Para caçar Lula, Judiciário destruiu o que havia de Constituição e Estado de Direito
Foto: Lula Marques/AGPT
Muitos de nós acreditávamos que houvesse efetivamente uma Constituição. Antes dela, houve outras, nenhuma delas nascida para ficar, mas para cumprir uma espécie de mandato-tampão, de duração indeterminada, mas, desejadamente a mais curta possível. Nos cursos de graduação em Direito, era uma matéria de segunda classe, que começava como Teoria Geral do Estadoe terminava como Direito Constitucional, um ou dois semestres, no máximo. Suas correlatas Direito Civil, Direito Penal, Processo penal e a princesa dos currículos, Processo Civil, eram muito mais atraentes e significativas. Havia umas coisas exóticas para tapar buraco, mas nunca se viu um Direito Constitucional IV, por exemplo. Os professores eram bons oradores, mas, pouquíssimos abordavam a Constituição como ente jurídico. Era um elfo. Ninguém precisava ser jurista para lecionar Direito Constitucional, bastando que fosse um liberal clássico, até porque no regime militar não havia essa preocupação.
A inflação galopou, a economia ruiu e os militares passaram o bastão, alguns de bico torcido, bem torcido para esse exotismo democrático. Nosso regime militar brincava de eleições, tinha até prefeito, vereador, salvo das cidades consideradas de segurança nacional. Nunca soube a razão, mas estenderam a impossibilidade de eleições para cidades estâncias hidrominerais e foi assim que soubemos que Araxá (MG), por exemplo, era tão vital à segurança nacional, que seu valente prefeito haveria de vir nomeado, sem os riscos do povão eleger alguém indesejável.
A chegada dos ares democráticos, consolidada, até onde víamos, pela Constituição de 1988, deu-nos a primeira crise de adolescência, uma vez que tínhamos certo que essa uma era diferente e veio pra ficar. Do direito escandinavo, importamos a figura do ombudsman, o Defensor do Povo. Na falta de um Defensor do Povo experimentado, demos essa posição ao Ministério Público e criamos um Ministério Público único no mundo, com tantas atribuições, que ele próprio demoraria anos para perceber, fosse no meio ambiente, infância e juventude, consumidor, probidade administrativa, controle externo policial, crime, enfim, onde se fosse, havia a possibilidade de se ir como promotor daquilo mesmo, fosse aquilo mesmo qualquer coisa além daquilo, enfim. Criamos um ser meio híbrido (meio híbrido é fantástico, mas tem sentido), chamado Superior Tribunal de Justiça e tornamos o Supremo o mais Supremo entre os Supremos do planeta, dando-lhe competência originária para julgar uma rempa enorme de gentes, interessadas nas prescrições sempre amigas. Em 1988, não tínhamos computador, recorte-cole, nada; tudo se fazia em fichinhas e, quando muito, em máquinas elétricas, que produziam um barulho infernal.
Uma coisa escapou aos liberais clássicos que fizeram a Constituição, talvez porque lhes parecesse impensável, impossível, ocorrer no Brasil, o país mais estamentado do mundo, que alguém, saído das classes populares (sempre lembrando que o PT não assinou a Constituição, verifiquem e vejam), pudesse ser alçado à Presidência da República, local destinado aos nobres bacharéis de fina flor de estampa genética.
A possibilidade de esse evento infeliz se repetir causou um abalo sísmico e fez com que as Instituições, secularmente comandadas pela nobreza, se tornassem reativas e se dessem conta de que a única forma de dar uma lição nesse povaréu era demonstrar que tudo o que o líder popular fez, estava errado, corrompido ou não funcionaria. Suas duas eleições e mais duas de sua sucessora levaram uma espécie de demência raivosa a esses quadros persecutórios, que passaram a chamar para si a responsabilidade, meio cívica, meio restauradora dos dotes monárquicos longinquamente ameaçados, de quebrar definitivamente a corrente mais popular de acesso ao Poder.
