Marco Weissheimer
Quase nove meses depois da confirmação, pelo Senado, da deposição da presidenta Dilma Rousseff, eleita em 2014 com mais de 54 milhões de votos, o Brasil convive com dois fenômenos que andam de mãos dadas: a instabilidade política, social e econômica do país se agravou e os setores que derrubaram Dilma tentam, desesperadamente, aprovar a sua agenda de reformas que retiram direitos resguardados pela Constituição de 1988 e pela CLT. A demora na aprovação dessas reformas, provocada pela crescente resistência nas ruas a elas só vai aumentando o clima de instabilidade.
O golpe contra Dilma foi dado com o objetivo central de aprovar essa agenda. Os setores que apoiaram a chegada de Michel Temer ao poder vinham tentando naturalizar o golpe consumado em 31 de agosto de 2016, mas, a incerteza quanto à aprovação de sua agenda no Congresso, acabou com a unidade entre eles. As recentes revelações da delação de Joesley Batista, dono da JBS, só agravaram esse quadro, aprofundando o grau de instabilidade política no país e de incerteza acerca do futuro do golpe que derrubou o governo Dilma.
A partir da experiência de quem viveu e enfrentou golpes no Brasil e na Argentina, Flavio Koutzii chama a atenção para as tentativas de naturalizar o que não deve ser naturalizado. Na Argentina, militou no Partido Revolucionário dos Trabalhadores – Exército Revolucionário do Povo (PRT-ERP), que pegou em armas contra a ditadura. Preso na Argentina, entre 1975 e 1979, voltou ao Brasil graças a uma campanha internacional pela sua libertação e participou da fundação da PT, partido pelo qual foi vereador, deputado estadual e chefe da Casa Civil durante o governo Olívio Dutra.
Em entrevista concedida ao Sul21, horas antes das notícias sobre a delação de Joesley virem a público, ele fala sobre a atualidade do golpe, sobre o papel desempenhado pelo Judiciário neste processo e sobre algumas lições que a luta contra as ditaduras no Brasil e na Argentina podem trazer ao presente. O golpe segue em curso e seus agentes no Parlamento, no Judiciário e na Mídia seguem mexendo as peças no tabuleiro para consumar os objetivos de sua empreitada.
O Sul21 reproduz em texto e vídeo um resumo dessa conversa.
"O golpe segue em curso, cada dia mais e cada dia pior"
O golpe segue em curso, cada dia mais e cada dia pior. Quando a Argentina enfrentou a grande crise de 2001, a escritora Silvia Bleichmar cunhou a expressão "dolor país", que se confrontava com o termo "custo país", que era o "custo Brasil" na versão argentina. Acho oportuno lembrarmos isso, pois se transportarmos essa expressão para a situação que vivemos, dá para falar na "dor país", na "dor povo". O "custo Brasil" era a síntese do ideário neoliberal da década de Fernando Henrique que procurava mostrar uma série de pontos críticos, alguns que até existiam na infraestrutura brasileira, transformando essa noção de custo Brasil em um cavalo de tróia para atacar os direitos dos trabalhadores no patamar que eles existiam na época. Como não conseguiram isso na época, deram o golpe agora. É brutalmente claro para que era o golpe. O povo brasileiro, com letra maiúscula e da forma mais substantiva é o foco deste golpe, desta destruição de direitos, na maior velocidade possível.
"É como se isso aqui fosse a Hiroshima dos direitos trabalhistas"
Se fôssemos buscar alguma analogia trágica na história, é como se isso aqui fosse a Hiroshima dos direitos trabalhistas, uma bomba para destruir tudo e para dar o exemplo, como os americanos fizeram. Gosto da metáfora porque é disso mesmo que se trata: terra arrasada. Talvez como nunca foi tão evidente que os interesses do mercado e as imposições do capital financeiro são não somente articuladores fundamentais desse golpe, como a invasão desses termos é onipresente na linguagem da Globo, da Bandeirantes, na fala de cada um desses personagens, na qual se nota uma espécie de adestramento. Todos falam igual, todos abrem as perguntas do mesmo jeito e com os mesmos tiques: "o mercado acha muito bom isso, isso aí nós vamos ver como é que o mercado se posicionará". É uma espécie de confissão permanente e onipresente de quem é quem e quem quer isso.
