Há, no programa "Minha Casa, Minha Vida" avanços importantes em relação à regularização fundiária e custos cartoriais, assuntos até então quase intocáveis no Brasil. Pela primeira vez, de forma explícita, há subsídios significativos para a baixa renda (R$ 16 bilhões entre 0 e 3 salários mínimos). O pacote, todavia, não se refere à matéria urbanística e deixa a desejar em relação aos temas da habitação social, se considerarmos tudo o que avançamos conceitualmente sobre esse assunto no Brasil. A análise é de Ermínia Maricato.
Ermínia Maricato
O Pacote Habitacional lançado pelo Governo Federal em abril de 2009 Minha Casa Minha Vida (MP n. 459, 25/03/2009) pretende financiar a produção de moradias para, antes de mais nada, minimizar o impacto da crise internacional sobre o emprego no Brasil. A prioridade é essa e ela não é pouco importante, ao contrário, ela é emergencial. A violência aumenta com o desemprego. Este não é a única causa daquela mas uma das principais senão a principal.
Vivemos o aumento da violência e do desemprego durante mais de duas décadas, a partir de 1980. A queda do crescimento econômico, o ajuste fiscal, o recuo das políticas públicas nos conduziram à tragédia urbana que hoje vivemos. Atingimos um padrão alto de violência nas cidades e o aumento do desemprego nesse momento pode significar o risco da integridade dos nossos pescoços, sejam aqueles adornados por metais preciosos sejam aqueles contornados por golas puídas. E o governo acerta quando remete à construção civil o foco da tarefa pois ela cria demandas para trás (ferro, vidro, cerâmica, cimento, areia, etc) e para a frente (eletrodomésticos, mobiliários, para as novas moradias) e, consequentemente muito emprego. Há, na MP 459 avanços importantes em relação à regularização fundiária e custos cartoriais, assuntos até então quase intocáveis no Brasil. E pela primeira vez, de forma explícita, há subsídios significativos do OGU para a baixa renda (R$ 16 bilhões entre 0 e 3 s.m.).
O pacote não se refere, entretanto, à matéria urbanística e deixa a desejar em relação aos temas da habitação social (se considerarmos tudo o que avançamos conceitualmente sobre esse tema no Brasil) Também não se refere ao emprego que pretende criar. Se em relação ao emprego provavelmente iremos constatar a continuidade das condições precárias e predatórias que caracterizam a força de trabalho na Construção Civil, tratada frequentemente como besta de carga (nem as ferramentas mais básicas mereceram um design que alivie o esforço do trabalhador) em matéria urbanística podemos prever, com toda a certeza, alguns impactos negativos que os novos conjuntos irão gerar por suas localizações inadequadas.
O pacote ouviu especialmente os empresários de construção e parte das contradições que apresenta, como a inclusão das faixas de renda situadas entre 7 e 10 salários mínimos, derivam desse fato. O mercado imobiliário privado produz no Brasil, um "produto de luxo" acessível apenas a menos de 20% da população (o que é próprio do capitalismo "ornitorrínquico"). A classe média, excluída do mercado, foi incluída no pacote. O gigantesco problema habitacional (e urbano portanto) não tem solução no âmbito do governo federal e nem mesmo no âmbito da federação.
As forças de esquerda caíram em uma armadilha durante o processo de "democratização" do país: ignorar as limitações do Estado brasileiro diante das determinações do capitalismo global especialmente pela forma passiva (e por vezes ativa se considerarmos os governos federais a partir de 1990, em especial o tucano) como o país se inseriu nesse quadro, mantendo e até renovando, com a débâcle do PT, a tradição patrimonialista. A mídia, de um modo geral nos conduziu a uma agenda restrita: contra ou a favor de Lula e essa agenda travou a reflexão crítica bem como qualquer ação transformadora dos partidos.
Dentre as inúmeras questões que o pacote suscita trataremos de apenas duas, tendo como pano de fundo a crise que nos foi imposta e um governo que aposta em fazer omeletes sem quebrar os ovos (distribuir renda e reforçar o mercado interno mantendo a hegemonia dos bancos, do agronegócio e da indústria de automóveis). São elas a) o impacto sobre a política urbano/fundiária, b) a aderência ou não ao déficit habitacional (moradia para baixa renda).
Diferentemente de pão, automóvel, medicamentos, a habitação é uma mercadoria especial. Parte dessa complexidade deriva da sua relação com a terra. Cada moradia urbana exige um pedaço de terra para sua realização. E não se trata de terra nua. Trata-se de terra urbanizada, isto é, terra ligada às redes de água, energia, esgoto, drenagem, transporte coletivo além de equipamentos de educação, saúde, abastecimento, etc.
Trata-se portanto de um pedaço de cidade. No Brasil, a maioria da população urbana de baixa renda está excluída da cidade formal. Não é por outro motivo que são ilegais entre 30 e 50% das moradias nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Belo Horizonte. A partir de Salvador rumo ao nordeste e norte essa proporção aumenta. Excluídos do mercado privado legal que monopoliza as boas localizações a população de baixa renda ocupa o que sobra: mangues, várzeas, morros , dunas, matas, etc, estendendo-se ilegalmente por uma imensa periferia. Nem a metrópole de Curitiba escapa a esse destino. Na Área de Proteção dos Mananciais moram 2 milhões de pessoas ao sul na metrópole paulistana.
