Indígenas à beira do caminho
Entre cercas e estradas, comunidades encontram-se dispersas no Rio Grane do Sul sem direito ao território
18/10/2012
Renato Santana
de Santa Maria (RS)
Crianças brincam em acampamento localizado ao lado de rodovia - Fotos: Renato Santana |
Quando chegaram, acossados pela sanha colonizadora, espanhóis e portugueses tomaram apenas alguns cômodos da casa, sendo bem recebidos pelos moradores. Em poucos anos reduziram os habitantes originais ao pedaço mais esquivo da casa, rumo à sarjeta. Expulsos depois de intensa resistência e mortes, os moradores, porém, jamais abandonaram o próprio lar, o qual abrange hoje o estado do Rio Grande do Sul, além de Argentina, Uruguai e Paraguai; tampouco deixaram de compartilhar com os invasores aquilo que eles, indígenas de povos resistentes e extintos, nunca consideraram propriedade particular, mas bem coletivo; a terra, espaço físico e simbólico
Por essas terras ou em parte delas os Guarani e Kaingang passaram a vagar – não mais morar – pelos séculos que se seguiram aos primeiros 200 anos de colonização – entre 1626 e 1827, período em que só a população Guarani dos chamados Sete Povos foi dizimada: de 100 mil indivíduos permaneceram apenas 1.874. Vagaram e vagam, e assim nunca saíram de perto das áreas que hoje reivindicam; estratégia de resistência silenciosa e paciente como se dissessem aos que passam pelos acampamentos de lona preta, onde vivem às margens das rodovias federais e estaduais: “Essa terra tem dono!”. Se por um lado os indígenas sofreram o esbulho enquanto partilhavam, por outro passaram a resistir e reivindicar ao menos um pouco de partilha de quem os roubou.
Sepé Tiaraju, cacique de São Miguel, um dos Sete Povos missioneiros criados a partir das chamadas Reduções Jesuítas do século 17 e das guerras contra os bandeirantes paulistas, foi quem primeiro gritou: “Essa terra tem dono!”. Morreu combatendo espanhóis e portugueses que foram cumprir uma cláusula do Tratado de Madrid, assinado pelas coroas de Espanha e Portugal, com as bênçãos da Santa Sé: os povos deveriam sair de suas terras, ou seja, a casa deveria ser tomada por completo pelos colonizadores.
Antes da colonização, viviam no estado do Rio Grande do Sul 23 povos indígenas totalizando centenas de milhares de indivíduos. Hoje em dia são 36 mil indígenas organizados em três etnias: Guarani, Kaingang e Charrua.
A tragédia Guarani foi o prenúncio de outros extermínios, caso dos Charrua, Minuano (povo extinto) e, por fim, dos Kaingang. Porém, não se trata apenas de episódios ocorridos há 200, 300 anos: durante o século 20, as comunidades continuaram sendo expulsas dos territórios remanescentes. O resultado de tamanha violência, não retratado nos livros de história, está em acampamentos dispersos por todo o estado do Rio Grande do Sul. Às margens das rodovias, os indígenas veem o crescimento econômico passar longe de incluí-los.
Tratados ainda como vencidos por uma guerra de extermínio incutida na dinâmica do Estado brasileiro, os povos indígenas do Rio Grande do Sul encontram suas formas próprias de vida sob lonas que congelam nas baixas temperaturas do Sul e cozinham ao calor; em pedaços de terras que ficam entre as cercas de propriedades rurais e o asfalto das rodovias. Sobrevivem da venda de artesanatos e trabalhos nas lavouras de maçã e frigoríficos, instalados sobre latifúndios muitas vezes enraizados nas terras de ocupação tradicional dos próprios indígenas.
Chamados pejorativamente de bugres, vivem há décadas contabilizando os mortos por atropelamentos e frio rigoroso. No mais completo abandono do poder público e inoperância da Fundação Nacional do Índio (Funai), as comunidades tecem a complexa teia social e cultural de seus povos com o arame farpado das cercas que os mantêm fora de suas terras. Falantes da língua tradicional guarani e kaingang, não recebem atendimento adequado da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), dependendo assim das prefeituras dos municípios onde se instalam.
Daí que surge uma das faces mais perversas da colonização intermitente: as elites políticas e agrárias regionais aproveitam as necessidades mais urgentes dos acampados não garantidas pelo governo federal, como saúde, moradia e saneamento, para a troca do território de ocupação tradicional por áreas cedidas pelos municípios, dentro das cidades, bem como a exploração de dividendos eleitorais. As estratégias de resistência e afirmação dessas comunidades atendem há décadas as experiências vividas em tal contexto.
A vida nos acampamentos
“De tanto tomar banho com o cavalo e beber a água dele, ficamos mais perto dele”. A frase do cacique Adão Silva Kairu, da aldeia indígena Kairu, município de Carazinho, permite entender o que ocorreu com os Kaingang, que expulsos de suas terras passaram a viver de forma precária, dividindo a subsistência com os animais. Ainda assim aprenderam a reconstruir e reelaborar a própria história de acordo com o jeito de ser do povo.
O acampamento da comunidade Kairu está instalado às margens da BR- 386, numa área de 1 hectare. O grupo reivindica 8 mil hectares, atualmente tomados por uma fábrica de utensílios de plástico e o cemitério da cidade de Carazinho. A Funai iniciou o processo de demarcação do território, que se encontra na fase de construção do relatório. O acampamento foi erguido há pelo menos 10 anos.