Velhos medos, os medos de sempre, o medo do comunismo, de perder carro financiado, de nunca mais poder ir pra Miami, de não mais ter empregada doméstica, de perder a babá, o medo do medo sobre medo. Medo de tudo, de andar nas ruas, medo que faz comprar carro blindado, medo que faz sonhar em vender tudo para um grupo chinês e comprar uma mansão em Orlando, medo de ver pretos e pobres tirando as boas vagas dos filhos nas universidades, medo de não ter jamais uma varanda gourmet, medo de ter que se tratar no SUS e ser atendido por negros médicos comunistas cubanos, medos postos nas salas de jantar.
Deram o combustível do ódio para uma classe média que jamais se representou, que nunca se apresentou para um projeto de país, que sempre tentou de forma individualista obter progressos pessoais, dissociados do coletivo. Era preciso colocar um final a uma história e o surgimento da praga histórica brasileira, a corrupção, deu as condições para iniciar-se uma perseguição nunca antes vista a uma única pessoa.
Apartamento e sítio de segunda classe, presentes, mimos recebidos durante a gestão presidencial, boatos, envolvimentos jamais demonstrados de familiares em falcatruas, exposições absurdas na mídia, um juiz vingativo, tendencioso, midiático e soberbo, jovens procuradores fundamentalistas, tudo tem seu gran finale, o momento de colocar Lula no banco definitivo dos réus. O sonho mesmo seria que Juiz o prendesse, que ele saísse algemado da audiência, arrastado por policiais que haveriam de mostrar fúria e concentração às câmeras de TV.
O evisceramento nacional de Lula acontece há muito tempo e tende a continuar. Afiaram-se as adagas e as facas da intolerância para armar o Juiz, o qual em qualquer lugar civilizado do planeta estaria afastado do caso no dia mesmo que divulgou conversas – sem nada de conteúdo, mas tratadas ideologicamente pela mídia – entre o réu, Lula, e a ex-presidenta, Dilma, provocando a fúria dos furiosos. A baba de raiva escorre dos procuradores fundamentalistas que obedecem ao juiz, como pupilos dele que são.
Para o gran finale da audiência, o roteiro foi armado e a Constituição dilacerada. Teve juíza proibindo movimentos sociais de chegarem longe do Fórum, policiais militares armados até os dentes em número de guerra, suficiente para policiar Curitiba inteira por cinco anos, teve um juiz que também quis seguir seu mestre e ter um minutinho de fama na TV quando decidiu suspender, assim, do nada e sem ouvir ninguém, as atividades de um Instituto que leva o nome da presa. Temos a impressão de ver um grande circo, nos quais juízes e promotores são palhaços dançando para a mídia aplaudir e terem, enfim, um minutinho de atenção em suas existências tão débeis.
Após a audiência, irão varar horas, avançar pela madrugada, procurar jogar o réu, que estará respondendo uma saraivada de tiros, em contradição, procurando humilhá-lo e diminuí-lo, no ato, perante seus algozes. Tentarão tirar-lhe qualquer possibilidade de protagonismo e farão do bordão processual o senhor não está obrigado a responder as perguntas que lhe serão formuladas, mas devo avisá-lo que esta é sua oportunidade de apresentar a defesa pessoal em mais um momento de cinismo, porque ali não estavam para ouvi-lo, mas para sangrá-lo. Lula falou, fala e falará a lobos famintos, interessados mais em seu sangue, do que em qualquer coisa que se assemelhe a justiça tal qual sonhamos em 88.
Essa utopia de ter vivido o sonho da Constituição se esvaiu por completo quando, a fim de caçar Lula, o Judiciário promoveu uma grande marcha autoritária que só agrava a precária situação de pretos, pobres, ladrões baratos e de outros que serão ainda mais presos de baciada, para honrar os entendimentos messiânicos do Mestre Juiz Federal, voltado apenas para trucidar um brasileiro, o primeiro, depois de Zumbi, que conseguiu reinar no Brasil.
Roberto Tardelli é Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway. Procurador de Justiça do MPSP Aposentado.
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