Outras "ideologias": para além da discussão sobre relações e ideologia de gênero
Pedrinho A. Guareschi*
Estava resistindo em comentar esse tema. Faço com cuidado, sei que há visões diferentes, mas talvez - quem sabe? - essas reflexões que tento partilhar, poderão ajudar a ver essas questões com mais clareza. Acredito que é principalmente através do diálogo, onde todos possam falar em pé de igualdade, que será possível estabelecer uma "instância possível do dever ser", uma instância ética e crítica.
Escrevo isso também pressionado por alguns/mas colegas que estão um tanto "apavorados/as" com o que estão vendo e ouvindo, a partir principalmente de determinadas igrejas. Eles/as me questionaram: não vai comentar nada? É também por amizade e respeito aos colegas que me animo a refletir. E um pouco também devido à histeria que pude ouvir e ler das discussões na Assembleia Legislativa do RS.
Faz ao menos 40 anos que esse tema me interessa. E não só a questão do gênero, mas principalmente a questão da ideologia. Agora, quando se junta ideologia e gênero, o problema se multiplica. Há inúmeros grupos e linhas de pesquisa, nos programas de pós-graduação de todo o Brasil, que discutem "relações de gênero". Engraçado que apenas agora essa questão tenha vindo à tona. Só esse fato – de isso só estar sendo questionado agora – já me deixa pensando. Que há por detrás disso? O que há aqui além das relações de gênero? Vou dizer o que penso, com cuidado e humildade, sabendo que há inúmeras outras visões.
De tudo o que pude ler e ouvir nesses mais de 40 anos, sempre entendi que a discussão sobre "gênero" está ligada à questão do melhor entendimento de quem é o ser humano, por um lado; e à questão da ideologia, por outro lado, que – ao menos em minhas investigações e análises – está ligada à ética. Discuto esses dois pontos e arrisco uns comentários.
Quem é o Ser Humano
Quero deixar claro que meu enfoque de análise é a partir da psicologia social, que compreende tanto contribuições da sociologia, como da psicologia. A reflexão sobre essa relação entre a pessoa (entendo pessoa como relação, na visão de Agostinho de Hipona) e sociedade, procura, entre outras coisas, compreender como nós nos construímos. E a partir de incontáveis investigações e análises, grande parte dos analistas chegam a afirmar que nossa subjetividade se constrói a partir de milhares, milhões, de relações que estabelecemos com os outros seres humanos, com o mundo, com as coisas. O ser humano, entendido como um todo, é mais que seu corpo, sua dimensão biológica, anatômica. Ele é muito mais, repito, para quem o tenta compreender a partir da psicologia social. Ele tem uma dimensão material, biológica, mas ele é – alguns chegam a dizer principalmente – um ser social. E a isso se costuma chamar de subjetividade: a soma total de suas relações. Não se nega sua singularidade: somos seres únicos, irrepetíveis. Mas nossa subjetividade é uma colcha de retalhos construída desde o momento em que estabelecemos a primeira relação (Discuto isso com mais detalhes em Psicologia Social Crítica – como prática de libertação. Porto Alegre: Edipucrs, 5ª ed). Há inúmeros enfoques que abordam essa questão. O mais comum é o dos estudos sobre socialização. Ninguém cai do céu pronto e permanece a vida toda solitário. Desde o primeiro momento, ao romper o cordão umbilical, começamos a ser inseridos como singularidades misteriosas, na comunidade dos humanos. Não existem meninos-lobo. E assim nos vamos construindo.
Agora a questão do gênero. Ninguém, de posse de suas faculdades mentais, pode negar que no desenvolvimento das pessoas, elas vão sendo influenciadas por relações que são estabelecidas entre meninas e meninos, entre filhos e pais, etc. E que nessas práticas elas vão 'aprendendo' o que é ser menino/menina, homem/mulher. E mais: que essas relações que vão sendo estabelecidas carregam consigo conotações de valor que são diferenciadas: algumas dessas condutas são consideradas corretas e convenientes para os meninos, outras para as meninas. E muitas vezes essas diferenças valorativas podem levar as pessoas a se acharem inferiores, ou superiores, às outras. Nem sempre essas relações são igualitárias, exercidas de modo isento e justo. Veja as relações nas escolas, nas famílias, no trabalho. E ainda mais: hoje em dia, envolvidos como estamos com as onipresentes mídias, vê-se claramente como mulheres e homens são tratados de modo diferente. Há milhares de pesquisas que mostram isso.