"Em 64, tivemos o Fleury. Hoje temos um Fleury de toga"
Acho que cada época, como foi no golpe de 64, tem algumas figuras emblemáticas. Tragicamente, naquela época, tivemos na chefia da tortura o Fleury. Essa época agora tem um Fleury também, de toga e tudo. Não sei se isso não embaraça os seus movimentos de torturador. Essas prisões aleatórias que, na verdade, são intencionais, que não têm prazos e não respeitam nenhum dos códigos de procedimentos judiciais desse país, se assemelham claramente a uma espécie de pau de arara, sem a imagética tão clara mas é a mesma coisa. Deixar um cara seis, doze meses, sem saber o que vai acontecer, se ele vai ficar 40 anos preso, se ele vai sair ou não…São assuntos que eu conheço, não como compreensão apenas intelectual, mas vivida. Lá na Argentina era assim.
Todos os que foram presos, não me refiro aos que depois foram assassinados, os 30 mil, ficavam imediatamente, quando detidos, à disposição do poder Executivo nacional. A vivência de estar preso, em condições muito mais dramáticas, mas nós pessoas muito mais estruturadas, pois éramos presos políticos e sabíamos por que aquilo estava em curso. O que isso introjetava na vida do preso era a noção de um certo infinito. Por isso que é uma tortura mental também. Tem o pau de arara material e o pau de arara espiritual. O sujeito da punição provisória e ilegal, como era lá também, ele não sabe quando aquilo termina. A agonia permanece todo o tempo e isso, obviamente, fragiliza de tal maneira o indivíduo, seja ele um corrupto ou corruptor, um ricaço ou não. A humanidade de cada um fica colocada na mesma condição. As diferenças sociais e materiais se unificam do ponto de vista do sofrimento e das circunstâncias que o cercam.
"A banalização do golpe bateu no teto"
Há muito mais vigor na resposta da sociedade do que percebíamos há algum tempo. Quanto mais dura a situação fica, mais a resistência aumenta, o que não é algo automático. É tão profundo o tema da destruição de direitos que, cada vez mais, aumenta a base social dos indignados e dos que não aceitam. A banalização do golpe está batendo no seu teto à força de repetição, de dor e de sofrimento. O ritmo da ofensiva é tal que ele chega não somente a perturbar aquele que tem acesso a essas informações, como gera certa dificuldade de articular devidamente a interpretação dos fatos, mesmo para quem tem uma posição crítica.
Tem muita gente que acha que tudo isso vai passar e não ficará uma memória sobre cada um se comportou neste período. Há uma diferença entre os que ficaram calados porque estavam de acordo, os que ficaram calados por uma certa impotência e os poucos corajosos que tiveram a capacidade de se manifestar criticamente ao que está acontecendo, a partir da instituição a qual pertencem. A documentação, a imagem, a fala, em cada circunstância destas, serão um arquivo impossível de destruir e de tergiversar. Muitas togas foram conspurcadas pelo silêncio ou pela corresponsabilidade. Isso é uma tragédia, pois o Judiciário e suas diferentes instâncias constituem elementos insubstituíveis de uma sociedade democrática e de um sistema de proteção mínima da cidadania que está sendo desmontado de uma forma infame.
"O Supremo virou uma coisa deprimente"
Além disso, os chefes de cada um desses subpoderes se comportam como partidos. Essa crise está correspondendo a uma ocupação do espaço político pela Polícia Federal, pelo Ministério Público Federal, pelo Supremo e pelos tribunais regionais, o que é trágico. A destruição da esfera política traz junto uma aberração que é o hiperdimensionamento dessas instituições. Serão lembrados. Isso não é uma ameaça, mas uma afirmação. Quem sou eu para ameaçar alguém, mas é disso que se trata. Não como é em 64, quando se dizia que alguns setores econômicos estavam apoiando o golpe. Agora esse apoio é maciço nestas instituições e ninguém, com algumas honrosas exceções, levanta a voz para contestar. O Supremo virou uma coisa deprimente. Não é nenhum prazer dizer que eles são muito mais lamentáveis do que parecia antes. Isso é uma tragédia para a sociedade brasileira. O que parece apenas são alguns egos monumentais numa disputa mortal pelo poder.
