"O famoso "dura lex sed lex", portanto, cujo ranço autoritário, arrogante e prepotente, sempre foi usado sem pudor mais para impor o "sabes com quem estás falando" do que para fazer justiça, vai sendo cada vez mais desmascarado e desmoralizado", escreve Jacques Távora Alfonsin, comentando a novidade do Direito Achado na Rua, que foi tema do artigo Justiça missioneira versus justiça "paulista de Antonio Cechin.
Jacques Távora Alfonsin é advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado.
Eis o artigo.
No caminho aberto pelo Irmão Antonio Cechin, em um dos seus artigos publicados neste site do IHU, dia 13 deste mês, sob o título Justiça missioneira versus justiça "paulista", abre-se oportunidade para uma pequena crítica que situe as/os nossas/os leitoras/es em torno do que ele afirmou sobre o "Direito Alternativo" e o "Direito Achado na rua."
É que, no fim da década de setenta do século passado (!), trabalhando com ele (que também é advogado), e que partilha comigo a autoria de alguns artigos aqui nas Notícias do Dia publicadas pelo IHU, defendemos o direito humano fundamental à moradia de uma quantidade grande de famílias sem teto de Canoas, hoje residindo na Vila Santo Operário e na União dos Operários. Nessa prestação de serviço, debati com ele a grande contribuição que um grupo de juízes gaúchos estava fazendo em favor dos direitos humanos dos pobres com o "Direito Alternativo" e, em Brasília, um grupo de professores e advogados, com o "Direito Achado na Rua."
Ainda bem que o Irmão Antonio colocou um "salvo melhor juízo", quando me fez "descobridor" do Direito Alternativo. Sua grande generosidade colou mérito em quem não o tinha. Eu não passo de discípulo daquelas duas históricas fontes de inspiração jurídica, que tantos frutos já deram à doutrina e à jurisprudência dos tribunais do país, particularmente enriquecidas, daquela época em diante, com novas posturas hermenêuticas da lei e seus limites, visões mais críticas da realidade.
Um bom resumo do que ocorreu, então, a partir daí, é feito pelo professor Roberto A.R. de Aguiar, em artigo publicado no volume 3 dos quatro já editados pela UNB sobre o Direito Achado na Rua:
"O direito tem de trabalhar com a globalidade do ser humano, imerso e atuando na concretude da história, nas contradições da sociedade e nos conflitos existenciais e materiais que a condição humana impõe. A fonte e o destinatário dos preceitos jurídicos é o cidadão; o Estado é um dos instrumentos (o hegemônico) para a realização desse direito. A conseqüência desse entendimento leva o Direito Achado na Rua a rejeitar as concepções monistas do Direito, que o entendem como emanação estatal." (...) "O direito passa a ser plural. Não mais um só ordenamento jurídico sacralizado pelo Estado, mas vários ordenamentos em luta, pois os despossuídos, os dominados, na medida em que se organizam, criam direitos paralelos e forçam o direito hegemônico a se modificar, ou mesmo a desaparecer, no caso de uma revolução. Por isso a preocupação do Direito Achado na Rua com o direito de resistência,...."
Note-se a relevância desse apoio jurídico explícito àqueles gestos que a população pobre do país executa em defesa do direito à alimentação e à moradia, para lembrar somente dois dos mais ligados à vida e que, de tão violados no Brasil, não raro só conseguem garantir-se em conflito com o direito de propriedade alheia. Nessas ocasiões, a criminalização dos pobres conta com a indignação da maior parte da mídia e do rigor dos tribunais, exceções raras à parte. Poucos se perguntam pela origem da tal propriedade e pelo respeito que ela deve à sua função social.
È justamente nisso que se encontra o grande diferencial daquilo que, hoje, o próprio Direito Constitucional encontra nas ruas, de onde nunca deveria ter-se retirado, fora dos tribunais e das repartições administrativas do Estado, em contato local, direto, com o povo pobre, no sofrimento de gente que somente conhecia juiz, pelo medo que sentia dele, como se autoridade, lei e pena fosse reservada para funcionar, mesmo, somente contra ela.
Sentenças, despachos judiciais e, ou, administrativos, artigos doutrinários de juristas, começaram a aparecer, abertas pelo Direito Alternativo, pelo Direito Achado na Rua, em grupo de juízes gaúchos como o NEC (núcleo de estudos críticos), por outro de São Paulo como o "Juízes para a democracia", em novos programas de faculdades de direito do país, cujo estudo dos direitos humanos não é mais um mero apêndice de alguma outra disciplina; em publicações que a UNB faz , mensalmente, por iniciativa do seu reitor, o professor José Geraldo de Souza Junior, um dos principais criadores do Direito Achado na Rua; em estudos e palestras com que o professor Boaventura de Sousa Santos, pensador português, de extensa contribuição jurídica e sociológica prestada a organizações populares de todo o mundo, acompanha de perto, aqui no Brasil, a evolução desse ideário de luta contra as injustiças sociais e de emancipação das/os pobres. Aqui no sul, ainda, o professor Lenio Luiz Streck, entre outros, embora em contexto diverso, sob fundamentação predominantemente filosófica, é um expoente de novas perspectivas hermenêuticas da realidade e da lei.
Entre essas merecem lembrança as chamadas substancialistas, que somente reconhecem a validade das Constituições naquilo em que essas evidenciam compromisso com os direitos fundamentais-sociais "como valores a serem concretizados", e a garantista, com grande influência em modernas concepções de direito, inclusive em matéria penal, que tem no jurista italiano Luigi Ferrajoli um dos seus principais criadores; a interpretação de todo o Direito Privado, o Civil especialmente, feita de modo fiel à constituição Federal, levando sempre em linha de conta, nos conflitos levados a Juízo, a dignidade humana e a cidadania, "despatrimonializando", por assim dizer, tudo quanto não pode ficar reduzido ao horizonte privatista e exclusivista da propriedade privada, oxigenando direitos sociais, reconhecendo aos últimos os poderes que, até então, somente aos individuais se dava atenção.
O famoso "dura lex sed lex", portanto, cujo ranço autoritário, arrogante e prepotente, sempre foi usado sem pudor mais para impor o "sabes com quem estás falando" do que para fazer justiça, vai sendo cada vez mais desmascarado e desmoralizado. Mesmo assim, ainda mereceu chancela do próprio atual presidente do Supremo Tribunal Federal quando afirmou que o direito tem de se achar na lei e não na rua... Tivesse ele esperado pela lei, nem presidente seria, que o movimento popular de 1789 o comprove.
Em análises posteriores, quem sabe, pela abertura que o IHU está nos permitindo, Irmão Antonio e eu poderemos oferecer as/os nossas/os leitoras/es, inclusive dialogando com elas/es, recebendo a crítica que esse site permite, esclarecimentos um pouco mais detalhados, a respeito desses novos paradigmas de concepção das garantias materiais que devem sustentar os direitos humanos das/os pobres.
Por ora, em defesa de todas/os aquelas/es "radicais" que defendem os direitos humanos contra a brutal injustiça social que vitima o povo brasileiro, vale bem a pena lembrar Roberto Lyra Filho, criador, em Brasilia, da chamada Nova Escola Jurídica Brasileira (sigla Nair), cujas lições serviram de útero para o próprio Direito Achado na Rua: "É preciso exigir as estrelas para conquistar um pão. Quem negocia a partir da limitação a uma fatia, não consegue pão, mas pedra."
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=23899
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