Teologia da Libertação e as perspectivas para uma teoria ainda incompreendida
Desde que surgiu, na América Latina, na década de 1960, a Teologia da Libertação (TdL) tem promovido o debate sobre os pobres e oprimidos e sua importância principalmente para a Igreja Católica. Para os críticos, a corrente significa uma politização indevida da fé, para os defensores o modelo, representa, além de uma revolução espiritual e cultural, a reapropriação da Palavra de Deus pelos pobres.
Apesar das reflexões consideradas "revolucionárias" e "comunistas", a TdL sempre provocou a oposição da ala mais conservadora da Igreja, desde a sua origem, com o sacerdote peruano Gustavo Gutiérrez. Um dos expoentes da TdL no Brasil, Leonardo Boff, por exemplo, já foi condenado pelo Vaticano a um ano de "silencio obsequioso".
Com mais de 50 anos de existência, a corrente já passou por algumas gerações de teólogos e teólogas, que seguem renovando a "opção pelos pobres". Após os anos de 1990, no entanto, a TdL atravessou um período de declínio e o envelhecimento de suas lideranças. Porém, com o Papa Francisco redirecionando o foco cristão para os pobres e oprimidos, a corrente retorna aos debates envolvendo a Igreja.
Sob a perspectiva da TdL, os pobres já não são vistos como meros objetos de caridade, mas como sujeitos de sua história e de sua emancipação.
Um exemplo das atuais discussões é o II Congresso Continental de Teologia, organizado pela rede católica Amerindia, a ser realizado em Belo Horizonte (Estado de Minas Gerais - Brasil), de 26 a 30 de outubro de 2015. Com o tema a "Igreja que caminha com Espírito e a partir dos pobres", o encontro deve reunir teólogos/as e comunidades cristãs das Américas para aprofundar as reflexões sobre a reforma da Igreja, estruturando propostas para um "fazer cristão em comunidade", e com a opção pelos pobres.
Para comentar sobre as principais contribuições e o futuro da Teologia da Libertação, a Adital entrevistou o teólogo e sociólogo Dirceu Benincá, que explica por que a corrente ainda é incompreendida por alguns setores e como pode ser identificada nas ações do Papa Francisco. Segundo o teológo, a TdL tem, em seu DNA, a perspectiva "profética" e a compreensão de que a fé tem, necessariamente, uma dimensão política. Benincá comenta ainda como a fé cristã fortalece a consciência crítica e fomenta uma espiritualidade de luta coletiva por melhores condições de vida.
Adital: O que significa a opção preferencial pelos pobres, ponto central da Teologia da Libertação?
Dirceu Benincá: Representa uma revolução teológica e eclesial, bem como uma oposição frontal ao sistema capitalista. A evangélica opção preferencial pelos pobres, assumida pela Teologia da Libertação (TdL), vem acompanhada de um posicionamento claro contrário a todas as injustiças sociais, desigualdades econômicas, autoritarismos políticos e colonialismos culturais, causas de pobreza e miséria. Essa opção decorre de uma decisão consciente da Igreja libertadora, inspirada no projeto de Jesus de Nazaré.
Não podemos esquecer que a TdL surgiu, na América Latina, nos anos 1960, como reação a um sistema marcado por ditaduras militares, exploração, dependência externa e muito sofrimento humano. Logo, se propagou também pela África, Ásia e até para alguns ambientes do Primeiro Mundo. Inspira-se nos documentos produzidos pelo Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), evento histórico que promoveu a abertura da Igreja Católica para o diálogo e a interação com o mundo moderno.