Pois é disso que tratam as "relações de gênero". Na maioria absoluta dos artigos e livros que li, nas discussões de que participei, nunca encontrei um estudioso das relações de gênero que negasse que os seres humanos nascem e se apresentam como machos e fêmeas. O termo "gênero" foi criado para se poder falar das práticas e relações que vão se estabelecendo a partir dessa realidade biológica. Não consigo entender essa histeria e obsessão com o termo gênero. Ninguém tem o direito de se apossar de um termo, de um conceito, proibir que ele seja empregado e que seja discutido, como está acontecendo nessas polêmicas furiosas a respeito dos planos de educação. O termo gênero existe há pelo menos 50 anos, tem uma história consolidada na literatura, nos grupos e linhas de pesquisa, nos programas dos cursos de pós-graduação. Por que agora deve ser proibido, até mesmo ser suprimido? Durkheim, quando começou a analisar a desordem das sociedades, principalmente a francesa, depois da Revolução, não tinha palavras para designar aquele estado de coisas. Então criou o termo "anomia", que significa a confusão, a ausência de normas estabelecidas. Foi seu instrumento de trabalho. Vejo uma nítida semelhança com o conceito gênero. Era necessário um conceito que designasse aquilo que os seres humanos vão construindo, a partir de sua socialização, no que diz respeito ao fato de haver diferença de sexo. Pois gênero é esse conceito que eu uso para além do sexo: somos machos e fêmeas, mas na construção de nossa identidade social, somos femininos e masculinos. São literalmente milhares de autores que usam essa ferramenta nesse sentido. Com que direito alguém se apodera do termo e proíbe de empregá-lo?
Ideologia
Essa uma questão escorregadia. Todo mundo fala de ideologia, mas difícil, em geral, saber o que estão entendendo. Desde que me conheço por gente, presto atenção a essa questão. Tenho colecionadas mais de 60 noções de ideologia. Acho que por honestidade, quando alguém usar esse termo, deve dizer o que entende por ele. Isso vale para todos, seja quem for. De outro modo, será impossível as pessoas se entenderem.
Vou ser coerente e digo o que entendo por ideologia. Bem curto: é o uso de 'formas simbólicas' (ideias, textos, imagens, falas, etc.) para criar, ou reproduzir, relações de dominação (injustas, desiguais). É um entendimento de ideologia como algo negativo, fica claro. Sei que há outros entendimentos, como ideologia entendido no sentido positivo como uma cosmovisão, conjunto de ideias, etc. Mas quando falo ideologia aqui, é no sentido crítico e negativo.
Juntamos agora os dois pontos: por que se tornou tão importante (e urgente) discutir relações de gênero? Exatamente porque na medida em que os seres humanos – nós – fomos nos constituindo historicamente, pelo fato de sermos diferentes, isto é, machos e fêmeas, um grupo foi criando estratégias, mecanismos ideológicos, isto é, conjuntos de proposições, afirmações, legitimações, crenças e principalmente práticas que servem para uns dominarem sobre os outros. Então a questão de gênero se junta à questão da ideologia, onde ideologia passa a ter uma dimensão ética. É isso que fundamentalmente se quer investigar, refletir, discutir, quando se fala em relações de gênero e ideologia.
Alguns comentários oportunos
Permitam-me agora alguns comentários conclusivos. Ao analisar as celeumas e vociferações sobre esse tema, fui descobrindo algumas coisas curiosas e surpreendentes que comento aqui com cuidado e com respeito. São provocações que faço. E as coloco aqui porque estou vendo que podem estar presentes aqui algumas estratégias, essas sim certamente bem ideológicas, no sentido que coloquei acima. Não aceite o que comento aqui, mas pense, por favor:
a) Estou lendo tudo o que posso sobre o tema. Surpreendentemente, vejo que a grande maioria dos que estão discutindo e gritando "contra as relações de gênero" (que será que estão entendendo?), ou contra a "ideologia de gênero", são homens. Por que será? Mais importante, contudo, é a constatação seguinte: das poucas mulheres que se arriscam a comentar o assunto, praticamente todas não estão preocupadas com o tema. Algumas até estranham a ferocidade da discussão. Não vêem razões sérias para essa fúria. Desculpem, mas entrevejo aqui uma pista que pode iluminar o problema: será que as pessoas (os homens) não estão preocupados e amedrontados porque, de repente, através de uma educação em que se procura discutir as desigualdades (e até injustiças) históricas criadas e instituídas contra as mulheres, os homens (os machos) estejam percebendo que estão perdendo seus privilégios? Não será talvez porque de repente, com a superação dessas "relações desiguais de gênero", não iremos ter mulheres e homens em número mais ou menos igual na política, câmaras municipais, estaduais, federais? Não será talvez porque desse modo as mulheres passarão também ocupar cargos executivos nas empresas na mesma proporção que os homens? Ou – ainda mais importante! – que as mulheres, e as profissões exercidas predominantemente por mulheres, passem a receber salários semelhantes aos homens, em vez de receber em média 30% a menos? Ou não será talvez porque nas famílias os homens tenham também de começar a partilhar o "terceiro turno de trabalho" das mulheres, devido ao qual a grande maioria delas têm de, além dois turnos de trabalho fora, fazer comida, lavar a roupa, limpar a casa, etc? Como mostra a significativa piada machista: Qual o feminino de "deitadão no sofá vendo televisão?" – Resposta: "Em-pé-zona na pia lavando a louça". Vamos pensando.
