Para entender o julgamento do "mensalão"
É preciso uma boa acuidade visual para enxergar, por trás dessa fachada brilhante, um segundo nível de poder, que na realidade quase sempre suplanta o primeiro. É o grupo formado pelo grande empresariado: financeiro, industrial, comercial, de serviços e do agronegócio
15/10/2012
Fábio Konder Comparato
Ao se encerrar o processo penal de maior            repercussão pública dos últimos anos, é preciso dele tirar as            necessárias conclusões ético-políticas.
            
            Comecemos por focalizar aquilo que representa o nervo central            da vida humana em sociedade, ou seja, o poder.
            
            No Brasil, a esfera do poder sempre se apresentou dividida em            dois níveis, um oficial e outro não-oficial, sendo o último            encoberto pelo primeiro.
            
            O nível oficial de poder aparece com destaque, e é exibido a            todos como prova de nosso avanço político. A Constituição, por            exemplo, declara solenemente que todo poder emana do povo.            Quem meditar, porém, nem que seja um instante, sobre a            realidade brasileira, percebe claramente que o povo é, e            sempre foi, mero figurante no teatro político. 
            
            Ainda no escalão oficial, e com grande visibilidade, atuam os            órgãos clássicos do Estado: o Executivo, o Legislativo, o            Judiciário e outros órgãos auxiliares. Finalmente, completando            esse nível oficial de poder e com a mesma visibilidade, há o            conjunto de todos aqueles que militam nos partidos políticos.
            
            Para a opinião pública e os observadores menos atentos, todo o            poder político concentra-se aí.
            
            É preciso uma boa acuidade visual para enxergar, por trás            dessa fachada brilhante, um segundo nível de poder, que na            realidade quase sempre suplanta o primeiro. É o grupo formado            pelo grande empresariado: financeiro, industrial, comercial,            de serviços e do agronegócio.
            
            No exercício desse poder dominante (embora sempre oculto), o            grande empresariado conta com alguns aliados históricos, como            a corporação militar e a classe média superior. Esta, aliás,            tem cada vez mais sua visão de mundo moldada pela televisão, o            rádio e a grande imprensa, os quais estão, desde há muito, sob            o controle de um oligopólio empresarial. Ora, a opinião –            autêntica ou fabricada – da classe média conservadora sempre            influenciou poderosamente a mentalidade da grande maioria dos            membros do nosso Poder Judiciário.
            
            Tentemos, agora, compreender o rumoroso caso do “mensalão”.
            
            Ele nasceu, alimentou-se e chegou ao auge exclusivamente no            nível do poder político oficial. A maioria absoluta dos réus            integrava o mesmo partido político; por sinal, aquele que está            no poder federal há quase dez anos. Esse partido surgiu, e            permaneceu durante alguns poucos anos, como uma agremiação            política de defesa dos trabalhadores contra o empresariado.            Depois, em grande parte por iniciativa e sob a direção de José            Dirceu, foi aos poucos procurando amancebar-se com os homens            de negócio.
            
            Os grandes empresários permaneceram aparentemente alheios ao            debate do “mensalão”, embora fazendo força nos bastidores para            uma condenação exemplar de todos os acusados. Essa manobra            tática, como em tantas outras ocasiões, teve por objetivo            desviar a atenção geral sobre a Grande Corrupção da máquina            estatal, por eles, empresários, mantida constantemente            ematividade magistralmente desde Pedro Álvares Cabral.
            
            Quanto à classe média conservadora, cujas opiniões influenciam            grandemente os magistrados, não foi preciso grande esforço dos            meios de comunicação de massa para nela suscitar a fúria            punitiva dos políticos corruptos,  e para saudar o relator do            processo do “mensalão” como heróinacional. É que os            integrantes dessa classe, muito embora nem sempre procedam de            modo honesto em suas relações com as autoridades – bastando            citar a compra de facilidades na obtenção de licenças de toda            sorte, com ou sem despachante; ou a não-declaração de            rendimentos ao Fisco –, sempre esteve convencida de que a            desonestidade pecuniária dos políticos é muito pior para o            povo do que a exploração empresarial dos trabalhadores e dos            consumidores.
E o Judiciário nisso tudo?
            
            Sabe-se, tradicionalmente, que nesta terra somente são            condenados os 3 Ps: pretos, pobres e prostitutas. Agora, ao            que parece, estas últimas (sobretudo na high society) passaram            a ser substituídas pelos políticos, de modo a conservar o            mesmo sistema de letra inicial.
            