A TdL teve significativo impulso com a Conferência do Episcopado Latino-Americano, em Medellín (1968). Nela, os bispos analisaram, com séria preocupação, a "violência institucionalizada" e as "estruturas injustas", que pesavam sobre os povos. Estabeleceram como grande diretriz da Igreja a opção preferencial pelos pobres, o que ficou mais explícito na Conferência de Puebla [México] (1979). Em 1992, na Conferência de Santo Domingo [República Dominicana], os bispos afirmaram: "O crescente empobrecimento a que estão submetidos milhões de irmãos nossos, que chega a intoleráveis extremos de miséria, é o mais devastador e humilhante flagelo que vive a América Latina e Caribe" (nº 179). Em Aparecida [Brasil] (2007), houve uma revalidação da importância da TdL diante dos desafios do terceiro milênio.
A opção preferencial pelos pobres é, pois, a tomada de consciência do verdadeiro compromisso da Igreja na sociedade dividida em classes. Compromisso que se traduz na luta incessante pela garantia do direito fundamental de vida digna para todos. Daí, a centralidade nos pobres, que têm sua vida mais ameaçada e atribulada. Com a Teologia da Libertação, a Igreja faz o que não poderia deixar de fazer para ser autenticamente cristã.
Adital: Quais são hoje os rostos desses pobres e oprimidos?
DB: Na sociedade atual, os pobres e oprimidos têm múltiplos rostos. Eles transcendem fronteiras geográficas, históricas, étnicas, de gênero, culturais ou religiosas. O empobrecimento, a exclusão social, a violação de direitos e da dignidade humana são consequências diretas dos processos neocoloniais e neoliberais, que ganham amplitude e profundidade com o avanço da globalização. Trata-se de um fenômeno que se reproduz, se expande e tende a ser naturalizado pelo sistema hegemônico.
A pobreza e a miséria não são questões meramente matemáticas e econômicas. Elas perpassam as diversas dimensões da vida pessoal e social. Entre os pobres e oprimidos, não podem ser esquecidos os migrantes, os catadores de materiais recicláveis, os moradores de rua, as mulheres, os jovens, os idosos, as vítimas da droga e do tráfico humano, os desempregados, os trabalhadores escravizados e tantos outros, conforme referido no nº 402, do Documento de Aparecida. Nesta lista, inclui-se também a nossa "Casa Comum", como afirma o Papa Francisco logo no início da encíclica Laudato Si': "Entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada..." (nº 2).
Adital: Em termos práticos, como se dá a Teologia da Libertação nas ações do dia a dia? De que modo a fé cristã ajuda na libertação da miséria e da pobreza?
DB: A fé cristã pode receber diferentes orientações práticas, quer numa perspectiva intimista, fundamentalista, individualista, mercadológica ou, diferentemente, numa direção comunitária, solidária, profética, libertadora. No dia a dia, ela contribui para a libertação da miséria e da pobreza, na medida em que aproxima pessoas, fortalece a consciência crítica e criativa, estimula o diálogo, a participação e a solidariedade, fomenta uma espiritualidade, que move para a luta coletiva pela melhoria das condições de vida.
A TdL gerou muitas práticas inovadoras e um novo jeito de ser Igreja, identificado com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), com a leitura contextualizada da Bíblia e com o protagonismo dos leigos. Inspiradas nas primeiras comunidades cristãs, provocaram novas reflexões teológicas e novas discussões sobre o papel da Igreja na sociedade. Constituíram-se em espaços privilegiados para viver a fé, combater o individualismo e exercitar a vida comunitária. As CEBs e a TdL criaram uma dialética efetiva e eficaz entre fé e vida.
Assim pensadas e vividas, a fé e a espiritualidade ajudam na libertação, enquanto superam uma visão mágica de Deus e um modelo meramente dogmático e ritualístico de religião. Ao apontar para as mudanças sociais e pessoais possíveis e necessárias, a fé cristã incorpora um compromisso libertador e se constitui em combustível capaz de sustentar a reação diante das mais diversas formas de opressão. Para a TdL não basta a busca da libertação de alguma angústia existencial; o que lhe vale é a libertação integral.
Adital: Por que a Teologia da Libertação é uma corrente considerada incompreendida, difamada e até perseguida?
