A cultura que mata
Por Tarso Genro
Em momentos de crise, como a que estamos vivendo na ideia e nas práticas de segurança pública, em maior ou menor grau em todo o mundo – hoje mesmo em Baltimore explodem novos surtos de violência racial com a aplicação de "medidas de exceção", certamente contra a população negra – sempre aparecem propostas simplistas, que tendem a satisfazer aquele pequeno depósito de fascismo ou autoritarismo, que dorme em cada um nós. Este recurso ao simplismo acomete grande parte dos nossos parlamentares, sempre que ocorre um crime mais bárbaro e mais ofensivo ao predominante sentimento de humanidade, que também todos carregamos. Mas o que não se trata é a questão de fundo: a cultura da violência e da morte, o elogio do predomínio do mais forte, sua estetização tentadora – que impõe pelas armas as suas próprias razões – que são predominantes como mercadoria acessível, a qualquer idade e em qualquer hora do dia, na cultura popular "de massas".
Uma boa parte das chamadas "classes médias" e de outros setores da população, mais vulneráveis à violência, acreditam que medidas punitivas mais fortes e a alteração da idade, para a responsabilidade penal plena – a chamada imputabilidade – vai reduzir a criminalidade e trazer maior segurança para os seus lares. Isso é profundamente falso e o que preocupa não é tanto o que as pessoas – acossadas pelo medo ou pela revolta – pensam, mas como se produzem essas ideias na sociedade em que vivemos.
Quanto ao reflexo objetivo da "menoridade" penal, na redução da criminalidade, basta esgrimir dois argumentos: primeiro, os criminosos adultos, que instrumentalizam os jovens inimputáveis -menores de 18 anos- vão passar a instrumentalizar para os tráfico e demais delitos, os jovens com menos de 16 anos, ampliando "para baixo", portanto, mais próximo das crianças, o raio da sua influência criminosa; segundo, a punição "exemplar", de um jovem que comete um crime, dentro do sistema de repressão e sanção que vivemos hoje, é uma forma de promoção e prestígio ao jovem delinquente, pois na cultura do elogio da violência e endeusamento do consumo que vivemos, as regras de moralidade tem efeitos profundamente desiguais nas classes sociais, que vivem de maneira desigual esta mesma sociedade.
Mesmo que um jovem de dezesseis anos possa ter a mesma compreensão do que faz, que um jovem de 18 anos, o que devemos ter em mente é como é formada e processada esta compreensão. Numa sociedade em que o elogio da violência e do crime – vinculados à propaganda e a um consumo delirante e manipulatório – estão no cotidiano dos jovens, sem a menor preocupação com quais os efeitos que esta "cultura de massas" tem nas suas cabeças e nas crianças, a punição não gera "medo", nem gera consciência para bloquear o crime.
A estética da cultura de massas, que estimula a violência, tem efeitos diferentes na cabeça dos jovens. Assim, um jovem que tem um Porsche e frequenta uma boa escola, é menos estimulado a cometer um crime, pela série "Velozes e Furiosos", do que um jovem que trabalha dez horas por dia, viaja de ônibus na madrugada, recebendo um salário miserável, e que jamais terá chance de comprar um "Porsche". Pode chegar nele só através de um ato de violência contra a propriedade de alguém, de uma forma, aliás, estimulada pelos filmes e séries, que frequentam as nossas TVs.
Os crimes mais violentos não são produtos nem da pobreza nem da fome. São produtos da cultura da violência e da estética da morte. Ela está presente na cultura de massas, divulgada como filmes ou publicidades – pelas TVs principalmente, mas também pelos "games"- nos quais se aprende que a vida humana não vale um centavo e que mesmo que a vida seja curta, você pode vivê-la intensamente. Com muitas mulheres e muitos carros, roupas de "griffes", para as quais os adolescentes e as crianças muitas vezes são "sexualizadas", precocemente, também como objetos de consumo.
As pessoas são mais ou menos vulneráveis, dependendo da sua formação familiar, dos ensinamentos e exemplos dos pais, dos obstáculos materiais que enfrentam na vida para serem felizes. E todas as classes sociais podem lutar pela sua felicidade, cometendo ou não delitos e distribuindo mais violência ou mais solidariedade. Ampliar o raio de punição destinada aos adultos, para os jovens de 16 anos não vai diminuir a criminalidade entre os jovens de todas as classes. Vai aumentá-la, neste tipo de sociedade que vivemos.
Walter Benjamim dizia que o importante não é que opiniões se tenha, porque todos temos opiniões, certas e erradas, mas em que tipo de ser humano a gente se converte com as opiniões que se tem. Promover uma cultura de paz, de tolerância e de oportunidades para os jovens, é a melhor forma de reduzir os crimes no futuro. A começar pela redução da violência e da morte, tão promovidas pela cultura de massas que nos sufoca todos os dias.
Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
http://www.sul21.com.br/jornal/a-cultura-que-mata/
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