As terras da região que compreende o município de Carazinho compunham a redução jesuítica de Santa Tereza, Província das Missões, e em 1637 foi destruída pelos bandeirantes paulistas. Da mesma forma ocorreu em outras áreas e reduções no Rio Grande do Sul. O que era tomado por matas, árvores frutíferas, animais para caça e rios, além da presença dos indígenas, acabou. As terras foram transformadas em capital especulativo por meio do plantio de grãos (soja, trigo, milho), criação de gado e de grandes granjas da monocultura e da expansão imobiliária.
Mesmo com a terra destruída, os indígenas lutam de forma persistente pela ocupação dela. No acampamento Kairu, os Kaingang plantam em espaços diminutos roçados de mandioca e recebem, de forma inconstante, cestas básicas da Funai. Às margens da rodovia, armam barracas e nelas deixam os artesanatos que fazem expostos aos usuários da estrada que eventualmente se interessam. Cestos, colares, réplicas do Cará (peixe tradicional na região), arcos e flechas: materiais confeccionados ali mesmo, sob as poucas árvores que fazem sombra entre barracos de lona gasta, crianças correndo pelo curto espaço de terra e o trânsito desenfreado de carretas e carros da rodovia.
Atropelamentos
Num dos trechos da BR-285 a comunidade Kaingang da Terra Indígena Mato Castelhano não esquece o dia em que uma criança correu para o meio da estrada atrás de uma bola. Um caminhão não teve condições de parar ao avistar o jovem indígena e o matou atropelado. Desde então redes foram instaladas entre o fim do acostamento e o início do terreiro do acampamento. Hoje elas servem também para balançar os gols do futebol dos meninos.
Cacique Dorvalino também recorda a tragédia. A criança era uma de suas alunas na escola instalada no acampamento. As terras pertencem ao Departamento Nacional de Infraestrutura em Transportes (DNIT) e a Funai, conforme o cacique, não quer demarcar a totalidade do território de ocupação tradicional apontado pelo Grupo de Trabalho de identificação do órgão – que iniciou os trabalhos em 2009 e até agora não os encerrou. Nas terras dos Kaingang de Mato Castelhano, a soja é o monocultivo que faz os fazendeiros se mobilizarem para não deixar a comunidade reocupar o que nunca deixou de ser dela. “Daqui não saímos. Ninguém vai mudar a nossa ideia”, avisa cacique Dorvalino. Ele explica que vivem acampadas cerca de 45 famílias, sendo que a média é de três famílias por casa – o espaço é insuficiente para todos, apesar dos indígenas permanecerem instalados nos dois lados da estrada. As moradias são de lona e madeira e ficam sob imensos pinheiros. Em dias de aula, as professoras costumam realizar atividades com alunos e alunas ao ar livre, enquanto jovens e adultos voltam de jornadas noturnas nos frigoríficos das proximidades.
Assim os acampamentos, com dinâmicas distintas, se dispersam pelas rodovias federais e estaduais. Na maioria deles a Funai iniciou o processo de demarcação das terras, porém sem finalização do procedimentos administrativos, que se arrastam por anos. Com isso, os indígenas vivem em situações de risco social. Os Guarani de Mato Preto, por exemplo, vivem acampados às margens da rodovia e em um pequeno pedaço de terra rasgado por uma linha férrea.
Uma cidade sobre a aldeia
Santa Maria está situada bem no centro do Rio Grande do Sul. Uma das maiores cidades do estado, os poucos mais de 1 milhão de habitantes convivem com a realidade latente de acampamentos indígenas, tanto dentro quanto em suas imediações. Natanael Claudino Guarani é um dos líderes do acampamento Arenal. Sete famílias viviam no local, contando com 50 indivíduos, sendo 25 crianças. Durante no ano de 2010, uma criança morreu sob o intenso frio das lonas puídas pelo tempo e pelo vento sulista.
Por decisão judicial, o poder público municipal foi obrigado, com o auxílio dos órgãos federais responsáveis, a encontrar um lugar provisório para instalar os indígenas enquanto aguardam a demarcação de suas terras – emperrada como todas as outras. “A assistência de saúde é bem precária, ruim. Temos a educação escolar indígena diferenciada e agora esperamos ter uma escola de madeira para ensinar melhor nossas crianças”, destaca Claudino. Para ele, sair do acampamento à margem da rodovia não significa a vitória definitiva, mas ao menos uma forma de proteger mais a comunidade.
Vivendo dentro da cidade, a comunidade Kaingang de Arroio Cancela acampada a poucos metros da rodoviária, no bairro Nossa Senhora de Lourdes, não parece estar tão segura. Tiros já foram disparados contra os indígenas no final de 2010. Produzindo artesanatos e ilhados entre prédios e conjuntos comerciais, a demarcação da área como terra indígena é reivindicada devido o local ser reconhecido como de tradicional passagem dos Kaingang para comércio de produtos e artesanatos.
Ampliação das rodovias
Entre plantações de arroz, cercas e a BR-290, a comunidade do acampamento de Arroio Divisa é o retrato do abandono dos órgãos federais e do governo do Rio Grande do Sul. Os Guarani Mbyá sobrevivem num pequeno pedaço de terra e bebem a água que escorre das plantações de arroz, tomadas por sujeiras e agrotóxico. Parte de suas moradias fica na tubulação do arroio que passa embaixo da estrada. Para completar a situação, o DNIT pretende ampliar a BR-290 e os indígenas correm o risco de serem desalojados das margens da estrada. Como deverá ser uma vida à margem da margem?
Originalmente publicado no Jornal Porantim
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