasileira não crescia. O gasto social passou de 13% do PIB em 1985 para 23% do PIB em 2014. Não é qualquer país que faz isso. Muito menos enfrentando o mundo todo, que apostava na coisa neoliberal. Dentro de todo este quadro, é preciso entender também como o outro projeto demorou tanto tempo para tentar voltar à 'normalidade'. Porque eles também enfrentam dificuldades. Eles não são um bloco monolítico.
EC – Quando o senhor diz eles, se refere a quem?
Pochmann – Eles têm unidade no projeto, mas estão divididos do ponto de vista de quem executa. Uma parte dos que querem o projeto acha que o Temer não está jogando bem, deseja substituí-lo. E há quem diga: não, vamos de Temer mesmo. São três forças que sustentam o projeto cujo executor está sendo este governo. A primeira são os ricos financeirizados. Tínhamos uma burguesia industrial que se esfacelou com a desindustrialização. Era uma burguesia dependente, mas que possuía graus de autonomia. A burguesia mercantil atual não tem autonomia nenhuma do ponto de vista externo. Então ela é comerciante e se subordina ao interesse externo: vende recursos naturais e produtos primários ao exterior, é o que sabe fazer. Quem determina esta produção não é a vontade interna, é a vontade externa, é quem compra. Você não produz soja para o Brasil, produz para o mundo. Se o mundo comprar soja, tudo bem. Se não comprar, não há o que fazer com ela. É esta burguesia que está vendendo patrimônio público e privado. E que vende papeis, vive deles, a coisa financeira. O que alimenta parte desta burguesia mercantil é o ganho financeiro. Mas, na medida em que você começa a incorporar os pobres, aumenta a pressão pelo gasto social. E, com isso, corre o risco de espremer o ganho financeiro. Por isso ela é contra governos que desejem incorporar os pobres.
EC – Quem seriam as outras forças que sustentam o projeto neoliberal?
Pochmann – A segunda base importante são os estamentos burocráticos, as corporações: Ministério Público, delegados, Judiciário e outros. A burocracia estatal que fica nos segmentos intermediários do Estado. Não são as atividades finalísticas do Estado no geral. Quando você tem um movimento de incorporação na saúde, na educação, no transporte, na habitação, pressupõe um Estado cada vez mais finalístico. As atividades meio ficam mais comprimidas, e há uma disputa muito grande no orçamento. O estamento burocrático se vê pressionado em termos de salários e privilégios e, então, reage. Nas suas mais diferentes competências. A terceira base de sustentação é a classe média assalariada, também afetada desfavoravelmente pela desindustrialização. A desindustrialização foi inviabilizando empregos de qualidade, aqueles com os salários mais altos, não somente na indústria, mas também nos setores vinculados a ela. O dinamismo da economia basicamente no setor terciário foi tornando difícil a reprodução da classe média, a possibilidade de os filhos da classe média assalariada terem condições equivalentes a de seus pais. Ou melhores. Ao mesmo tempo, ocorreu a ascensão dos de baixo pelos programas de inclusão. Ela, a classe média assalariada, viu isso como uma ameaça, porque, se os de baixo sobem, fica mais competitivo o ingresso na universidade e em outros postos. Isso não quer dizer que a classe média é contra os pobres. Se o emprego industrial tivesse continuado a crescer e ela seguisse se reproduzindo, não haveria problema. Mas como ela também encontrou um teto para subir…
EC – Esse acirramento de posições não poderia ter sido evitado?
Pochmann – Cometemos erros. De maneira geral, táticos, não de estratégia. Do ponto de vista estratégico, diria que combinamos algo que o Brasil praticamente desconhecia: democracia, crescimento econômico e distribuição de renda. Começamos a incorporar os pobres no orçamento. Não fizemos mais porque, dada a complexidade do Brasil, para fazer mais precisaríamos ter feito algo que outros países fizeram, mas não sei qual seria a situação do Brasil em uma circunstância assim. Para fazer em países de capitalismo tardio mudanças que não passem pelo caos, é necessária uma profunda politização dos pobres, ou seja, é preciso transformar os pobres em um ator político relevante. É necessária ainda uma reforma do Estado que altere drasticamente o estamento burocrático que o dirige, ou seja, as corporações na Justiça e em setores estratégicos do Estado. Como não fizemos isso, nossa capacidade de resistência se tornou pequena. Incorporamos socialmente e economicamente os pobres, mas não pela politização. Ocorreu por meio de políticas para os pobres e não de políticas com os pobres, o que faz toda a diferença. Não tornamos a classe trabalhadora dirigente de um projeto de transformação da nação. Não porque o governo liderado pelo PT não desejasse isso. O problema é que não houve condições para que isso se realizasse. Por exemplo: em 2003 foi feito um fórum cujo objetivo era realizar uma reforma no sistema de relações do trabalho. Mudar a estrutura sindical, a forma de financiamento, representação por local de trabalho, um novo sindicalismo. Não se fez. Não houve acordo entre os trabalhadores. Os empregadores se voltaram contra, e o próprio governo não andou.