O Brasil tem, desde 2001, uma das leis urbanísticas mais avançadas do mundo: o Estatuto da Cidade que regula a aplicação da função social da propriedade por meio do Plano Diretor, entretanto Estado e sociedade resistem à sua aplicação. Até existem prefeitos que gostariam de aplicá-lo mas quando esse fato raro ocorre a dominação patrimonialista sobre as Câmaras Municipais e o judiciário impedem que tal ocorra. Essa matéria é de competência municipal (o que mostra que o tema exige uma abordagem federativa além de considerar o mercado) e seria inútil o governo federal repetir o que já foi feito durante a ditadura militar: condicionar os investimentos a existência de Plano Diretor no município. Os Planos (como as leis) nada garantem é o que mostra a tradição brasileira.
É por esse motivo, pelo fato de que os pobres não cabem nas cidades, que os conjuntos habitacionais tem sido construídos em terras baratas a longas distâncias. Levar a cidade até eles resulta socialmente muito caro mas essa lógica de extensão da cidade alimenta aquilo que ocupa o lugar central da desigualdade urbana: a valorização imobiliária e fundiária. Grandes fortunas no Brasil se fazem sobre a renda imobiliária que decorre do crescimento urbano mas especialmente do investimento público sobre certas áreas da cidade. Já são milhares os livros e teses escritos sobre esse assunto, já temos base legal para fazer mudanças mas não avançamos um milímetro no combate à desigualdade e à segregação nas cidades dominadas pelo capital imobiliário rentista e pelo patrimonialismo visceral enquanto as favelas continuam a explodir em crescimento e se adensam a taxas verdadeiramente assustadoras. Não será um pacote emergencial que superará esse problema que mora no mais fundo da alma brasileira já que não só a elite se aferra à propriedade de imóveis e percebe que pode ganhar com sua valorização.
Evidentemente nos cabe cobrar a boa localização dos conjuntos habitacionais de baixa renda mesmo sabendo que apenas alguns seguirão essa condição para posar nos filmes irão para as TVs durante as eleições. Denunciar o desterro dos pobres e a extensão horizontal das cidades, o que as torna menos sustentáveis, é obrigação de todo urbanista militante da causa social. Mas é preciso ter clareza de que essa luta é mais longa e não se esgota no campo institucional. Eleger pessoas bem intencionadas, fazer planos, promulgar leis não irá substituí-la.
Quanto à aderência do pacote ao déficit habitacional podemos dizer que se ocorresse a prioridade para a baixa renda na atual oportunidade seria a primeira vez na história do país. Quando mais se investiu em habitação, e foi durante a ditadura militar, nos anos 70, (aproximadamente 4 milhões de unidades durante a vigência do BNH) a classe média mereceu a maior parte dos recursos e soube reconhecer apoiando o regime militar. Na segunda metade dos anos 70 a construção de moradias assegurou o crescimento do PIB brasileiro a taxas aproximadas de 7% ao ano.
O Programa Habitacional Minha Casa Minha Vida prevê subsídio total para as faixas de 0 a 3 s.m. mas perde aderência ao déficit já no desenho original. Metade das unidades previstas para serem construídas (400.000) são destinadas para as faixas que constituem 90% do déficit. Para as faixas situadas entre 6 e 10 s.m.(2,4% do déficit) o pacote prevê a construção de 25% (200.000) das unidades. Para essas faixas o subsídio é restrito (redução dos custos do seguro e acesso ao Fundo Garantidor) mas inclui unidades de até R$ 500.000,00 o que pode-se considerar algo escandaloso para a o perfil de renda da sociedade brasileira mesmo se lembrarmos que esse financiamento vem da sociedade (FGTS) e não do OGU, e como tal deve ser remunerado. Essa amplitude sugere que não se trata apenas de um mercado viciado no "produto de luxo" e que quer subsídios para atender a classe média mas que talvez vá além, ajudando algumas empresas que adquiriram terras (por ocasião da abertura de capital na Bolsa de Valores) a tirar projetos das prateleiras. Não é incomum, como se sabe, regras gerais passarem pelo viés paroquial ou pessoal.
Segundo a professora Silvia Schor (FEA- USP) as famílias cuja renda está abaixo de R$ 600,00 e devem pagar transporte, água, gás, energia e alimentação dificilmente poderão fazer frente ao pagamento da prestação de R$ 50,00 como institui o Pacote. A chamada população moradora de rua, por exemplo, nova forma pela qual a questão habitacional se apresenta na globalização- não terá acesso às unidades ainda que tenha subsídio total. Por outro lado a dificuldade de produzir dentro dos limites estabelecidos pelo Pacote já alimenta um movimento de empresários que demandam aumento dos limites. Por tudo isso pode-se constatar que o desafio de produzir para a baixa renda não é simples e o pouco que o pacote promover para o centro do déficit (90% entre 0 e 3 s.m.) exigirá condições muito especiais: acordos nos quais os terrenos sejam doados pelos municípios. Lembremos que os municípios pagam terras a preço de mercado, já que a função social da propriedade não foi aplicada, e frequentemente, preços acima do mercado, como é o caso dos precatórios referentes a terras desapropriadas.
O governo Lula retomou investimentos nas áreas de habitação (2005) e saneamento (2003) após 23 anos de rumo errático dessas políticas públicas na esfera federal. Entretanto o grande desafio da política habitacional continua sendo a população de baixa renda e para enfrentá-lo são necessárias mudanças mais profundas e persistentes.
(*) Professora-titular da USP, Maio, 2009