DB: Creio que haja duas razões básicas para isso. A primeira diz respeito à denúncia que a TdL faz das causas da pobreza e da miséria de milhões de pessoas pelo mundo afora. Os teólogos e teólogas da libertação se recusam a ver esse fenômeno como geração espontânea, consequência sem causa ou fato, diante do qual cabem apenas ações assistenciais ou invocações à piedade divina. Antes, ao contrário, tomam tais realidades como produtos históricos de um sistema social abominável, que gera desigualdades, enriquecimento de alguns à custa de muitos. Esse sistema, consubstanciado no capitalismo, se reconfigura continuamente, mas mantém inalterada a lógica do imperialismo, do acúmulo e da exclusão social.
A outra razão refere-se ao "que fazer" diante dessa realidade, depois de denunciá-la. A TdL aponta a conscientização, a organização e a busca da transformação das estruturas injustas. Quando os pobres se organizam e emergem como sujeitos de direitos, a começar pelo "direito a ter direitos" (Hannah Arendt), acabam mexendo com vários interesses de segmentos da sociedade e da própria Igreja. Daí decorre, naturalmente, reações adversas, acusações, incompreensões e tentativas de censura. Mas, a TdL não produz adeptos do medo e sim da coragem, da luta e da esperança à toda prova.
Adital: A Teologia da Libertação é acusada de ser uma politização da fé ou uma teoria comunista, por quê?
DB: A TdL nasce num contexto social e histórico marcado por profundos processos de opressão e exclusão. Entretanto, isto não seria o bastante para que ela fosse identificada com uma teoria marxista/comunista, pois poderia ter assumido uma orientação político-religiosa de legitimação do poder dominante, como, em outros tempos, outros modelos teológicos o fizeram. Porém, no DNA da TdL está a perspectiva profética e a compreensão de que a fé tem, necessariamente, uma dimensão política. Dimensão esta demonstrada por Jesus ao assumir a causa da libertação dos pobres, o que resultou na sua morte de cruz.
Para ler, interpretar e buscar a transformação da realidade, com suas múltiplas contradições, os teólogos da libertação se utilizam de teorias críticas, entre as quais podem estar abordagens marxistas. Na base da acusação de que a TdL derrapou para o "nefasto" comunismo está a intenção de seus opositores em desqualificarem esse pensamento teológico. Nenhum eventual ou pontual reducionismo teórico da TdL pode ser razão suficiente para considerá-la inadequada. A análise contextualizada e crítica da realidade, associada à evocação de um Cristianismo pragmático e libertador, torna a TdL uma proposta incômoda para muitos. Daí a razão de muitas acusações indevidas.
Adital: Que contribuições a Teologia da Libertação trouxe para a América Latina?
DB: Uma das principais contribuições foi a consolidação de um novo paradigma teológico e de uma nova metodologia pastoral, baseada no tripé ver-julgar-agir. A TdL fez ver que as estruturas sociais e o funcionamento da sociedade são produções humanas, que podem e, em muitos casos, devem ser transformados. E mais do que isso, que essa tarefa decorre imediatamente da fé cristã e requer o protagonismo dos pobres. Eles já não são vistos como meros objetos de caridade, mas como sujeitos de sua história e de sua emancipação.
Articulada com a Pedagogia, a Filosofia e outras ciências com um viés libertador, a TdL contribuiu para criar um lastro de consciência crítica. Entre seus legados está uma forte cultura política e cidadã, de onde emergiram múltiplos movimentos populares, pastorais sociais, organizações não governamentais, instituições, grupos de base, movimentos políticos, sindicais, culturais, em defesa da justiça, dos direitos, da dignidade, enfim da vida dos marginalizados, oprimidos e excluídos. Destaca-se também a formação de um incontável número de lideranças sociais e eclesiais, bem como o testemunho de muitos mártires da fé cristã e da luta pela libertação.
Confira entrevista na íntegra clicando aqui.