"É muito pior que 64"
Eu não faço tanto essa analogia porque acho que é muito pior. A resistência aumentou, mas a velocidade do aumento da reação é muito acelerada e tem uma característica clássica desse tipo de guerra, pois se trata de uma guerra contra o povo brasileiro e contra a democracia. A velocidade é muito pior e, portanto, a evidência de regressão é muito mais trágica. A resistência aumenta de escala também. É isso que nos dá conforto. A expansão horizontal total das medidas anti-povo provoca uma sensibilização que vai no sentido inverso da banalização do sofrimento. A cada dia tem um sofrimento a mais. Quando há esse tipo de materialização na vida das pessoas, esse elemento é muito potente.
"Temer, Sartori e Marchezan são vinho da mesma pipa"
O que está consolidado através do golpe e do padrão de política do governo golpista, na forma, por exemplo, como se conduz o governo Sartori aqui no Estado, ou como Marchezan se conduz na Prefeitura é que, independente de características pessoais ou nuances partidárias, são todos vinho da mesma pipa, são todos filhos da proposta neoliberal. A primeira coisa que eles fazem, como dizia meu pai, é passar a propriedade do Estado nos cobres. É exatamente isso. Não há nenhuma sutileza.
Eles se desresponsabilizam pelas políticas de impacto social sob o pretexto de que há uma grande dívida, uma grande dificuldade financeira, que todo mundo sabia que existia. Por isso, sempre evoco os governos Olívio e Tarso como exemplo de como governar. As pessoas da classe média que têm ódio do PT, não sei como se sentem recebendo seu salário parcelado todos os meses. É tão brutal o racismo anti-povo e anti-progressismo desses setores sociais que não conseguem nem privilegiar um pouco os seus próprios interesses em detrimento de sua guerra de extermínio anti-Lula, anti-PT e, como se vê agora, contra qualquer lei de proteção de direitos sociais.
Toda a tentativa de destruir, anular ou impedir Lula de ser candidato em 2018 está fadada ao fracasso, não por nenhum ôba-ôba ou porque eu confunda meu desejo com a realidade. Quero invocar aqui a minha vivência na Argentina. Ninguém consegue fazer política na Argentina sem o peronismo. O próprio kirchnerismo, com toda a potência que adquiriu, nunca rompeu nem antagonizou com o peronismo. O enraizamento de Perón como um símbolo, não só de resistência, mas de alguém que foi oprimido pela direita oligarca ultra-conservadora da Argentina, acabou tendo um percurso no qual, quanto mais batiam nele, mais ele se consolidava.
Uma analogia entre Lula e Perón
Vejo uma certa analogia relativa com o caso de Lula. A sua trajetória é tão potente e tão coroada com coisas que reverteram para a população, que não tem como esquecer o Lula. Mesmo que, como ocorreu com Perón, ele seja proscrito, quanto mais ele prosseguir sendo o símbolo do que a direita quer apagar do mapa, mais ele se afirma. É essa a situação que nós vivemos no presente e vimos semana passada em Curitiba, onde Lula deu um vareio em Moro. A estatura de um e de outro ficou clara.
Eu pertenço a uma geração onde nos dividíamos a cada vírgula onde tivéssemos uma diferença. Nós abrimos o enfrentamento contra a ditadura militar, com dezesseis pequenas organizações, todas aderindo à luta armada e querendo enfrentar um exército de 600 mil homens. É impossível sair de uma crise e de uma derrota como a que tivemos sem exigir de todos nós capacidade crítica, capacidade de avaliação profunda. O que não podemos é nos estilhaçar em diferenças e ênfases sem nos darmos conta, e certamente nos daremos desta vez, de lições históricas sobre quando nos dividimos demais em proporção ao inimigo. No período que vamos enfrentar, devemos buscar unificar nossas forças o máximo possível, com capacidade de concessão recíproca em nome dessa unidade. A questão da candidatura Lula é crucial em vários patamares. É impensável conceber o futuro, com todas as idas e vindas que possam ocorrer, sem a figura central de Lula.
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