            Pouco se indaga, porém, sobre a razão pela qual um “mensalão”            anterior ao do PT, e que serviu de inspiração para este,            orquestrado em outro partido político (por coincidência, seu            atual opositor ferrenho), ainda não tenha sido julgado, nem            parece que irá sê-lo às vésperas das próximas eleições. Da            mesma forma, não causou comoção, à época, o fato de que o            ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tivesse sido            publicamente acusado de haver comprado a aprovação da sua            reeleição no Congresso por emenda constitucional, e a digna            Procuradoria-Geral da República permanecesse muda e queda.
            
            Tampouco houve o menor esboço de revolta popular diante da            criminosa façanha de privatização de empresas estatais, sob a            presidência de Fernando Henrique Cardoso. As poucas ações            intentadas contra esse gravíssimo atentado ao patrimônio            nacional, em particular a ação popular visando a anular a            venda da Vale do Rio Doce na bacia das almas, jamais chegaram            a ser julgadas definitivamente pelo Poder Judiciário.
            
            Mas aí vem a pergunta indiscreta: – E os grandes empresários?            Bem, estes parecem merecer especial desvelo por parte dos            magistrados. 
            
            Ainda recentemente, a condenação em primeira instância por            vários crimes econômicos de um desses privilegiados, provocou            o imediato afastamento do Chefe da Polícia Federal, e a            concessão de habeas-corpus diretamente pelo presidente do            Supremo Tribunal, saltando por cima de todas as instâncias            intermediárias.
            
            Estranho também, para dizer o mínimo, o caso do ex-presidente            Fernando Collor. Seu impeachment foi decidido por “atentado à            dignidade do cargo” (entenda-se, a organização de uma empresa            de corrupção pelo seu fac-totum, Paulo Cezar Farias). Alguns            “contribuintes” para a caixinha presidencial, entrevistados na            televisão, declararam candidamente terem sido constrangidos a            pagar, para obter decisões governamentais que estimavam            lícitas, em seu favor. E o Supremo Tribunal Federal, aí sim,            chamado a decidir, não vislumbrou crime algum no episódio.
            
            Vou mais além. Alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal,            ao votarem no processo do “mensalão”, declararam que os crimes            aí denunciados eram “gravíssimos”. Ora, os mesmos Ministros            que assim se pronunciaram, chamados a votar no processo da lei            de anistia, não consideraram como dotados da mesma gravidade            os crimes de terrorismo praticados pelos agentes da repressão,            durante o regime empresarial-militar: a saber, a sistemática            tortura de presos políticos, muitas vezes até à morte, ou a            execução sumária de opositores ao regime, com o            esquartejamento e a ocultação dos cadáveres.
            
            Com efeito, ao julgar em abril de 2010 a ação intentada pelo            Conselho Federal da OAB, para que fosse reinterpretada, à luz            da nova Constituição e do sistema internacional de direitos            humanos, a lei de anistia de 1979, o mesmo Supremo Tribunal,            por ampla maioria, decidiu que fora válido aquele apagamento            dos crimes de terrorismo de Estado, estabelecido como condição            para que a corporação militar abrisse mão do poder supremo. O            severíssimo relator do “mensalão”, alegando doença, não            compareceu às duas sessões de julgamento. 
            
            Pois bem, foi preciso, para vergonha nossa, que alguns meses            depois a Corte Interamericana de Direitos Humanos reabrisse a            discussão sobre a matéria, e julgasse insustentável essa            decisão do nosso mais alto tribunal.
            
            Na verdade, o que poucos entendem – mesmo no meio jurídico – é            que o julgamento de casos com importante componente político            ou religioso não se faz por meio do puro silogismo jurídico            tradicional: a interpretação das normas jurídicas pertinentes            ao caso, como premissa maior; o exame dos fatos, como premissa            menor, seguindo logicamente a conclusão.
            
            O procedimento mental costuma ser bem outro. De imediato, em            casos que tais, salvo raras e honrosas exceções, os juízes            fazem interiormente um pré-julgamento, em função de sua            mentalidade própria ou visão de mundo; vale dizer, de suas            preferências valorativas, crenças, opiniões, ou até mesmo            preconceitos. É só num segundo momento, por razões de            protocolo, que entra em jogo o raciocínio jurídico-formal. E            aí, quando se trata de um colegiado julgador, a discussão do            caso pelos seus integrantes costuma assumir toda a confusão de            um diálogo de surdos.
            
            Foi o que sucedeu no julgamento do “mensalão”.
Fábio Konder Comparato é jurista e professor emérito da Faculdade de Direito da USP.
http://www.brasildefato.com.br/node/10895

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