Fonte: Cristina Fontenele / Adital
http://www.cebi.org.br/noticias.php?secaoId=1¬iciaId=5959
Desde que surgiu, na América Latina, na década de 1960, a Teologia da Libertação (TdL) tem promovido o debate sobre os pobres e oprimidos e sua importância principalmente para a Igreja Católica. Para os críticos, a corrente significa uma politização indevida da fé, para os defensores o modelo, representa, além de uma revolução espiritual e cultural, a reapropriação da Palavra de Deus pelos pobres.
Apesar das reflexões consideradas "revolucionárias" e "comunistas", a TdL sempre provocou a oposição da ala mais conservadora da Igreja, desde a sua origem, com o sacerdote peruano Gustavo Gutiérrez. Um dos expoentes da TdL no Brasil, Leonardo Boff, por exemplo, já foi condenado pelo Vaticano a um ano de "silencio obsequioso".
Com mais de 50 anos de existência, a corrente já passou por algumas gerações de teólogos e teólogas, que seguem renovando a "opção pelos pobres". Após os anos de 1990, no entanto, a TdL atravessou um período de declínio e o envelhecimento de suas lideranças. Porém, com o Papa Francisco redirecionando o foco cristão para os pobres e oprimidos, a corrente retorna aos debates envolvendo a Igreja.
Sob a perspectiva da TdL, os pobres já não são vistos como meros objetos de caridade, mas como sujeitos de sua história e de sua emancipação.
Um exemplo das atuais discussões é o II Congresso Continental de Teologia, organizado pela rede católica Amerindia, a ser realizado em Belo Horizonte (Estado de Minas Gerais - Brasil), de 26 a 30 de outubro de 2015. Com o tema a "Igreja que caminha com Espírito e a partir dos pobres", o encontro deve reunir teólogos/as e comunidades cristãs das Américas para aprofundar as reflexões sobre a reforma da Igreja, estruturando propostas para um "fazer cristão em comunidade", e com a opção pelos pobres.
Para comentar sobre as principais contribuições e o futuro da Teologia da Libertação, a Adital entrevistou o teólogo e sociólogo Dirceu Benincá, que explica por que a corrente ainda é incompreendida por alguns setores e como pode ser identificada nas ações do Papa Francisco. Segundo o teológo, a TdL tem, em seu DNA, a perspectiva "profética" e a compreensão de que a fé tem, necessariamente, uma dimensão política. Benincá comenta ainda como a fé cristã fortalece a consciência crítica e fomenta uma espiritualidade de luta coletiva por melhores condições de vida.
Adital: O que significa a opção preferencial pelos pobres, ponto central da Teologia da Libertação?
Dirceu Benincá: Representa uma revolução teológica e eclesial, bem como uma oposição frontal ao sistema capitalista. A evangélica opção preferencial pelos pobres, assumida pela Teologia da Libertação (TdL), vem acompanhada de um posicionamento claro contrário a todas as injustiças sociais, desigualdades econômicas, autoritarismos políticos e colonialismos culturais, causas de pobreza e miséria. Essa opção decorre de uma decisão consciente da Igreja libertadora, inspirada no projeto de Jesus de Nazaré.
Não podemos esquecer que a TdL surgiu, na América Latina, nos anos 1960, como reação a um sistema marcado por ditaduras militares, exploração, dependência externa e muito sofrimento humano. Logo, se propagou também pela África, Ásia e até para alguns ambientes do Primeiro Mundo. Inspira-se nos documentos produzidos pelo Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), evento histórico que promoveu a abertura da Igreja Católica para o diálogo e a interação com o mundo moderno.
