Dilemas da intelectualidade latinoamericana
Por Emir Sader.
Nos momentos mais importantes da historia latino-americana houve, paralelamente, uma participação significativa da intelectualidade do continente, com renovação de problemáticas e contribuições decisivas para os processos políticos. Isso ocorreu, por exemplo, nos anos 1920 e, especialmente 1930, assim como, mais tarde, nas décadas de 1950 e 1960.
No Brasil, por exemplo, foram, no primeiro período, os momentos das obras de Caio Prado Jr., de Sergio Buarque de Holanda, de Gilberto Freire. No segundo, de autores como Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Milton Santos, Ruy Mauro Marini, entre outros.
Não há duvida de que o continente voltou a viver, desde a primeira década deste século, um novo período histórico importante. Depois da dominação do pensamento único, correlato da hegemonia neoliberal, houve uma recuperação histórica em países com governos progressistas, impondo políticas anti-neoliberais.
É um processo contraditório com o movimento do capitalismo em escala global. Ao contrário dos períodos anteriores, em que havia uma compatibilização entre os processos progressistas a nível nacional e a dinâmica do capitalismo em escala mundial.
Os processos atuais são contraditórios, porque buscam retomar ciclos expansivos da economia, com distribuição de renda, a partir dos enormes retrocessos das décadas anteriores, marcadas pela crise das dividas, por ditaduras militares e por governos neoliberais. Houve processos de desindustrialização, de avanço da peso da produção de soja pelo agronegócio, de fragmentação social, de aceleração da concentração de renda, entre outros fenômenos negativos.
A construção dos governos pós-neoliberais foi condicionada por esses fatores, que se tornaram ainda mais problemáticos quando o capitalismo internacional, a partir de 2008, entrou em um longo e profundo ciclo recessivo, afetando as possibilidades de crescimento das economias do continente. Ao contrário de outras crises, desta vez houve capacidade de resistência, embora os efeitos recessivos não deixem de afetar as nossas economias.
Processos tão complexos, que se desenvolvem na contramão das tendências dominantes do capitalismo mundial, necessitam, mais do que em qualquer outro momento, das contribuições da intelectualidade latino-americana. Mas essas contribuições dependem de uma compreensão precisa da natureza do período histórico atual, dos governos pós-neoliberais e das suas lideranças – Hugo Chávez, Lula, Nestor e Cristina Kirchner, Evo Morales, Rafael Correa, Pepe Mujica, para citar as mais expressivas.
Mas uma parte importante da intelectualidade latino-americana não está engajada em apoiar esses governos a resolver dilemas atuais e projeções de futuro. Alguns se isolam dos processos históricos concretos, ao assumir uma postura intelectualista, incapaz de captar as novidades da realidade concreta, tornando-se impotentes para contribuir para os processos políticos concretos.
Outros ficam encerrados nos muros das instituições acadêmicas, voltados para as problemáticas dissociadas da realidade externa, presos às dinâmicas institucionais. Situação que se agrava porque uma instituição que havia tido, nos anos anteriores um papel mobilizador e politizador no meio intelectual, como Clacso, que tinha desempenhado papel importante na esfera politica e intelectual, entrou em uma fase radicalmente oposta, de burocratização e de despolitização, desaparecendo tanto da esfera politica, como da intelectual.
O dilemas enfrentados pelos governos progressistas demandam novas reflexões – como as desenvolvidas, por exemplo, por Álvaro García Linera, entre outros –, requerem um movimento de renovação da reflexão intelectual, que hoje se dão mais diretamente a partir de iniciativas de governos – como o argentino, o boliviano, o equatoriano –, que interpelam a intelectualidade a partir da realidade concreta, do que das formas tradicionais de organização da intelectualidade latino-americana.
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Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). É secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena a coleção Pauliceia, publicada pela Boitempo, e organizou ao lado de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile a Latinoamericana – enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006), vencedora do 49º Prêmio Jabuti, na categoria Livro de não-ficção do ano. Publicou, entre outros,Estado e política em Marx, A nova toupeira e A vingança da história. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quartas.
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