b) O segundo comentário é um pouco mais delicado e, talvez, doloroso, mas merece e precisa ser refletido. Não é difícil perceber que muitos dos que estão eriçados com a discussão são homens celibatários. Interessante que essa discussão veio num momento em que entra em jogo a questão da diversidade sexual. Isso deixa a muitos um tanto desorientados. Então: no momento em que se proíbe até mesmo de falar ou escrever sobre "relações de gênero", fica muito mais fácil afastar os medos e temores que a discussão sobre esse tema poderia acarretar. Ancora-se a questão das diversidades sexuais à ideologia e relações de gênero, condenam-se essas questões e joga-se tudo no caldeirão de males que têm de ser evitados e execrados.
c) Permito-me um último comentário, também muito curioso, que perpassa as ferrenhas discussões que estão sendo travadas. Pergunto-me: porque será que esse tema se tornou tão importante para alguns políticos, principalmente os evangélicos das levas midiáticas mais recentes? Será apenas devido a questões de justiça, de democracia, de ética? Ou escondem-se por detrás alguns interesses talvez escusos?
Explico: entrevejo aqui uma estratégia política bastante sutil, mas sobre a qual precisamos jogar mais luz. Não podemos ser ingênuos. Ronda em nosso meio uma gama de políticos espreitando uma ocasião para se promoverem politicamente, ficar famosos, construir seu "capital político". E não há maneira mais prática e eficiente do que "aparecer na mídia". É evidente que esse tema se presta muito a sensacionalismo, por um lado; e, por outro lado, traz credibilidade, a moeda mais importante do capital político, pois liga esse político a "causas nobres, morais". Ele aparece como alguém interessado em assuntos morais, "do evangelho"; um novo campeão da moralidade.
Não se espantem com a consideração que segue: essa estratégia passa a ser ainda mais perversa e hipócrita quando se passa a "construir um inimigo", que pode ser um fato, ou uma causa, absolutamente indefensáveis e inaceitáveis, e então se junta a ele o tema em discussão - no nosso caso a questão de gênero e ideologia. Trago um exemplo: escutei um desses defensores da moralidade dizendo que se forem "aprovadas as relações de gênero" então os professores terão de fazer o que um deles já teria feito: levar meninos e meninas, de 8 a 10 anos, para a praça e obrigá-los a se beijarem: os meninos aos meninos e as meninas às meninas! Ora, quem não fica estarrecido diante de um suposto fato como esse? Pois essa é a estratégia: cria-se um inimigo ou um fato indefensável (ninguém sabe se é verdade...), ancora-se a ele o que se quer execrar e joga-se tudo no fogo da ira divina. Presença e notoriedade na mídia é o que não vai faltar a tais defensores da moral e dos costumes. E junto com isso o acúmulo de um ingente "capital político" que o ajudará a se eleger nas próximas eleições. Em ponto menor, mas certamente não menos irresponsável e criminoso, é o que faz a grande mídia quando traz, por exemplo, uma notícia sobre a redução da idade penal e imediatamente apresenta um fato chocante de um menor que assassinou uma pessoa e mostra o depoimento ao vivo do pai, ou mãe, dessa pessoa assassinada que comenta: "E esse 'menor' vai ficar recolhido apenas alguns meses e depois vai ser solto". E agora a prática criminosa: a reportagem não diz que crimes contra a vida cometidos por menores entre 16 a 18 anos são apenas 0,03 por cento! É evidente que com notícias assim, mais de 80% da população passa a se dizer a favor da redução da maioridade penal.
Concluo: só decidi trazer ao palco das discussões essas reflexões porque estou assistindo a falas e cenas que precisam ser questionadas, caso contrário podem levar a situações ainda piores das supostamente por elas denunciadas. Quando vejo determinadas pessoas, revestidas de símbolos de poder, em tom peremptório e ameaçador, alertar preocupadíssimas sobre o perigo das "relações de gênero", ou da "ideologia de gênero", fico pensando: o que estão querendo de fato? Têm consciência do que estão incriminando? Uma coisa é certa: uma fala honesta, responsável e justa exige, no mínimo, que se diga com clareza do que se está falando e o que se entende com as palavras usadas.
* Pedrinho A. Guareschi é graduado em Filosofia, Teologia e Letras; pós-graduado em Sociologia; mestre e doutor em Psicologia Social; pós-doutor em Ciências Sociais em duas universidades (Wisconsin e Cambridge); pós-doutor em Mídia e Política na Università degli studi 'La Sapienza'; professor na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul); seus estudos, pesquisas e experiências focalizam a Psicologia Social com ênfase em mídia, ideologia, representações sociais, ética, comunicação e educação; é conferencista internacional.
http://fepoliticaetrabalho.blogspot.com.br/2015/06/outras-ideologias-para-alem-da.html
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