A TdL teve significativo impulso com a Conferência do Episcopado Latino-Americano, em Medellín (1968). Nela, os bispos analisaram, com séria preocupação, a "violência institucionalizada" e as "estruturas injustas", que pesavam sobre os povos. Estabeleceram como grande diretriz da Igreja a opção preferencial pelos pobres, o que ficou mais explícito na Conferência de Puebla [México] (1979). Em 1992, na Conferência de Santo Domingo [República Dominicana], os bispos afirmaram: "O crescente empobrecimento a que estão submetidos milhões de irmãos nossos, que chega a intoleráveis extremos de miséria, é o mais devastador e humilhante flagelo que vive a América Latina e Caribe" (nº 179). Em Aparecida [Brasil] (2007), houve uma revalidação da importância da TdL diante dos desafios do terceiro milênio.
A opção preferencial pelos pobres é, pois, a tomada de consciência do verdadeiro compromisso da Igreja na sociedade dividida em classes. Compromisso que se traduz na luta incessante pela garantia do direito fundamental de vida digna para todos. Daí, a centralidade nos pobres, que têm sua vida mais ameaçada e atribulada. Com a Teologia da Libertação, a Igreja faz o que não poderia deixar de fazer para ser autenticamente cristã.
Adital: Quais são hoje os rostos desses pobres e oprimidos?
DB: Na sociedade atual, os pobres e oprimidos têm múltiplos rostos. Eles transcendem fronteiras geográficas, históricas, étnicas, de gênero, culturais ou religiosas. O empobrecimento, a exclusão social, a violação de direitos e da dignidade humana são consequências diretas dos processos neocoloniais e neoliberais, que ganham amplitude e profundidade com o avanço da globalização. Trata-se de um fenômeno que se reproduz, se expande e tende a ser naturalizado pelo sistema hegemônico.
A pobreza e a miséria não são questões meramente matemáticas e econômicas. Elas perpassam as diversas dimensões da vida pessoal e social. Entre os pobres e oprimidos, não podem ser esquecidos os migrantes, os catadores de materiais recicláveis, os moradores de rua, as mulheres, os jovens, os idosos, as vítimas da droga e do tráfico humano, os desempregados, os trabalhadores escravizados e tantos outros, conforme referido no nº 402, do Documento de Aparecida. Nesta lista, inclui-se também a nossa "Casa Comum", como afirma o Papa Francisco logo no início da encíclica Laudato Si': "Entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada..." (nº 2).
Adital: Em termos práticos, como se dá a Teologia da Libertação nas ações do dia a dia? De que modo a fé cristã ajuda na libertação da miséria e da pobreza?
DB: A fé cristã pode receber diferentes orientações práticas, quer numa perspectiva intimista, fundamentalista, individualista, mercadológica ou, diferentemente, numa direção comunitária, solidária, profética, libertadora. No dia a dia, ela contribui para a libertação da miséria e da pobreza, na medida em que aproxima pessoas, fortalece a consciência crítica e criativa, estimula o diálogo, a participação e a solidariedade, fomenta uma espiritualidade, que move para a luta coletiva pela melhoria das condições de vida.
A TdL gerou muitas práticas inovadoras e um novo jeito de ser Igreja, identificado com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), com a leitura contextualizada da Bíblia e com o protagonismo dos leigos. Inspiradas nas primeiras comunidades cristãs, provocaram novas reflexões teológicas e novas discussões sobre o papel da Igreja na sociedade. Constituíram-se em espaços privilegiados para viver a fé, combater o individualismo e exercitar a vida comunitária. As CEBs e a TdL criaram uma dialética efetiva e eficaz entre fé e vida.
Assim pensadas e vividas, a fé e a espiritualidade ajudam na libertação, enquanto superam uma visão mágica de Deus e um modelo meramente dogmático e ritualístico de religião. Ao apontar para as mudanças sociais e pessoais possíveis e necessárias, a fé cristã incorpora um compromisso libertador e se constitui em combustível capaz de sustentar a reação diante das mais diversas formas de opressão. Para a TdL não basta a busca da libertação de alguma angústia existencial; o que lhe vale é a libertação integral.
Adital: Por que a Teologia da Libertação é uma corrente considerada incompreendida, difamada e até perseguida?
