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Revista Galileu: uma irresponsável cobertura de meio ambiente
Irresponsável. É a palavra que melhor define a edição da revista Galileu de março, com a matéria de capa “Livre-se dos mitos verdes”. E essa crítica não é feita com base em nenhum ambientalismo xiita ou intransigente. É apenas uma breve análise das contradições que aparecem dentro da própria reportagem. Reportagem, aliás, taxativa demais para quem pretende desbancar mitos, ou seja, relativizar a questão. Não se relativiza algo colocando uma certeza absoluta no lugar de outra. Mas já na capa ela diz: “*Alimentos locais; *Sacolas de papel; *Carros elétricos; *Produtos recicláveis: NADA DISSO VAI SALVAR O PLANETA!”.
A revista peca exatamente no mesmo ponto que motivou sua pauta. Considera apenas um aspecto da questão e não consegue avaliar os “mitos” de uma perspectiva mais global e abrangente. Isso sem contar que usa como uma espécie de narrador-personagem o humorista Danilo Gentili, que já responde por demonstrações de preconceito tanto no CQC quanto no Twitter, além da falta de respeito aos entrevistados e a qualquer um que discorde de seu ponto de vista.
Vamos por partes. Vou tentar focar apenas nos aspectos principais, os mais gritantemente restritos, para não tomar muito o teu tempo e a tua paciência, caro leitor. Por isso, logo mais vou comentar os itens numerando-os conforme feito na revista, o que nos levará a lacunas na numeração, já que não abordarei todas. A reportagem é assinada por Guilherme Rosa, com fotografia de Victor Affaro e ilustrações de Alexandre Affonso.
Linha de apoio da matéria, na página 45: “Novas pesquisas mostram que bom mesmo é comer alimentos importados, dirigir carro usado…” e continua. Assim mesmo, sem margem pra dúvida ou questionamento. Sem interpretações divergentes ou possibilidade de pesquisas com métodos diferentes. E conclui: “Isso se você realmente quer evitar que o mundo vire uma estufa”. Ou seja, a culpa é toda tua, cara pálida.
Sempre tenho medo de interpretações que avaliem apenas um ponto de vista sobre determinados temas. Geralmente, uma viseira como aquelas de cavalo lhes impede de enxergar o todo. É o que acontece em praticamente todos os mitos “desmascarados” pela reportagem, que foca apenas na emissão de CO2 como a única responsável pelos problemas ambientais e pelo aquecimento global. E mesmo assim, cai em contradição. Seguem os mitos:
1. “Coma só alimentos locais” – O texto diz que é muito mais negócio comer alimentos importados do que locais. O argumento é restrito à análise da quantidade de emissão de CO2, como se esse fosse o único aspecto a considerar. A defesa é de que a produção em grande escala produz menos gás carbônico e que o tipo de comida influencia mais que a distância do transporte, chegando ao ponto de afirmar que, se fulano come carne de boi local, ele prejudica mais o meio ambiente que o ciclano que come a fruta da estação que vem do outro lado do mundo. A comparação não é válida, porque, se o fulano gosta de carne, ele vai comer carne daqui ou da China. Vale, então avaliar qual dessas duas opções é a melhor. Isso sem contar que existem outros aspectos na questão, como o social e o econômico. Produção em larga escala geralmente utiliza menos mão-de-obra, favorece a exploração do trabalhador e prejudica a economia local. Sem falar nos próprios aspectos ambientais, como o uso de venenos, muito menor nas pequenas propriedades, que acabam produzindo um alimento mais saudável poluindo menos a terra e a água.
2. “Precisamos das conferências climáticas” – Alguém esqueceu no meio do caminho que as conferências não são atitudes para melhorar o meio ambiente, mas deveriam ser espaços onde se discutem e se decidem possíveis atitudes. O fato de não ser bem assim é outra história, mas não podemos confundir alhos com bugalhos.
3. “A energia eólica é a mais sustentável” – Como não se pode errar todas, nesse ponto a revista foi sensata. Critica as fontes de energia mais poluentes, baseadas em combustível fóssil sem cair na ingenuidade de defender a energia eólica como única fonte a ser utilizada, o que seria inviável em nossa civilização, mesmo que todos economizassem ao máximo.
4. “Proíba as sacolas plásticas” – Já aqui ela parte de uma perspectiva aparentemente sensata, ao relativizar a troca de sacolas de plástico pelas de papel, trazendo argumentos geralmente ignorados, como a produção do papel. Mas a abordagem parece esquecer todos os prejuízos do plástico, ignora o tempo de decomposição dos diferentes materiais e quase propõe liberar geral, como se o fato de outras soluções não serem absolutas fazer com que a solução inicial deixe de ser prejudicial.
5. “Recicle, recicle, recicle” – A reportagem defende que se queime grande parte do lixo, inclusive os recicláveis, como plástico e papel, como forma de reaproveitar a matéria-prima na geração de energia. Mais uma vez, a viseira atrapalha, e se esquece de falar na poluição e na liberação de gás carbônico causadas pela queima. Ou seja, funciona de forma exatamente inversa ao que defende a publicação e no ponto que ela mais enfoca, a liberação de CO2, que é muito alta com a queima que eles defendem
7. “Compre um carro elétrico” – O argumento é que o carro elétrico não compensa quando a forma de obtenção de energia utilizada no país, que servirá de combustível para o carro, for suja. É evidente, mas isso não justifica que se deixe de cogitar a utilização desse tipo de meio de tranporte, certo? Cai em contradição quando diz que, nos países em que a energia é poluente, os resultados não foram positivos, “chegando em algumas situações a poluir mais do que o carro convencional”. Ou seja, se mesmo onde a energia é produzida de forma suja, o carro elétrico só deixa de valer a pena em algumas situações, imagina se forem feitos investimentos combinados tanto na geração de energia limpa quanto no desenvolvimento de carros elétricos! E mais, ela afirma que tais automóveis também são prejudiciais porque sua produção é poluente. Mas carros movidos a gasolina não são igualmente produzidos em fábricas, utilizando o mesmo tipo de material?
9. “O aquecimento global vai acabar com a Terra” – Essa é a melhor parte, que começa dizendo: “Nada disso, quem corre o risco de desaparecer é você”. Óbvio ululante! Parte-se do evidente pressuposto de que, quando se defendem medidas contra o aquecimento global, queremos preservar a nossa vida, nossa civilização, o que só será possível com respeito à natureza e convivência pacífica, com a consciência de que somos parte da natureza da Terra. Não imagino que alguém interprete a questão do aquecimento global como uma grande explosão que acabe com o planeta, mas ninguém quer que o ser humano deixe de existir. Aí o texto diz que não, o aquecimento global não é esse bicho papão, nós vamos só deixar de existir, mas o planeta continua. Ah tá! Teremos fome, desaparecimento de florestas, seca, tempestades, guerras, alagamentos, deslizamentos, furacões, doenças… Mas não precisamos nos preocupar, porque a crosta do planeta continuará aí. A revista trata o leitor como um retardado que não consegue fazer essa interpretação crítica. Aí está um bom resumo da falta de perspectiva e de abrangência da reportagem.
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