EC – O senhor disse que não vê uma saída eleitoral tradicional. Quais alternativas o senhor vislumbra?
Pochmann – Pode ser uma mudança do ponto de vista pacífico, civilizado, através de um acordo político como foi, de certa maneira, a saída da ditadura para a democracia. Ou pode ser alguma coisa como um conflito em que nenhuma das partes governa. Um governo que mesmo eleito não tem condições de governar. Por que o Temer se mantém? Porque mostra serviço. Qual serviço? Fazer as reformas. Mas, no próximo ano, vai fazer o quê? A economia dificilmente vai crescer. Então, como vai sustentar isso? Os militares já perceberam este problema. Por que eles não estão mais ativos? Porque sabem que não adianta fazer uma intervenção se não têm nada a propor do ponto de vista da materialidade. Estão aprendendo isso na prática no Rio de Janeiro.
EC – A economia não vai apresentar melhoras?
Pochmann – O governo precisa aumentar impostos, e não apenas por uma questão de financiamento, mas porque vivemos uma situação de deflação. Salvo o imposto de renda, os demais que o governo está propondo têm efeito cascata, com impacto na inflação. Combustíveis, por exemplo, é inequívoco. A inflação está próxima de ficar abaixo da banda inferior da meta. Isso jamais foi visto. Mas isso não é êxito da política monetária. Isso está acontecendo porque a economia está muito, muito frágil. As pessoas não estão consumindo. O atual governo contava com um acordo mais estreito com os Estados Unidos. Contava que teria apoio da Hillary Clinton, no sentido de relações comerciais bilaterais, e com setores externos sendo, de fato, um grande dínamo da possível recuperação brasileira, com ingresso de capital para as concessões, a infraestrutura e coisas deste tipo. Com a vitória de Donald Trump isto se tornou praticamente inviável. Tanto que a política externa brasileira é uma vergonha. Não sabem para onde ir.
EC – Pelo que o senhor projeta, as condições econômicas vão piorar, apesar do discurso otimista do governo e da queda da inflação?
Pochmann – Podemos esperar, de alguma forma, pelo esvaziamento da liderança econômica do Brasil na América do Sul. O país ficará muito dependente do setor primário-exportador e amplamente associado aos serviços, com postos ocupacionais de baixa renda e crescimento dos serviços vinculados aos ricos. O desemprego possivelmente vai diminuir com a implementação da reforma trabalhista, mas não porque ela gerará empregos e sim porque haverá uma modulação dos contratos de trabalho. O que isso significa? Que as empresas tendem a contratar por jornadas pequenas, o que faz com que as pessoas deixem de ser desempregadas, pois trabalharão três ou quatro horas na semana. Já que a metodologia oficial considera a pessoa desempregada quando ela não exerceu nenhuma atividade por mais de duas horas na semana em que foi feita a pesquisa, teremos a redução do desemprego do ponto de vista estatístico. Quanto ao consumo, não vejo de forma concreta a possibilidade de ampliação, a menos que o governo comece a usar medidas heterodoxas para poder sobreviver. Os pobres, nessas circunstâncias, sabem que o emprego deles depende dos ricos.
EC – O senhor considera a possibilidade de que não ocorram eleições em 2018?
Pochmann – Temos que nos preparar para soluções não tradicionais, não eleitorais. Não apostar tudo nas eleições. Se queremos eleições, precisamos fazer uma série de outras coisas para que elas aconteçam. Tivemos em 2014 uma parte dos partidos derrotados que não aceitaram o resultado eleitoral. Pressionaram o resultado eleitoral, e hoje são governo. Ou seja, só são governo porque não passaram pelo crivo eleitoral. Portanto, é natural que esses partidos não queiram se expor ao crivo eleitoral. Sabem que dificilmente se manterão. Se negaram a democracia em 2014, por que não a negariam em 2018. O movimento que deve ser feito é o de defesa da democracia e, simultaneamente, a organização da sociedade para resistir à tentativa de continuidade do golpe. Isso não é um processo eleitoral.
EC – Os setores que hoje são oposição parecem ter dificuldade em uma união, e não apenas em função do impeachment, mas por de fato terem posições bastante divergentes.
Pochmann – Talvez não esteja suficientemente maduro, estamos diante da possibilidade de várias candidaturas, não sei se isso vai ajudar. Mas o fato de o país ir apresentando sinais de convulsão mais profundos pode sim levar a uma unidade. Quanto à sociedade brasileira, não é verdade que seja passiva. Ela participa das instituições que a acolhem, que têm o que lhe dizer. O grosso da população não participa porque não vê nas direções a esperança de se mobilizar. Obviamente que as pessoas são pragmáticas. Incorporam-se a algo que acreditam ser viável. O que há, então, é uma falha das direções. A impressão que tenho é que a oposição está sendo conduzida pela atual situação. Ela, a situação, é quem dá as cartas.
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