DB: Creio que haja duas razões básicas para isso. A primeira diz respeito à denúncia que a TdL faz das causas da pobreza e da miséria de milhões de pessoas pelo mundo afora. Os teólogos e teólogas da libertação se recusam a ver esse fenômeno como geração espontânea, consequência sem causa ou fato, diante do qual cabem apenas ações assistenciais ou invocações à piedade divina. Antes, ao contrário, tomam tais realidades como produtos históricos de um sistema social abominável, que gera desigualdades, enriquecimento de alguns à custa de muitos. Esse sistema, consubstanciado no capitalismo, se reconfigura continuamente, mas mantém inalterada a lógica do imperialismo, do acúmulo e da exclusão social.
A outra razão refere-se ao "que fazer" diante dessa realidade, depois de denunciá-la. A TdL aponta a conscientização, a organização e a busca da transformação das estruturas injustas. Quando os pobres se organizam e emergem como sujeitos de direitos, a começar pelo "direito a ter direitos" (Hannah Arendt), acabam mexendo com vários interesses de segmentos da sociedade e da própria Igreja. Daí decorre, naturalmente, reações adversas, acusações, incompreensões e tentativas de censura. Mas, a TdL não produz adeptos do medo e sim da coragem, da luta e da esperança à toda prova.
Adital: A Teologia da Libertação é acusada de ser uma politização da fé ou uma teoria comunista, por quê?
DB: A TdL nasce num contexto social e histórico marcado por profundos processos de opressão e exclusão. Entretanto, isto não seria o bastante para que ela fosse identificada com uma teoria marxista/comunista, pois poderia ter assumido uma orientação político-religiosa de legitimação do poder dominante, como, em outros tempos, outros modelos teológicos o fizeram. Porém, no DNA da TdL está a perspectiva profética e a compreensão de que a fé tem, necessariamente, uma dimensão política. Dimensão esta demonstrada por Jesus ao assumir a causa da libertação dos pobres, o que resultou na sua morte de cruz.
Para ler, interpretar e buscar a transformação da realidade, com suas múltiplas contradições, os teólogos da libertação se utilizam de teorias críticas, entre as quais podem estar abordagens marxistas. Na base da acusação de que a TdL derrapou para o "nefasto" comunismo está a intenção de seus opositores em desqualificarem esse pensamento teológico. Nenhum eventual ou pontual reducionismo teórico da TdL pode ser razão suficiente para considerá-la inadequada. A análise contextualizada e crítica da realidade, associada à evocação de um Cristianismo pragmático e libertador, torna a TdL uma proposta incômoda para muitos. Daí a razão de muitas acusações indevidas.
Adital: Que contribuições a Teologia da Libertação trouxe para a América Latina?
DB: Uma das principais contribuições foi a consolidação de um novo paradigma teológico e de uma nova metodologia pastoral, baseada no tripé ver-julgar-agir. A TdL fez ver que as estruturas sociais e o funcionamento da sociedade são produções humanas, que podem e, em muitos casos, devem ser transformados. E mais do que isso, que essa tarefa decorre imediatamente da fé cristã e requer o protagonismo dos pobres. Eles já não são vistos como meros objetos de caridade, mas como sujeitos de sua história e de sua emancipação.
Articulada com a Pedagogia, a Filosofia e outras ciências com um viés libertador, a TdL contribuiu para criar um lastro de consciência crítica. Entre seus legados está uma forte cultura política e cidadã, de onde emergiram múltiplos movimentos populares, pastorais sociais, organizações não governamentais, instituições, grupos de base, movimentos políticos, sindicais, culturais, em defesa da justiça, dos direitos, da dignidade, enfim da vida dos marginalizados, oprimidos e excluídos. Destaca-se também a formação de um incontável número de lideranças sociais e eclesiais, bem como o testemunho de muitos mártires da fé cristã e da luta pela libertação.
Confira entrevista na íntegra clicando aqui.
Fonte: Cristina Fontenele / Adital
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