A ambiguidade, no documentário Roubamos segredos – a história do Wikileaks (2012), do americano Alex Gibney e apresentado no Festival do Rio, começa no próprio título. Nele, a sugestão é a de que Julian Assange e seus companheiros surrupiam documentos confidenciais. Mas quem, afinal, são esses ladrões de segredos nesta prolixa, confusa e tendenciosa versão de Gibney com mais de hora e meia de entrevistas entremeadas com imagens de efeitos digitais à moda do cinema matrix e reflexões filosóficas de bolso?
Em uma das principais entrevistas de We steal secrets (em quase todas elas procura-se desqualificar o criador do Wikileaks, e, de carona, o soldado Bradley Manning) quem declara, sem pudor, e sorridente – “nós roubamos segredos” – é Hayden, ex-diretor da CIA e da notória agência de espionagem americana, a NSA.
A mesma que meses depois da conclusão do filme de Gibney foi denunciada pelo analista Edward Snowden, protagonista do maior escândalo da história da espionagem eletrônica que abalou e continua sacudindo o mundo. Na época, o furacão Snowden ainda não estava em atividade - o que torna datado o filme de Gibney.
Roubamos segredos chega às telas em meio a uma polêmica e precedido do alerta de Assange - que se recusou a participar dele: é um filme sem ética. O diretor, por sua vez, diz que o criador de Wikileaks teria pedido um milhão de dólares para ser entrevistado. Não havendo acordo, além de não assisti-lo declara agora não ter gostado do seu filme. Assange nega que tenha havido a proposta. No site do Wikileaks contesta – o acesso é aberto -, com minuciosas observações anotadas no roteiro da produção, todas as passagens que, segundo ele, foram manipuladas. O velho e gasto recurso de retirar do contexto declarações de entrevistados e pinçá-las, distorcendo-as conforme a direção que se deseja imprimir ao trabalho e atendendo interesses de bastidores.
É falso dizer que Assange não conhece We steal secrets. O tema central é a pessoa do australiano que, embora seja o convidado especial, não aparece. O filme então rodopia para a história de Manning e para a sua homossexualidade, e a ênfase vai para o seu amigo, o americano Adrien Lamo, que dedurou o soldado e é tido por muitos como informante do FBI. O hacker tem direito, no final, a um big close do rosto por onde escorre uma lágrima de arrependimento. Nada de menos bom gosto.
São poucos os fatos novos apresentados e relacionados ao Wikileaks além dos já conhecidos e repisados. São muitas as sequências onde Gibney relembra o episódio na Suécia no qual Assange se envolveu, servindo de pretexto para a perseguição judicial seguinte e o risco de extradição para os Estados Unidos.
Uma mulher na contraluz e disfarçada com peruca relata, com minúcias, a sua relação sexual, e a de sua amiga, com o australiano.
Num tom de revista Caras continuam as revelações sobre a vida íntima e mais observações desairosas até sobre a aparência de Assange. Um repórter do New York Times, por exemplo, falando à Fox News, (depois do seu jornal, do Die Spiegel e do The Guardian terem se beneficiado com os furos proporcionados pelo Wikileaks) comenta ter encontrado Assange com um aspecto lastimável, “as meias caídas sobre os sapatos e certamente sem tomar banho há vários dias”. O narrador do filme (Gibney?) observa “o blazer barato” usado por ele.
O célebre vídeo feito por soldados americanos de bordo de um helicóptero Apache, em Bagdá, documentando o fuzilamento e a matança de um grupo de supostos terroristas, é reproduzido no início. Um dos homens alvejados era um pai levando o filho para a escola. Outro, um cinegrafista da Reuters com uma lente de sua câmera na mão ao contrário de uma arma como acreditaram os soldados antes de dispararem contra ele. A divulgação do vídeo pelo Wikileaks tornou famoso o grupo de Julian Assange que, apresentado por Gibney, gosta de cultivar o fato de ter se tornado um dos ícones da mitologia pop deste século. “No começo, era um hacker de Melbourne”, comenta o narrador, não perdendo a chance de ironizar aqueles que chama de assangistas assim como o refúgio na embaixada de Londres proporcionado pelo presidente Correa, do Equador.
Roubamos segredos apenas levanta a ponta de questões éticas cada vez mais importantes de serem revistas para um convívio viável, daqui para frente, entre países e governos. Não chega perto de se aprofundar.
Um material deve ser divulgado mesmo sendo à custa da segurança de cidadãos comuns, nele presentes, com seus nomes revelados ou as suas imagens identificadas?
O escândalo originado por essa divulgação correrá o risco de se transformar em mero entretenimento de massa para logo em seguida ser consumido - e esquecido? E haverá mesmo a conveniência da manutenção, do sigilo nas operações da diplomacia clássica, cantada em prosa e verso por diplomatas decanos, em geral aposentados, nas entrevistas que estão sempre prontos a conceder à televisão daqui? Será que o Wikileaks, Assange, Maning, Snowden padecem de ruidoso “exibicionismo informático”, como quer Vargas Llosa? O que muda após a divulgação de informações que foram roubadas e são negadas ao cidadão?
Mas isto é um outro filme onde se inscreve a história dos vazamentos rápidos (wikileaks; de wiki, rápido, em dialetohawaiano) e sem o registro do final moralista de Roubamos segredos onde Gibney parece querer lembrar que ... o crime não compensa com as imagens da solitária de Manning e a punição perpétua e Assange confinado a “um quarto“ na embaixada equatoriana.
Há, porém, uma dúvida que não quer calar sobre os docs mais recentes de Gibney, diretor de Um táxi para a escuridão (Taxi to the dark side), seu melhor trabalho sobre a tortura do exército americano no Afeganistão e Oscar de melhor documentário em 2007. Ela também existe no seu filme Enron, sobre a crise de 2008; em Mea Maxima Culpa sobre negócios escusos do Vaticano e no doc finalizado este ano e mostrado em Veneza, sobre o ciclista Lance Armstrong revelando usar drogas – Armstrong Lie.
É o oportunismo dos seus “produtos” cinematográficos fast food.
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Cultura/Festival-do-Rio--Ladrao-de-Segredos/39/29177
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