Escrito por Rodrigo Mendes, colaborou Valéria Nader
05-Out-2009 - www.correiodobrasil.com.br
Um golpe de estado em um país da América Latina, região com bagagem de golpes e ditaduras, colocou Honduras na pauta do jornalismo internacional. O presidente eleito democraticamente, Manuel Zelaya, foi tirado à força do poder, com o aval de diversas instituições do país.
Roberto Micheletti foi alçado à posição de presidente. Seguiu-se intensa polêmica na interpretação da Constituição do país, onde especialistas favoráveis, contrários e também em posição de neutralidade relativamente ao golpe têm se manifestado de diferentes maneiras na análise quanto ao respaldo que as leis do país dão à deposição de Zelaya. Condenações a esse processo têm vindo, no entanto, de todas as partes do mundo e, principalmente, do povo hondurenho, que foi às ruas protestar contra o golpe e o atentado à democracia.
Por vários dias, Honduras foi o principal destaque dos noticiários. Mas a engrenagem precisa rodar, o jornalismo é um negócio como outro qualquer. Portanto, aos poucos, Honduras foi desaparecendo das principais manchetes e parecia seguir seu rumo inevitável em direção às pequenas notas de pé de página.
Tudo levava a crer que a política do fato consumado prevaleceria. Afinal, ainda que Zelaya não possa ser considerado um inimigo do império, as posições conservadoras de Micheletti, em conluio com a elite oligárquica hondurenha, são bem mais palatáveis para a maioria dos governos, em especial o dos EUA.
Porém, uma reviravolta inverteu esse curso. A diplomacia brasileira resolveu interceder de maneira mais direta em favor de Zelaya. O presidente Lula foi objetivo ao afirmar que a base mínima para uma saída para a crise em Honduras seria a volta de Zelaya ao poder. O hondurenho voltou clandestinamente ao país e se abrigou na embaixada brasileira.
Segundo o dirigente nacional da Conlutas Dirceu Travesso, que esteve em Honduras, a resposta do governo golpista foi exagerada, o que levou a um processo de agudização e radicalização dos protestos populares, em especial nas regiões mais periféricas. A crise e o desabastecimento iniciaram um processo de saques. A repressão violenta, segundo Travesso, levou até à tomada de delegacias e postos policiais pelo povo.
A reação exagerada criou condições políticas tão ruins para os golpistas que sua política teve que ser revista. Conta Dirceu Travesso que até mesmo a igreja, instituição que inicialmente deu seu apoio ao golpe, passou por uma mudança em sua postura, sinalizando uma negociação.
Esse recrudescimento de Micheletti e de seus capangas fez com que os golpistas não tivessem condições materiais para se impor a ninguém. A intervenção brasileira havia trazido com toda a força Honduras à ordem do dia. Não há mais condições para a política do fato consumado.
Dirceu Travesso afirma que é preciso defender a embaixada brasileira em Tegucigalpa, mas alerta quanto a que a postura brasileira se manteve "muito tímida". Ele entende que, "pela dimensão da situação, já deveria ter sido iniciado um boicote econômico, político", e que, se os presidentes de perfil mais próximo como Hugo Chávez, Evo Morales, Daniel Noriega e outros tivessem formado uma frente, de início, contra esse processo, os golpistas já teriam sido derrotados.
De qualquer forma, a política de Micheleetti mostrou ser um tiro no pé, pois fez crescer ainda mais seu isolamento, como explica brilhantemente artigo de Atilio Boron neste Correio. Em posição cada vez mais frágil, Micheletti se enfraquece e Zelaya se revigora.
A cobertura da mídia
Os méritos da diplomacia brasileira, porém, não se refletem na cobertura que a mídia faz dos eventos recentes. Não que seja papel do jornalismo assumir uma postura ufanista ou triunfalista, exaltando os feitos de um governo.
O problema é a cobertura da maioria dos veículos de comunicação prestar muito mais atenção a aspectos laterais do processo do que ao quadro geral. O comportamento de Zelaya dentro da embaixada brasileira passou a ser muito mais importante – não só para a mídia, mas para o campo demotucano dos políticos brasileiros – do que a resolução da crise em si.
Os jornais de maior circulação têm diversos artigos e matérias comentando e relatando a inadequação do "hóspede" da embaixada, ao se comportar como um "agitador" de seu próprio povo. É preciso garimpar para se achar algumas linhas sobre o andamento político de fato da situação de Honduras.
Dirceu Travesso condenou essa postura. Segundo ele, a mídia tem tratado o tema de forma grosseira, caricaturizando Honduras, até mesmo com fortes tons de preconceito.
Diante da percepção de eventuais prejuízos à sua imagem em face do escancaramento dessa postura, vários dos maiores veículos de comunicação, em especial a Globo, deram uma guinada em sua linha editorial nos últimos dias. O governo de Micheletti, antes chamado de "golpista", passou a ser chamado de "interino".
De novo a Ditabranda
Em editorial do dia 29 de setembro, a Folha de S. Paulo afirma que Zelaya "abusa" da hospitalidade diplomática brasileira. Na seqüência, aponta uma posição "estranha" do Brasil ao negociar diplomaticamente com Cuba, Irã, Venezuela, Zimbábue, Líbia, e se recusar a negociar com o golpista Micheletti – este último, segundo o editorial, de "categoria bem mais tênue de ilegitimidade democrática".
No mesmo dia, em sua coluna televisiva na Rede Globo, Arnaldo Jabor, não sem antes frisar que Zelaya não poderia ter sido deposto, questiona se ele é de fato um democrata. Condena Zelaya por contar com o apoio dos governos de Venezuela e Nicarágua. Jabor afirma ainda que ele não foi deposto pelo "velho golpe dos latinos, porrada e fuzis", mas sim por uma decisão da Suprema Corte, com apoio da Igreja e de grande parte do congresso hondurenho. Sendo assim, Jabor qualifica o golpe sofrido por Zelaya de "democrático", pois viria em oposição às "democracias brancas" que estão surgindo, como a da Venezuela.
Dirceu Travesso afirma que a política prioritária do imperialismo dos Estados Unidos não é mais a da intervenção, como aconteceu
Ainda que a intervenção direta não seja mais a linha prioritária da política externa norte-americana, pelo menos na América Latina, quando um governo agrada mais aos EUA e às elites, é ainda pintado como " mais democrático " – aos observadores atentos não pairam dúvidas nessa percepção. Trata-se daquela "democracia" que, obviamente, mais convém aos interesses daqueles aos quais não interessa que se mexa nas estruturas políticas e econômicas secularmente montadas para lhes servir, e que contam com os fortíssimos aparatos midiáticos para ecoarem suas posições.
No caso, a "democracia" do golpe de Micheletti é mais interessante do que a democracia de uma eleição direta de alguém que potencialmente pode ser "menos amigo", como Zelaya. Logo, melhor focar nas minúcias sobre o suposto mau comportamento de Zelaya e sobre os elementos atenuantes do golpe de Micheletti do que centrar o debate no fato de que, após anos, houve novamente um golpe militar em um país latino. E que esse pode não ser o último golpe.
Rodrigo Mendes é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
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